E daí que não me digam a Verdade?
Minha vida mudou quando me liberei da obrigação de questionar a veracidade do que as pessoas me diziam. (Reflexões sobre a Prisão Verdade, IV)
O que mudou minha vida não foi nem a percepção de que mentiam para mim, e nem de que eu também podia mentir de volta, mas sim me libertar da obrigação de questionar a veracidade do que me diziam.
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Fui um adolescente gordo. Sempre que alguém me encontrava, o comentário era o mesmo:
"Puxa, como você emagreceu!"
Aquilo me intrigava. Afinal, eu sabia que não tinha emagrecido.
Desenvolvi várias teorias para explicar esse paradoxo.
Minha preferida era a seguinte:
As pessoas me rotulavam de gordo e pensavam em mim como "aquele gordo". Portanto, quanto menos viam o verdadeiro-eu, de carne e osso, e mais interagiam somente com "aquele-gordo" das suas memórias, mais eu engordava em suas mentes, até que, finalmente, quando me encontravam, eu parecia de fato bem menos gordo do que em suas imagens mentais de mim.
Sustentei essa teoria por muitos anos, bastante orgulhoso da sofisticação meu raciocínio.
Até que um dia me dei conta:
As pessoas mentem.
Mentem mal e mentem bem, mentem por carinho e mentem por malícia, mentem de propósito e mentem sem se dar conta, mas mentem o tempo inteiro.
* * *
Para mim, adolescente de pífio traquejo social, essa foi uma realização importante.
Eu não precisava sempre falar a verdade!
Quando uma pessoa de penteado horrível me pedia opinião sincera, eu podia dizer que "estava lindo"... e nada acontecia!
Deus não me fulminava. A pessoa não enxergava a mentira nos meus olhos. Eu não corava de vergonha. Nada disso.
Pelo contrário, o mundo se tornava um lugar melhor e mais agradável. As pessoas sorriam mais para mim. Eu era convidado para mais festinhas. Parecia mágica.
No ano seguinte, eu já era presidente do grêmio.
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O que mudou minha vida não foi nem a percepção de que mentiam para mim, e nem de que eu também podia mentir de volta. (Quase todo mundo concluiu isso muito mais cedo do que eu!)
O que mudou minha vida foi quando me liberei da obrigação de questionar a veracidade do que as pessoas me diziam.
Vai ver a pessoa achou realmente que emagreci horrores. Vai ver a pessoa achou que sou um gordo disforme e, com a minha corpulência na cabeça e na ponta da língua, soltou o primeiro comentário simpático que pôde imaginar sobre esse tema. Vai ver ela simplesmente se treinou para dizer isso para toda pessoa gorda sem nem pensar.
Vai ver ela gostou sinceramente do meu penteado. Vai ver ela achou meu penteado horrível e falou que gostou dele só porque gosta sinceramente de mim e quis poupar meus sentimentos. Vai ver ela achou o meu penteado horrível, caga pros meus sentimentos, mas falou que gostou dele porque pensa que pode precisar de mim no futuro.
E daí que mintam pra mim? O que me importa? Que diferença faz?
A Verdade não vale nada.
Se não tenho acesso às emoções e pensamentos profundos das pessoas, por que perder tempo interpelando-os?
Só posso interagir com suas palavras e com suas ações.
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Prisão Verdade
I. A Verdade está no meio: não duvidar, não acreditar
II. O valor da Verdade está em ser útil
III. A Verdade da Ficção: faz diferença?
IV. E daí que não me digam a Verdade?
VI. A Verdade é dada ou descoberta: a Certeza é criada ou construída
VII. Penso que penso, logo existo: A Verdade de Descartes
VIII. Graus de Verdade: o quanto preciso saber para poder saber algo?
IX. Mais conhecimento não quer dizer mais Verdade
XI. Toda Verdade é uma hipótese
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O Curso das Prisões
O meu curso para 2023 será o Curso das Prisões.
Começaremos com a Prisão Verdade.
Nossa primeira conversa livre, no Zoom, para trocarmos ideias e experiências sobre a Verdade, será no domingo, 29 de janeiro. Depois, a aula expositiva será na quarta, 15 de fevereiro.
Por enquanto, nosso grupo de zap do Curso das Prisões está pegando fogo discutindo coisas como:
Afinal, o que é a verdade? Ela existe? Como descobri-la? Temos certeza do que sabemos?
Nossa pretensa certeza sobre o que sabemos é a primeira prisão que nos impede de enxergar todas as possibilidades da vida.
Vem com a gente?
Isso ainda é uma questão pra mim, acredita? mesmo com 40 anos hj, o peso do passado de caminharem na trilha de segredo e silêncio sobre minha condição intersexo fez com que eu vivesse movido a verdade. Junto com essa descoberta veio um desejo de me tornar o que meus pais nunca foram verdadeiros comigo, equilibrar essa balança ainda é um baita desafio.