Mais conhecimento não quer dizer mais Verdade
Em vez de ler, des-leia. Em vez de aprender, desaprenda. (Reflexões sobre a Prisão Verdade, IX)
Leio mais de um livro sobre o mesmo assunto não para saber mais sobre o assunto, mas para me dar conta da minha enorme ignorância sobre o assunto.
Ler mais para saber menos
De vez em quando, eu me interesso sobre algum assunto e decido me informar mais. Para isso, leio pelo menos dois livros inteiros sobre o tema.
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Se quero me informar sobre como Euclides da Cunha narraria a Guerra de Canudos, quais recortes escolheria, quais aspectos enfatizaria, etc, eu posso ler Os sertões (1903).
Mas, se quero me informar minimamente sobre a Guerra de Canudos em si, eu preciso ler, pelo menos, mais um livro sobre o assunto.
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Para escrever a Prisão Verdade, reli o Discurso do método (1637) e Meditações sobre filosofia primeira (1641), de Descartes.
Li também quatro livros sobre ele, desde introduções como Descartes em 90 minutos (1996), de Paul Strathern, até o magistral Descartes: The project of pure inquiry (1978), de Bernard Williams, passando por Descartes, de Margaret Wilson, e Descartes: Belief, scepticism and virtue (2001), de Richard Davies.
Cito esses títulos não apenas para dar a bibliografia da Prisão Verdade, mas para levantar a seguinte questão: somente o livro de Williams, vastamente superior e realmente um clássico, já teria sido mais do que suficiente para eu escrever o meu texto.
Mas aí eu seria refém da leitura de Williams de Descartes, por melhor que essa leitura fosse.
Então, quando eu escrevesse sobre Descartes aqui na Prisão Verdade, mesmo se o resultado final do texto fosse idêntico para as pessoas leitoras, eu estaria de fato canalizando o Descartes de Bernard Williams, visto através do prisma dos interesses e das limitações, dos preconceitos e da biografia de Bernard Williams.
Se eu só tivesse lido Williams, o Descartes de Alex Castro estaria contido no Descartes de Bernard Williams.
Mas quero falar do meu Descartes, visto através do prisma dos meus interesses e das minhas limitações, dos meus preconceitos e da minha biografia:
Eu me compadeço da morte de sua única filha, aos cinco anos; me revolto por ele ter finalmente aceito o convite da Rainha da Suécia, só para morrer lá, de frio, aos meros 53 anos; discordo violentamente da separação que faz entre mente e o corpo (quando falo que "você é o que você faz", estou sendo radicalmente anti-cartesiano — sobre isso, leiam O erro de Descartes [1994], de António Damásio); considero que a maneira como prova a existência de Deus é tão desastrada, tão destoante do resto da sua obra, que não dá para saber se ele realmente tinha tanta fé que não percebeu que o seu método desprovava a existência de Deus, ou se foi apenas para evitar represálias da Igreja e fugir do destino de Galileu.
Mais do que tudo, quero falar do Descartes que propôs o Método Cartesiano de ceticismo sistemático que eu, aqui do meu jeito torto e limitado, tento utilizar até hoje.
(Para as pessoas que talvez tenham ficado confusas com a diferença entre os conceitos de Verdade, certeza e conhecimento utilizados no meu texto, recomendo muito o livro de Bernard Williams.)
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Ler apenas um livro dá uma falsa sensação de conhecimento. Passamos de não saber nada para saber muita coisa sobre a Guerra de Canudos em poucos dias. Chega a ser intoxicante e tentador pensar que "agora sim conheço a Guerra de Canudos!"
Mas não. Conheço apenas o recorte específico, as perspectivas e as opiniões, daquela pessoa autora sobre a Guerra de Canudos. E olhe lá.
Ler um segundo livro sobre o mesmo assunto quebra esse efeito. Provavelmente, ambos os livos vão dialogar entre si, trocar citações ou trocar refutações, trocar elogios ou trocar farpas.
De repente, nos damos conta que a história da Guerra de Canudos não é tão simples quanto pensávamos, que existe muita discordância mesmo entre as pessoas que realmente conhecem a Guerra de Canudos, que a história da Guerra de Canudos ainda está sendo escrita e reescrita.
Aquela interpretação sobre Antônio Conselheiro que me parecia tão sólida e pouco problemática no primeiro livro (até citei, empolgado e inocente, para os amigos na mesa de bar!) é justamente a interpretação que o segundo livro desconstrói impiedosamente. E vice-versa.
No caso da Prisão Verdade, várias afirmativas bobas que eu teria feito sobre Descartes foram abortadas e nunca chegaram ao meu texto final, por eu ter percebido, lendo um livro contra o outro, que filósofos muito mais inteligentes que eu já vinham discutindo aquela questão há séculos sem conseguir chegar a um acordo.
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Eu leio mais de um livro sobre o mesmo assunto não para saber mais sobre o assunto.
Eu leio mais de um livro sobre o mesmo assunto para me dar conta da minha enorme ignorância sobre o assunto.
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Ler menos para saber mais
Quando se escreve profissionalmente, pessoas leitoras e jornalistas sempre nos pedem por "recomendações de leitura".
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Mesmo em um país de poucas pessoas leitoras como o Brasil, o lobby da leitura é fortíssimo.
Não lemos quase nada, mas colocamos a leitura no mesmo altar quase-religioso onde já estão a atividade física e a comida saudável.
Discordamos em tudo, mas concordamos que deveríamos estar todas lendo mais, malhando mais, comendo melhor.
Gastamos fortunas em comidas orgânicas que não gostamos, em academias que não frequentamos, em livros que não lemos, e depois nos martirizamos por fracassar em nosso projeto de sermos pessoas mais lidas, mais saradas, mais saudáveis.
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As pessoas que realmente querem ler leem o tempo todo. Estão lendo agora. Aproveitam cada cinco minutos no metrô ou na fila do banco para ler mais duas pagininhas, como um fumante ansioso que aproveita qualquer oportunidade para ir fumar um cigarrinho lá fora.
Já as pessoas que dizem
"Ah, eu queria tanto ler mais..." (ou fazer mais ginástica, ou comer mais vegetais, etc)
não querem realmente ler mais.
Elas apenas acreditam sinceramente que essas atividades (ler, malhar, comer melhor, etc) são intrinsecamente boas e indispensáveis para a identidade que estão construindo para si mesmas, de pessoas cultas, saradas, saudáveis, e, por isso, desejam ardentemente querer fazer essas coisas.
Mas não querem. Porque, se quisessem, já estariam fazendo, não querendo fazer.
Como escritor, eu gostaria de poder absolvê-las dessa ansiedade: ninguém precisa ler. Ler não é intrinsecamente bom. Ler é um passatempo como qualquer outro. Existem mil maneiras de aprender os fatos do mundo e de se tornar uma pessoa melhor sem passar pela leitura.
Se gostam de ler, leiam. Se não gostam, não se culpem.
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Então, sempre que me pedem por "recomendações de leitura", recomendo que não leiam nada.
Pergunto: quanto tempo em média passaria lendo um livro de, digamos, duzentas páginas? Oito, dez horas ao longo de quatro, cinco dias?
Então, economize o valor do livro, encontre um lugar tranquilo em sua casa e ocupe esse tempo fazendo a jardinagem do seu cérebro, podando galhos, arrancando ervas daninhas.
Quantos preconceitos, falsidades, distorções, mentiras, estereótipos, lugares-comuns você não tem aí dentro?
Em vez de absorver mais e mais novas verdades, em um verdadeiro frenesi acumulativo cultural, coloque o lixo para fora.
Em vez de ler, des-leia. Em vez de aprender, desaprenda.
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Prisão Verdade
I. A Verdade está no meio: não duvidar, não acreditar
II. O valor da Verdade está em ser útil
III. A Verdade da Ficção: faz diferença?
IV. E daí que não me digam a Verdade?
VI. A Verdade é dada ou descoberta: a Certeza é criada ou construída
VII. Penso que penso, logo existo: A Verdade de Descartes
VIII. Graus de Verdade: o quanto preciso saber para poder saber algo?
IX. Mais conhecimento não quer dizer mais Verdade
XI. Toda Verdade é uma hipótese
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O Curso das Prisões
O meu curso para 2023 será o Curso das Prisões.
Começaremos com a Prisão Verdade.
Nossa primeira aula expositiva será na quarta, 15 de fevereiro. Antes disso, nas nossas conversas livres, no Zoom e no Whatsapp, estamos discutindo coisas como:
Afinal, o que é a verdade? Ela existe? Como descobri-la? Temos certeza do que sabemos?
Nossa pretensa certeza sobre o que sabemos é a primeira prisão que nos impede de enxergar todas as possibilidades da vida.
Vem com a gente?