Toda Verdade é uma hipótese
Como ser individualista sem virar o rosto ao coletivo? Como pensar coletivamente sem perder nossa individualidade? (Reflexões sobre a Prisão Verdade, XI)
Como conciliar um método filosófico individual com nossa inteligência necessariamente coletiva e social? O antídoto para a Prisão Verdade é manter sempre em mente que todas as verdades e certezas que vou tornando minhas não são nem verdades, nem certezas, nem minhas, mas hipóteses de trabalho, fruto de uma inteligência coletiva, avalizadas por experts. São teorias, que vou testando e retestando, confirmando e descartando.
(A primeira aula do Curso das Prisões, Prisão Verdade, acontece hoje, quarta, 15 de fevereiro de 2023, às 19h. Abaixo, vai a conclusão da aula, apontando para a próxima, Prisão Religião, em março. Todas as aulas ficam gravadas. Ao entrar no curso, você tem acesso total às aulas anteriores. Mas vou te contar: o legal mesmo são as conversas livres… que não ficam gravadas! Compre aqui.)
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Descartes tinha uma confiança em sua racionalidade que nós, no século XXI, para bem ou para mal, já não temos. Seu método cartesiano de ceticismo sistemático ainda me parece eminentemente válido — de fato, necessário — tanto que escolhi abrir o Livro das Prisões com ele. Mas, sim, precisa ser matizado.
Para Descartes, a razão humana era um dom de Deus, um pedaço da sabedoria divina colocada em nós para que pudéssemos melhor compreender esse universo criado por Deus para nosso usufruto. Em teoria, nada, no livro da vida criado por Deus para nós, estaria fora do alcance do nosso entendimento.
De lá pra cá, muita gente trabalhou duro para nos escorraçar desse pedestal. Até pouco tempo atrás, era autoevidente que nossa razão servia para apreendermos corretamente a realidade e resolvermos problemas. Em teoria, a evolução teria favorecido os seres humanos mais inteligentes, melhores em apreender a verdade do mundo e em resolver seus desafios. Cada vez mais, entretanto, novos estudos indicam que nossa razão é muito mais social do que lógica, muito mais coletiva do que individual.
Como conciliar, então, um método filosófico individual, como o de Descartes, com nossa inteligência necessariamente coletiva e social? Todo o Livro das Prisões estará sempre dançando no fio dessa navalha: como ser individualista sem virar o rosto ao coletivo?, como pensar coletivamente sem perder nossa individualidade?
O ceticismo, esse individualismo filosófico levado ao extremo, pode facilmente virar uma prisão. As pessoas se tornam terraplanistas não por serem crédulas que acreditam em tudo (se fossem, “acreditariam” na narrativa da terra redonda sem pensar duas vezes) mas por serem céticas que, talvez até aplicando o método cartesiano, não confiam nessa “sabedoria imposta pelos experts” e “tomam posse do conhecimento”. Paradoxalmente, portanto, são as pessoas mais céticas e mais cínicas que tendem a se tornar as maiores crédulas e ingênuas.
Para bem ou para mal, não há como fugir ao fato de que somos uma espécie gregária. Nosso maior diferencial, enquanto espécie, não é nem nossa inteligência, nem nossa linguagem, nem mesmo nosso polegar opositor, mas nossa capacidade de trabalhar juntos em equipe. Pelo contrário, nossa inteligência, nosso polegar opositor, até mesmo nossa linguagem, foram selecionados evolutivamente pois favoreciam maior coesão social. Nossa inteligência se desenvolveu não para “descobrir a verdade” ou “resolver problemas lógicos”, mas sim para convencer e agradar as outras pessoas do nosso grupo. Nossa linguagem se desenvolveu não para “gritar comandos” ou “descrever o mundo”, mas sim para fofoca, networking e autopromoção. (Sobre isso, recomendo Grooming, Gossip, and the Evolution of Language, de Robin I.M. Dunbar, 1996.)
Na Prisão Autossuficiência, desenvolverei esses temas, mas uma lição já pode ser antecipada: não podemos escolher não sermos pautadas por nossos grupos, mas podemos (em larga medida) escolher em qual grupo queremos estar. Quem tem amigas fumantes ou vegetarianas já está, para bem ou para mal, a meio caminho de se tornar fumante ou vegetariana. Não existe inteligência individual: nossa inteligência é coletiva e reside fora de nós, terceirizada em nossos amigos, familiares, parentes. Em nosso grupo, enfim.
Uma pessoa terraplanista não é necessariamente mais burra ou mais crédula do que uma “terrabolista”: apenas escolheu confiar em experts diferentes. Todas nós confiamos em experts que nos certificam da “verdade” de uma série de conhecimentos que jamais teríamos como comprovar empiricamente. (Os conhecimentos que temos como comprovar e tornar nossos são uma fração minúscula.) Então, de certo modo, a decisão mais importante da vida é: Qual grupo escolheremos para pautar nossas vidas, nossos hábitos, nossas verdades? Em quais experts confiaremos para terceirizar nossos conhecimentos?
Ao escolher ler esse livro e não outro, você está permitindo que minhas palavras e pensamentos te influenciem de maneiras completamente inesperadas que nem eu nem você podemos prever. Tem certeza que quer mesmo fazer isso? Foi uma decisão consciente ou pegou esse livro a esmo? Se você ler o livro todo, talvez não consiga evitar de se deixar influenciar por mim. Mas a decisão de largar o livro agora ainda está nas suas mãos.
Ao aplicar o método cartesiano de Descartes na minha vida, tento manter sempre em mente que todas as verdades e certezas que vou tornando minhas não são nem verdades, nem certezas, nem minhas, mas hipóteses de trabalho, fruto de uma inteligência coletiva, avalizadas por experts. São teorias, que vou testando e retestando, confirmando e descartando.
Afinal, o próprio Buda disse que não veio para ensinar doutrinas nem verdades, mas um método prático, que qualquer pessoa podia testar, praticar, descartar. (Esse aliás foi um dos aspectos mais revolucionários do seu ensinamento: que essa cura do sofrimento poderia ser realizada pelas próprias pessoas humanas, sem necessidade de intervenção divina.) Mais importante, ele defendia que seu ensinamento era como uma canoa: poderia ser muito útil para atravessar um rio, mas, depois do rio atravessado, sair carregando-a pela terra firme poderia ser mais oneroso do que positivo. As verdades, às vezes, por mais úteis que tenham sido, precisam ser descartadas depois de utilizadas.
Essa inteligência coletiva, terceirizada fora de nós, também pode ser chamada de “ideologia”: são as lentes pelas quais enxergamos o mundo, apreendemos a verdade, decidimos nosso caminho. Dependendo das lentes, entretanto, podemos não estar enxergando todos os caminhos possíveis. Não temos escolha de enxergar o mundo a não ser por essas lentes, mas podemos pelo menos tentar enxergar as lentes.
A Prisão Religião, continuação necessária da Prisão Verdade, é uma tentativa de enxergamos as lentes através das quais enxergamos, ou tentamos enxergar, nossas verdades.
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Prisão Verdade
I. A Verdade está no meio: não duvidar, não acreditar
II. O valor da Verdade está em ser útil
III. A Verdade da Ficção: faz diferença?
IV. E daí que não me digam a Verdade?
VI. A Verdade é dada ou descoberta: a Certeza é criada ou construída
VII. Penso que penso, logo existo: A Verdade de Descartes
VIII. Graus de Verdade: o quanto preciso saber para poder saber algo?
IX. Mais conhecimento não quer dizer mais Verdade
XI. Toda Verdade é uma hipótese
XII. Prisão Verdade ou Prisão Mentira?
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O Curso das Prisões
O meu curso para 2023 será o Curso das Prisões.
Começaremos com a Prisão Verdade.
Nossa primeira aula expositiva será hoje, quarta, 15 de fevereiro. Antes disso, nas nossas conversas livres, no Zoom e no Whatsapp, estamos discutindo coisas como:
Afinal, o que é a verdade? Ela existe? Como descobri-la? Temos certeza do que sabemos?
Nossa pretensa certeza sobre o que sabemos é a primeira prisão que nos impede de enxergar todas as possibilidades da vida.
Vem com a gente?
Perfeito!! Ficou muita claro como entende a verdade.