A Verdade é dada ou descoberta: a Certeza é criada ou construída
Não quero as verdades da minha mãe, não por rejeição pueril, mas porque quero construir as minhas próprias certezas. (Reflexões sobre a Prisão Verdade, VI)
(A primeira conversa livre sobre a Prisão Verdade acontece HOJE, domingo, 29 de janeiro, a partir das 17h, no Zoom. Se quer participar, ainda dá tempo: basta se inscrever no Curso das Prisões. O link estará no grupo de Whatsapp do curso.)
Trocar a pergunta "isso é verdade?" por "tenho certeza disso?" muda tudo.
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Vale mais desinstalar programas ruins do que instalar programas bons
Quando nos tornamos pessoas adultas, nossa mente é como um computador que veio de fábrica com vários programas pré-instalados.
Não é nem que todos esses programas sejam lixo, mas também não é que sejam bons só porque foram instalados por pessoas em quem teoricamente confiamos (mães, professoras, amigas, etc) ou porque têm o aval da tradição e do costume.
Concluí que só eu podia ser o juiz de quais programas eu queria que rodassem no meu próprio computador, escolhidos de acordo com as minhas necessidades, personalizados para o meu uso pessoal.
Não queria viver a minha vida no modo default de fábrica.
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E se todas as pessoas estiverem erradas?
Minha avó sempre dizia que manga com leite era uma combinação fatal. Um dia, tomei manga com leite e nada aconteceu. Hmm, pensei, vovó estava errada.
Meu padrinho sempre dizia que baiano era tudo preguiçoso. Um dia, fiz um trabalho na Bahia e a sua equipe foi tão trabalhadora quanto qualquer outra. Hmm, pensei, o padrinho estava errado.
O Hugo do 401 sempre dizia que todas as mulheres gostavam de levar um tapa na cara na hora do sexo. Um dia, comecei a namorar e nenhuma das mulheres com quem me relacionei gostava. Hmm, pensei, o Hugo do 401 estava errado.
Meu professor de História do ginásio sempre dizia que o Brasil era um exemplo de democracia racial. Um dia, em uma clínica onde todos os médicos eram brancos e os faxineiros, negros, eu finalmente me dei conta de que não era bem assim. Hmm, pensei, o meu professor de História estava errado.
Pouco a pouco, enquanto eu crescia e prestava atenção ao mundo, esses pequenos exemplos se acumulavam.
Até que, finalmente, a crise de fé já não podia mais ser ignorada:
Se meu pai e minha mãe, minhas professoras, minhas amigas, todas essas pessoas em quem confiei para me ensinar e me formar, estão erradas em tanta coisa que já comprovei e observei... então, como posso confiar em qualquer das outras coisas que me ensinaram?
Na melhor das hipóteses, algumas coisas que me ensinaram estão erradas e outras, certas. (Mas como diferenciá-las?)
Na pior das hipóteses, tudo o que me ensinaram está errado.
Tudo.
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Nesse momento, percebi que nunca mais conseguiria, com a mesma inocência de ontem, responder a qualquer pergunta dizendo:
"Porque meu pai disse. Porque minha professora me ensinou. Porque o padre me contou. Porque fui criado assim. Porque na minha terra fazemos desse jeito."
Nesse momento, percebi que não tinha escolha a não ser correr atrás, por conta própria, de cada partícula de conhecimento que eu quisesse chamar de minha.
Nesse momento, adolescente ainda, comecei o longo e tortuoso processo (ainda em andamento) de me tornar uma pessoa humana adulta pensante.
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E se eu estiver errado?
Afinal, se pessoas que me ensinaram tudo estavam erradas em tanta coisa... eu também devia estar errado em muita coisa.
Eu não sabia o que eu sabia.
Dentre as coisas que eu sabia, quais eu realmente sabia?
Dentre as verdades que me transmitiram, quais eram certezas?
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Todas sabemos que nenhuma pessoa pode estar certa o tempo todo.
Racionalmente, portanto, sabemos que estamos erradas em muitos dos nossos conhecimentos e fatos e opiniões.
Emocionalmente, porém, é quase impossível aplicar esse conhecimento no nosso dia-a-dia: vivemos imersas na segurança de nossas verdades.
Como poderia ser diferente? Nossas opiniões nos parecem tão seguras, tão lógicas, tão abalizadas, tão autoevidentes! E, ao mesmo tempo, as opiniões opostas sempre nos parecem algo esquisitas, interesseiras, vendidas, desinformadas, apressadas.
Afinal, se eu não achasse que minhas opiniões são verdade, elas automaticamente deixariam de ser minhas opiniões.
Entretanto, apesar dessa imensa segurança nas minhas verdades, eu também sei que muitas das minhas verdades são necessariamente, indubitavelmente falsas.
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“Não há nada no mundo mais bem distribuído do que o bom-senso”, escreveu Descartes, com um toque de ironia, na primeira frase do seu Discurso do método: “mesmo aquelas pessoas que acham que poderiam ser mais ricas, ou mais cultas, ou mais bonitas, ou mais instruídas, consideram que possuem bom-senso na medida certa.”
Mas o que pode ser mais egocêntrico do que a própria ideia de bom-senso, esse critério narcísico de medição do mundo? Todo homem-bomba se considera dotado do mais profundo bom-senso.
Os grandes crimes da humanidade foram todos cometidos por pessoas do mais inimputável bom-senso, carregando suas verdades na ponta das baionetas.
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O lixo dos séculos, apodrecendo em mim
Antes mesmo dos vinte anos de idade, era impressionante o lixo dos séculos que já se acumulava na minha mente.
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Alguns conhecimentos eram úteis e eu até me lembrava como tinham sido adquiridos.
Eu sabia, por exemplo, que o segredo para fazer o pão perfeito era borrifar água fria no começo da assadura, conhecimento adquirido depois de meses de tentativa e erro em uma cozinha de Nova Orleans.
Por outro lado, um dia, assisti um clipe de música colombiana e comentei com uma amiga que parecia "festa de porteiro".
Na mesma hora, fiquei horrorizado comigo mesmo.
De onde vinha tanta ojeriza anti-hispânica? Como a maioria das pessoas brasileiras, eu tinha pouquíssimo contato com o mundo hispânico. Nem mesmo conhecia a Colômbia.
Verdadeiro médium cultural, eu estava manifestando não a minha própria opinião, mas canalizando os preconceitos de incontáveis pessoas portuguesas que passaram quase um milênio defendendo sua independência contra todas as outras nações ibéricas, preconceito esse que foi devidamente herdado e mantido pelas pessoas brasileiras.
E por que a referência elitista aos porteiros?
Porque, no imaginário da minha classe social, ambos os tipos de pessoa, as porteiras e as hispânicas, eram gente vagamente marrom, de gel no cabelo (!) e com quem não se devia misturar.
Ninguém nunca precisou me dizer explicitamente que porteiro era algo vagamente indesejável: no meu círculo de pessoas amigas e parentes, não havia nenhum porteiro, ninguém que quisesse ser porteiro, ninguém que tivesse amigo porteiro, ninguém namorando um porteiro.
(Da mesma maneira, várias das minhas amigas e familiares sonhavam em morar na Austrália, Itália, Estados Unidos, mas nenhum em Cuba, Nigéria, Malásia.)
Um simples comentário de poucas palavras já revelou um caudal de conhecimentos nocivos em minha cabeça.
Eu lembrava bem de como tinha aprendido a borrifar água no pão... mas como tinha aprendido tanta besteira sobre pessoas porteiras e hispânicas, e sobre o gel que ambas teoricamente usavam no cabelo?
Ninguém nunca tinha me "ensinado" que hispânicas não eram tão "boas" quanto europeias, ou que porteiros não eram tão "bons" quanto médicos.
Mesmo assim, esses conhecimentos estavam lá, em minha cabeça, influenciando meus pensamentos e minhas ações, provocando comentários lamentáveis dos quais eu imediatamente me arrependia.
(Sobre nossa ojeriza anti-hispânica, veja a Prisão Patriotismo e o texto A hispanofobia brasileira.)
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Limpando o disco rígido, programa por programa
Essa não era a única "Verdade" podre em meu cérebro: eu sabia mais, muito mais.
Eu "sabia" que loiras eram burras e vaidosas; gays, afetados e promíscuos, mulatas, fogosas e sensuais. Que o governo melhor é aquele que governa menos. Que os homens devem sempre ser cavalheiros com as mulheres.
E assim por diante, uma lista quase infinita de preconceitos, falsidades, distorções, mentiras, estereótipos, lugares-comuns.
De onde tinham vindo? O que estavam fazendo em uma mente que não lhes pertencia? Como eu pude nunca ter percebido a quantidade de lixo que apodrecia em mim?
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Com menos de vinte anos de idade, minha mente era ainda um computador praticamente recém-chegado da fábrica, mas já repleto de programas maliciosos, vírus, malwares.
Então, comecei a limpeza do disco rígido. Programa por programa.
Para que serve esse programa? Quanto de memória ocupa? Vou precisar dele no futuro? Está atravancando a capacidade de processamento do meu computador? Está entrando em conflito com outro programa mais útil?
Muito mais urgente do que instalar novos programas úteis era desinstalar aqueles programas — alguns inúteis, outros nocivos — que estavam atravancando o bom funcionamento dos programas úteis e do computador em si.
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Tomar posse do conhecimento
Meu projeto não era uma simples rebeldia de adolescente bem-alimentado, rejeitando todas as verdades que recebera só para ser do contra.
Eu não estava afirmando que todas as verdades que recebera estavam erradas, nem querendo rejeitá-las todas, mas apenas presumindo que eram falsas até segunda ordem.
Até que pudesse transformar essas verdades de outras pessoas em um conhecimento que fosse meu.
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Exemplo de uma "Verdade" que encontrei em minha mente: o melhor jeito de armazenar pão de forma era fora da geladeira.
E me questionei: por que eu "sei" isso? De onde veio essa "Verdade"?
Da minha mãe, respondi. Ela sempre afirmou que era um absurdo colocar pão na geladeira.
E eu, hoje, adulto pensante e experiente, o que achava?
Bem, eu concordava. Fora da geladeira, as últimas fatias podiam até mofar, mas, dentro da geladeira, o pão inteiro já ficava ruim na hora.
Pois bem. Esse conhecimento agora era meu.
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A partir desse momento, eu não era mais uma criança que deixava o pão fora da geladeira porque era assim que a mãe fazia.
Agora, eu era um adulto que armazenava o pão fora da geladeira por considerar, depois de alguma reflexão, que esse era o método mais apropriado.
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A certeza, não a verdade
Uma amiga leu o primeiro rascunho desse texto e detectou uma contradição:
“No começo, você defende que não devemos ficar tão obcecadas com a Verdade, mas, logo depois, propõe questionarmos todas as Verdades do mundo para assim descobrirmos... o quê? A Verdade?!”
Não exatamente.
A "Verdade" sobre a melhor maneira de armazenar pão eu já possuía. Se o que eu quisesse fosse apenas a Verdade sobre esse e outros fatos, o meu projeto não faria sentido.
Só que não basta eu saber algo só porque minha mãe me ensinou — mesmo se essa informação por acaso estiver correta. (Mas, até que possa confirmá-la independentemente, preciso presumir que pode também por acaso estar errada.)
Dado que sei que minha mãe me ensinou algumas coisas certas e algumas coisas erradas, para que eu possa considerar algo que ela me ensinou como "Verdade" eu preciso comprovar essa informação por outros meios.
Preciso torná-la minha.
Preciso transformar "algo que minha mãe ensinou", ou seja, uma verdade que me foi transmitida, uma verdade endossada por uma figura de autoridade, uma verdade que, na melhor das hipóteses, será uma "verdade acidental", em "um conhecimento que possuo", um conhecimento adquirido por mim através de um método cético, através de uma reflexão racional, através de uma experiência prática.
Mesmo que o resultado final seja idêntico, ainda que o meu conhecimento conquistado seja igual à verdade dada, a simples aplicação do método cético faz toda a diferença do mundo.
Trocar a pergunta "isso é verdade?" por "tenho certeza disso?" muda tudo.
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A Verdade é algo dado: fala-se em descobrir ou revelar a verdade, nunca em produzir ou criar a verdade.
A Verdade é algo que está lá, como a América, esperando para ser descoberta.
A Verdade quase sempre precisa de uma figura de autoridade que lhe garanta e lhe revele, que lhe endosse e lhe transmita: de mãe para filha, de mestre para discípula, de Deus para mortais.
A Verdade não precisa da pessoa humana: quando a humanidade se extinguir, a Verdade, assim como a América, ainda estará lá.
Já a certeza é um conceito cognitivo: nossas certezas são construídas por nós.
A certeza não pode ser passada de mãe para filha, de mestre para discípula, de Deus para mortais: cada pessoa precisa criar a sua.
A certeza precisa do olhar de alguém: só pode existir certeza se houver uma agente humana que se utilize de sua razão para afirmar, na primeira pessoa, ativamente, "eu tenho certeza".
A certeza precisa da pessoa humana: quando a humanidade se extinguir, não restará mais ninguém para ter certeza de nada.
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Não quero as verdades da minha mãe, não por uma rejeição pueril a ela, mas porque quero construir as minhas próprias certezas.
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Prisão Verdade
I. A Verdade está no meio: não duvidar, não acreditar
II. O valor da Verdade está em ser útil
III. A Verdade da Ficção: faz diferença?
IV. E daí que não me digam a Verdade?
VI. A Verdade é dada ou descoberta: a Certeza é criada ou construída
VII. Penso que penso, logo existo: A Verdade de Descartes
VIII. Graus de Verdade: o quanto preciso saber para poder saber algo?
IX. Mais conhecimento não quer dizer mais Verdade
XI. Toda Verdade é uma hipótese
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O Curso das Prisões
O meu curso para 2023 será o Curso das Prisões.
Começaremos com a Prisão Verdade.
Nossa primeira conversa livre, no Zoom, para trocarmos ideias e experiências sobre a Verdade, será no domingo, 29 de janeiro. Depois, a aula expositiva será na quarta, 15 de fevereiro.
Por enquanto, nosso grupo de zap do Curso das Prisões está pegando fogo discutindo coisas como:
Afinal, o que é a verdade? Ela existe? Como descobri-la? Temos certeza do que sabemos?
Nossa pretensa certeza sobre o que sabemos é a primeira prisão que nos impede de enxergar todas as possibilidades da vida.
Vem com a gente?