Graus de Verdade: o quanto preciso saber para poder saber algo?
(O que é "saber"? Quanta certeza precisamos ter para podermos afirmar que "sabemos" de algo? Reflexões sobre a Prisão Verdade, VIII)
Se todas as nossas informações sobre um assunto vierem da mesma fonte, mesmo se muito abalizada, mesmo se muito querida, podemos realmente considerar que "sabemos" aquele assunto?
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Acontece muito comigo.
Alguém chega e pergunta minha opinião sobre algo. O escândalo na Petrobrás, a crise na Ucrânia, a transposição do rio São Francisco.
Quase sempre, minha resposta é a mesma:
"Não tenho conhecimento o suficiente sobre esse assunto para poder emitir uma opinião."
Aparentemente, essa minha resposta soa como uma matrícula em um curso, pois no instante seguinte já estou assistindo uma aula expositiva sobre o tema.
Enfim, quando a pessoa termina sua explanação não-solicitada sobre os malefícios (ou benefícios!) da usina de Belo Monte, eu até agradeço, mas só por educação. Afinal, se eu quisesse saber sobre esse assunto, teria buscado informações eu mesmo.
Mas até aí, tudo bem. Ouvir pessoas falando sobre seus interesses quase sempre é bastante educativo. O pior é que elas ainda não desistiram de arrancar de mim algum posicionamento:
"Bem, agora que te contei tudo sobre a crise hídrica de São Paulo, qual é a sua opinião?"
E eu, com o maior tato possível, sabendo que estou andando em terreno minado, respondo:
"Hmm, desculpe, mas eu continuo sem ter conhecimento o suficiente sobre esse assunto para emitir uma opinião."
Se houver um jeito mais delicado de falar isso, por favor, me contem. Por enquanto, a reação das outras pessoas é quase sempre de ofensa:
"Coooomo assim?! Está me chamando de mentirosa? Mas eu não acabei de ficar aqui meia hora te contando tudo o que está acontecendo na Síria?"
E eu tento explicar, de modo que não se ofenda ainda mais:
"Bem, agora eu tenho bastante conhecimento sobre a sua opinião em relação à Reforma Eleitoral. Aliás, só com base no que falou, já dá para deduzir muito sobre quais jornais você lê, em quem votou para presidente, quais suas posições políticas, etc, mas continuo sem possuir conhecimentos suficientes e adequados sobre a Reforma para poder emitir uma opinião sobre ela."
Não adianta. Por mais que eu insista, a pessoa sempre acha que estou chamando-a de mentirosa.
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O quanto é necessário saber sobre um assunto para que possamos considerar que "sabemos" aquele assunto?
Se todas as nossas informações sobre um assunto vierem da mesma fonte, mesmo se muito abalizada, mesmo se muito querida, podemos realmente considerar que "sabemos" aquele assunto?
SUS: um estudo de caso
Uma das dificuldades de escrever um texto como esse é a seguinte:
Se não dou exemplos, o argumento fica abstrato demais e muitas pessoas leitoras se perdem; se dou exemplos, muitas pessoas se concentram somente neles, atacando-os ou defendendo-os, e perdem de vista o argumento.
Então, consciente dos riscos, considerei importante exemplificar com mais detalhes o método que estou descrevendo. Peço às pessoas leitoras que se apeguem mais ao argumento sendo desenvolvido e menos às minúcias do exemplo em si.
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Um dia, em uma conversa aleatória, me referi ao SUS, o Serviço Único de Saúde brasileiro, como "um serviço público completamente caótico e desfuncional".
Minha companheira, sempre atenta às traições que cometo contra a pessoa que quero ser, logo questionou:
"Quem é que sabe que o SUS é 'um serviço público completamente caótico e desfuncional'? Você ou sua família?"
Era uma boa pergunta: por que eu "sabia" que o SUS era "um serviço público completamente caótico e desfuncional"? O que essa Verdade estava fazendo em minha mente, tão concreta e tão autoevidente, tão acrítica e tão não-problemática, ao ponto de ser repetida por mim em conversas?
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No meio social onde eu crescera, classe média alta da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, no final do século XX, era uma Verdade inquestionável e autoevidente, daqueles que naturalmente não precisam ser nem justificadas nem defendidas, que não só o SUS mas quase todos os serviços públicos, do transporte à educação, eram caóticos e desfuncionais.
Mais ainda, essa Verdade era indissociável de um certo liberalismo econômico de tendências conservadoras quase unânime entre essas mesmas pessoas, baseado em premissas também autoevidentes para elas, como a idealidade do Estado mínimo e a superioridade da iniciativa privada sobre os serviços públicos.
E, por incrível que pareça, apesar de eu ter me afastado desse ambiente há décadas justamente por rejeitar essas Verdades, ainda assim eu me pegava distraidamente agindo como seu porta-voz!
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Uma ressalva importante:
Somente o fato de essa Verdade quase hegemônica nessa classe social (de que o SUS e outros serviços públicos são caóticos e desfuncionais) estar perfeitamente alinhada com posição política quase hegemônica dessa mesma classe social (liberalismo econômico de tendências conservadoras) não quer dizer que essa Verdade seja necessariamente falsa.
Afinal, nossas verdades estão quase sempre alinhadas às nossas posições políticas.
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Mas de onde vinha essa Verdade? Como essas pessoas sabiam que o SUS era caótico e desfuncional?
Tinham acesso a dados estatísticos que demonstravam a superioridade da medicina privada? Tiveram experiências pessoais terríveis no SUS?
Por ter crescido entre essas pessoas, eu sabia que a resposta para as duas últimas perguntas era "não". Algumas delas, inclusive, pagavam seus planos de saúde particulares com muito sacrifício.
Entretanto, quando uma pessoa tem uma opinião que considera autoevidente, qualquer pergunta sobre ela já soa como uma crítica e um desafio:
"Porra, Alex, é óbvio que o SUS é uma merda! Você parece que gosta de ser do contra, só pode!"
Então, fiz a pergunta com cuidado:
"Como você sabe que o SUS é caótico e desfuncional?"
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Recebi variações das seguintes três respostas:
1. Era autoevidente que o SUS era caótico e desfuncional porque, por definição, qualquer serviço público sempre seria pior que um serviço privado e, além disso, o governo de um país em desenvolvimento como o Brasil jamais poderia oferecer um serviço médico para 200 milhões de pessoas com a mesma qualidade dos melhores hospitais particulares do Rio e de São Paulo;
(Quanto a isso, eu não tinha comentários: era um dogma de fé.)
2. As funcionárias de suas empresas ou as empregadas domésticas de suas casas contavam histórias de terror do SUS, de filas intermináveis, de esperas longuíssimas, etc.
(Apesar de serem de segunda mão, essas histórias de terror bem podiam ser verdade. Mas, por outro lado, se eu trabalhasse para essas pessoas, capitalistas até a raiz da alma, eu preferiria inventar que passei duas noites na fila do posto de saúde — logo, preciso de dois dias de folga, patroa! — do que dizer que fui atendido em meia hora na UPA perto de casa.)
3. Tinham visto/lido/ouvido várias reportagens sobre o caos do SUS na Veja/ Globo/CBN/Estadão/etc.
(Essas reportagens bem podiam ser verdade. Mas, por outro lado, esses veículos de mídia, além de compartilharem do mesmo liberalismo econômico de tendências conservadoras, também tinham um forte interesse financeiro em torpedear o SUS. Afinal, se o SUS funcionasse como deveria e fosse utilizado satisfatoriamente por todas as pessoas cidadãs brasileiras, esses veículos perderiam toda a enorme receita publicitária dos planos de saúde particulares. Então, presumindo que há tanto méritos e falhas no SUS, esses veículos sempre vão cobrir com mais ênfase e mais destaque as falhas do que os méritos.)
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Nesse ponto, alguma pessoa leitora talvez me interpele:
"Bem, Alex, se eu não posso dizer que o SUS é caótico e desfuncional, você também não pode dizer que o SUS é lindo e eficiente!"
Sim. É por isso que em nenhum momento eu fiz essa afirmação.
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Todas as propagandas oficiais do governo sobre o SUS têm o mesmo interesse explícito em enaltecê-lo que a grande mídia tradicional tem em torpedeá-lo. Uma anula a outra.
Seguramente existem dados e relatórios estatísticos extensos comparando o SUS à rede privada e estabelecendo metas e padrões para o atendimento às pessoas cidadãs. Mas quem lê esses relatórios? Provavelmente nem os membros do Congresso cujas decisões deveriam ser determinadas por esses dados.
Posso afirmar que, na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) de Copacabana, sempre fui atendido tão bem quanto em todos os bons hospitais privados que já utilizei em três países.
Mas foram atendimentos sem gravidade, em uma única UPA, em um bairro de elite, turístico e icônico, da segunda maior cidade do país, ex-capital e porta de entrada da América Latina.
E se fosse câncer na próstata ou faca na barriga, em vez de pressão alta e infecção estomacal?
E se fosse no interior do Pará, em vez de na zona sul da cidade do Rio de Janeiro?
Nenhuma das minhas muitas experiências pessoais e anedóticas na UPA de Copacabana me permite fazer extrapolações para o SUS como um todo, em um país de dimensões continentais, duzentos milhões de habitantes e a mais profunda desigualdade.
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Apesar de todas as minhas muitas interações positivas com o SUS, não me sinto abalizado para afirmar que "o SUS é bom".
Se você me perguntar sobre o SUS, vou te dar mesma opinião que tenho sobre a crise na Ucrânia:
“Não tenho conhecimento o suficiente sobre esse assunto para poder emitir uma opinião.”
Já as pessoas entre as quais eu cresci continuam não hesitando em bater no peito para afirmar o autoevidente caos no SUS — mesmo sem nenhuma vivência pessoal ou dado estatístico sobre o SUS.
Então, afinal, o que é "saber"? Quanta certeza precisamos ter para podermos afirmar que "sabemos" de algo?
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Algumas pessoas leitoras talvez considerem que estou propondo um padrão inalcançável. (Descartes foi acusado da mesma coisa.) Que, de acordo com esse método, seria praticamente impossível formar uma opinião. Que não teríamos nunca como saber nada com certeza.
Mas será que isso é tão ruim assim?
Será que já não nos damos ao direito de ter e articular opiniões demais, sobre tudo, o tempo inteiro?
Não seria melhor exercermos um saudável estado de não-opinião?
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Prisão Verdade
I. A Verdade está no meio: não duvidar, não acreditar
II. O valor da Verdade está em ser útil
III. A Verdade da Ficção: faz diferença?
IV. E daí que não me digam a Verdade?
VI. A Verdade é dada ou descoberta: a Certeza é criada ou construída
VII. Penso que penso, logo existo: A Verdade de Descartes
VIII. Graus de Verdade: o quanto preciso saber para poder saber algo?
IX. Mais conhecimento não quer dizer mais Verdade
XI. Toda Verdade é uma hipótese
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O Curso das Prisões
O meu curso para 2023 será o Curso das Prisões.
Começaremos com a Prisão Verdade.
Nossa primeira aula expositiva será na quarta, 15 de fevereiro. Antes disso, nas nossas conversas livres, no Zoom e no Whatsapp, estamos discutindo coisas como:
Afinal, o que é a verdade? Ela existe? Como descobri-la? Temos certeza do que sabemos?
Nossa pretensa certeza sobre o que sabemos é a primeira prisão que nos impede de enxergar todas as possibilidades da vida.
Vem com a gente?
Excelente texto. Clareza solar. Obrigada por ampliar minha visão.
Estamos numa sequência de Verdades que tá bom demais... Só continua! A propósito, podemos ter acesso as referências que usa? excetuando o Descartes, tão citado...