A Verdade da Ficção: faz diferença?
Para as pessoas que se sentiram tocadas pela mensagem de um livro, que diferença faz tudo ter sido inventado ou não? (Reflexões sobre a Prisão Verdade, III)
Para as pessoas que se sentiram tocadas pela mensagem de um livro, que diferença faz tudo ter sido inventado ou não?
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O livro Um Milhão de Pedacinhos foi um dos maiores fenômenos editorais da última década. A história da degradação e posterior redenção de um viciado em drogas inspirou milhões de pessoas por todo o mundo.
Algum tempo depois do lançamento, entretanto, o autor foi desmascarado como um grande mentiroso. Aparentemente, quase nada na história era verdade. Tudo foi distorcido ou exagerado. Sua agente literária o abandonou, sua editora cancelou seu contrato, sua maior fã, uma apresentadora de televisão, o renegou no ar, ao vivo. As mesmas milhões de pessoas por todo o mundo se sentiram traídas.
Eu não li Um Milhão de Pedacinhos. Não sei se é bom ou não. Mas, para as pessoas que leram e gostaram, para as pessoas que se sentiram tocadas pela mensagem, para as pessoas que aprenderam alguma coisa com o livro, que diferença faz tudo ter sido inventado ou não?
Minha irmã, por exemplo, não consegue ler ficção: não lhe desperta nenhuma empatia. Diz ela:
"Por que eu iria me interessar em saber como nunca se desenrolou uma situação que nunca aconteceu entre pessoas que nunca existiram?"
Mas será que a mensagem de Dom Quixote ou de Policarpo Quaresma deixa de ser verdadeira somente porque os personagens nunca existiram?
De certo modo, Antígona e Capitu talvez sejam muito mais verdadeiras e reais — ecoando pelos séculos, existindo em inúmeros continentes, falando dezenas de línguas, tocando inúmeras vidas — do que nós, pessoas pretensamente verdadeiras e reais, mas tão restritas por nossas limitações físicas, geográficas, cronológicas.
A ficção se utiliza do artifício e da mentira para transmitir verdades mais verdadeiras do que seria capaz a própria verdade.
Esse texto que você está lendo também é um texto de ficção.
A Verdade sobre Capitu
Dom Casmurro, romance publicado por Machado de Assis em 1899, conta a história de um adultério. Ou não.
Capitu é casada com Bentinho, cujo melhor amigo é Escobar. Um belo dia, Escobar morre e, poucos meses depois, Capitu dá a luz a um filho que é a cara do falecido. E aí?
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Durante mais de meio século, leu-se Dom Casmurro como um romance de adultério. Nunca houve dúvida quanto à infidelidade da sem-vergonha Capitu. Somente em 1960, em O Otelo Brasileiro de Machado de Assis, Helen Caldwell levantou publicamente a questão: mas será que era?
(Não por acaso, a primeira pessoa a levantar essa possibilidade era não somente mulher, mas uma mulher estrangeira.)
Trinta anos depois, quando li Dom Casmurro no Ensino Médio, nossa professora fez o tradicional julgamento de Capitu. A maior parte da turma a considerava inocente (inclusive a professora) e um grupo menor defendia sua culpa. Sobrei eu pra ser juiz, o único que não tinha opinião formada.
Meu papel era somente julgar qual dos lados tinha levantado mais fatos e argumentos para provar sua opinião. As discussões foram acaloradas; amizades, desfeitas. Houve gente me acusando nos corredores de "anti-Capitu (ou pró-Capitu) desde criancinha".
Como aspirante a escritor, ver tantas adolescentes com tantas leituras tão divergentes e apaixonantes do mesmo texto só comprovava os efeitos concretos que a ficção exercia sobre a realidade.
Anos e anos depois, já no doutorado de literatura, lemos Dom Casmurro de novo. Dessa vez, o tom foi outro. Nenhuma das minhas colegas de sala teve a temeridade de sugerir o adultério de Capitu, mas falou-se bastante do falocentrismo da literatura canônica.
Um comentário que se ouviu muito no meu doutorado foram variações de:
"Como tanta gente pôde ler esse livro tão errado tanto tempo? É óbvio que o livro é sobre o ciúme louco e obsessivo de Bentinho, não sobre uma traição (que nunca existiu) da pobre Capitu! É tão óbvia a reticência do autor quanto à traição de Capitu que é simplesmente impossível ler o romance como um simples livro sobre adultério!"
Mas pode-se argumentar que o fato de o livro, seu autor e suas pessoas leitoras estarem inseridas em uma tradição literária falocêntrica é que torna ainda mais provável o tal adultério.
Afinal, se duas gerações de pessoas ao longo de sessenta anos viram o adultério de Capitu como autoevidente, então por definição o livro no mínimo permite essa leitura.
Dizer o contrário equivale a arrogantemente imputar uma cegueira imbecil às pessoas leitoras do passado.
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Ainda usando o romance de exemplo, as pessoas defensoras de Capitu alegam em seu favor a reticência de Bentinho: se houvesse realmente alguma prova concreta do adultério, ele teria dito e feito fanfarra. Se não fala nada, é porque não há o que dizer.
Já as primeiras pessoas a ler o livro talvez pensassem como José Veríssimo, um dos principais críticos literários da época, em seu História da Literatura Brasileira (1915):
"Era impossível em história de um adultério levar mais longe a arte de apenas insinuar, advertir o fato sem jamais indicá-lo. Machado de Assis é, com a justa dose de sensualismo estético indispensável, um autor extremamente decente. Não por afetação de moralidade, ou por vulgar pudicícia, mas em respeito da sua arte. Bastava-lhe saber que a obscenidade, a pornografia, seriam um chamariz aos seus livros, para evitar esse baixo recurso de sucesso, ainda que a fidalguia nativa dos seus sentimentos não repulsasse tais processos."
E então, pergunto eu, Bentinho silencia porque nunca houve adultério e não havia o que dizer, ou porque Machado é um "autor extremamente decente" e não havia porque dizer com todas as letras o que já era tão óbvio que tinha acontecido?
Nunca saberemos. Não há possibilidade de haver uma resposta certa. Cada argumento sempre vai cortar para os dois lados.
Mais importante, que diferença faz?
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Vai ver nem o próprio Machado sabia.
Vai ver o romance não é nem sobre uma adúltera safada que trai um pobre burguesinho (a certeza do adultério), nem sobre um homem obcecado por ciúmes que persegue sua inocente esposa (a certeza do não-adultério).
Vai ver é um romance sobre a dúvida.
Vai ver é um romance sobre como essa nossa busca obsessiva e pueril por uma tal Verdade com V maiúsculo pode destruir nossas vidas.
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Prisão Verdade
I. A Verdade está no meio: não duvidar, não acreditar
II. O valor da Verdade está em ser útil
III. A Verdade da Ficção: faz diferença?
IV. E daí que não me digam a Verdade?
VI. A Verdade é dada ou descoberta: a Certeza é criada ou construída
VII. Penso que penso, logo existo: A Verdade de Descartes
VIII. Graus de Verdade: o quanto preciso saber para poder saber algo?
IX. Mais conhecimento não quer dizer mais Verdade
XI. Toda Verdade é uma hipótese
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O Curso das Prisões
O meu curso para 2023 será o Curso das Prisões.
Começaremos com a Prisão Verdade.
Nossa primeira conversa livre, no Zoom, para trocarmos ideias e experiências sobre a Verdade, será no domingo, 29 de janeiro. Depois, a aula expositiva será na quarta, 15 de fevereiro.
Por enquanto, nosso grupo de zap do Curso das Prisões está pegando fogo discutindo coisas como:
Afinal, o que é a verdade? Ela existe? Como descobri-la? Temos certeza do que sabemos?
Nossa pretensa certeza sobre o que sabemos é a primeira prisão que nos impede de enxergar todas as possibilidades da vida.
Vem com a gente?