Porque não vou ver Cem anos de solidão
Mais: Sobre pessoas que levam tiros entrando em favelas cariocas sem querer
Cem anos de solidão está na minha seletíssima lista de romances perfeitos. Pretendo, ainda em 2025, dar o curso Grande Conversa: Romance, onde leremos seis romances perfeitos e Cem anos de solidão estará entre eles.
Agora, acabou de sair uma nova série no Netflix e tem muita gente elogiando. Eu não pretendo assistir, basicamente por dois motivos: porque é uma produção desrespeitosa com o autor e com a obra.
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Desrespeitosa com o autor
García Marquez passou a vida inteira recusando ofertas literalmente de milhões de dólares para adaptar Cem anos de solidão para o cinema. Ele simplesmente não queria que fosse adaptado. E respondia:
“Todo dia me aparece alguém dizendo que um personagem se parece com seu avô, com sua mãe, com um amigo. Se os personagens tiverem todos a cara de astros de Hollywood, do Robert Redford ou da Sophia Loren, isso simplesmente não iria acontecer. Além disso, eu não tenho nada contra cinema. Já escrevi o roteiro de vários filmes. Só não acho que esse texto é para a tela grande.”
Em espanhol, daqui:
“La razón por la cual no quiero que Cien años de soledad se haga en cine es porque la novela, a diferencia del cine, deja al lector un margen para la creación que le permite imaginarse a los personajes, a los ambientes y a las situaciones como ellos creen que es … Y entonces cuando ven a un personaje se les parece a un tío, y hay una señora que es exactamente igual a una señora que ellos conocieron cuando eran niño o que conocieron la semana pasada. O al revés, un día encuentran a una persona que les parece exactamente igual a Úrsula Iguarán. Y en esa forma van pegando caras y van pegando lugares y ellos reconstruyen la novela dentro de su imaginación y hacen una novela para ellos ... En cine eso no se puede [emplear la imaginación]. Porque en cine la cara es la cara que tú estés viendo, la imagen es de tal manera impositiva que tú no tienes escapatoria, no te deja la mínima posibilidad de creación porque te está diciendo todo como es, con una plasticidad, una perentoriedad que no te escapas … Entonces prefiero que mis lectores sigan imaginándose mis personajes como sus tíos y mis amigos y no que queden totalmente condicionados a lo que vieron en pantalla”.
Ou seja, García Marquez não era um ludita anticinema. Ele era o autor da obra e tinha direito de decidir por qual meio ela seria consumida. E passou a vida inteira, a grande sacrifício pessoal (não é fácil negar milhões de dólares), dizendo não, não, não ao cinema.
Mas tudo bem: seus herdeiros já deixaram patente que não têm nenhum respeito pelos desejos do autor. Inclusive acabaram de publicar um romance que ele especificamente não quis publicar em vida, por achar ruim e incompleto.
(Já escrevi sobre a canalhice dos herdeiros literários para a Folha de S. Paulo e, em versão expandida e mais elaborada, só para mecenas.)
Desrespeitosa com a obra
Sou contra tradução de poesia em prosa porque todo poeta, ou seja, toda pessoa que escreveu em verso, por definição também sabia falar e escrever em prosa. Se ela quisesse que aquele conteúdo fosse fruído em prosa, bastava ela ter escrito em prosa, o que era 100% capaz de fazer, e, aliás, é muito, muito mais fácil. Se o poeta escolheu escrever aquele conteúdo em verso, é porque o próprio verso, a própria poesia, era o conteúdo em si a ser transmitido. O meio é a mensagem.
(O poema Cantar do meu Cid, obra fundadora da literatura espanhola, já foi traduzido duas vezes ao português, sempre em prosa. Eu acho que não conta. E estou traduzindo em verso.)
Se Garcia Marquez tivesse querido escrever a saga dos Buendia em uma caretíssima e bem-comportada ordem cronológica, ele poderia ter feito isso facilmente, escrever o livro teria dado bem menos trabalho e demoraria bem menos tempo.
Mas ele escolheu o trabalhão de escrever Cem anos de solidão em uma narrativa circular, de círculos concêntricos que se completam e se confundem, com personagens até com os mesmos nomes.
Se é pra contar em ordem cronológica a história que o autor escolheu contar de forma circular, por que não aproveitar e simplificar também os nomes dos personagens? Ao invés de tantos Aurelianos e Ursulas, poderia-se trocar alguns por Claudias e Pedros, por que não?
Uma coisa é mudar aqui ou ali, tirar uma parte ou inventar outra. A adaptação cinematográfica de O Senhor dos Aneis, por exemplo, é um verdadeiro milagre, apesar de brincar com a cronologia (apresentam a história do anel logo na abertura) e de não incluir o antepenúltimo capítulo, “O Expurgo do Condado”, que é o que dá sentido a todo o arco dos hobbits.
Mas uma mudança tão estrutural assim, de esticar uma narrativa tão bem enredadinha, basicamente demonstra um desrespeito completo pela obra que se está adaptando.
Se a equipe de criação não respeita nem a vontade do autor, nem a estrutura da obra, por que assistir? Só pelos fatos do enredo em si? A página da Wikipédia está aí pra isso.
Não, obrigado.
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Sobre pessoas que levam tiros entrando em favelas cariocas sem querer
O modelo de negócios do tráfico é vender droga pra bacana que entra de carro na favela pra comprar.
Se atirassem em quem entra, não teriam cliente, nem receita. Iriam falir em uma semana.
Então, não é verdade essa lenda que "entrou na favela, morreu". Nem faz sentido isso.
Mas... por uma falha brutal do Estado brasileiro, a favela funciona sim como um Estado à parte. E, como todo Estado, existe um controle de fronteiras mantido por guardas armados.
Então, pra entrar, você tem que passar por esses guardas. Se te mandam parar, você pára. Se te fazem perguntas, você responde. Simples assim. Como qualquer guardinha de imigração.
A regra número um para não ser baleado, seja entrando numa favela carioca ou em qualquer lugar do mundo, é bem simples:
Quando uma pessoa armada, qualquer pessoa armada, seja ela bandida ou mocinha, traficante ou soldado, te mandar parar, você pára.
Se tentar fugir ou resistir, a chance de ser baleado é grande.
E, não, não estou achando essa situação legal, fofa, bonita.
Estou só expondo o fato que traficante em favela não tem nenhum incentivo pra atirar em cliente em potencial. Simplesmente não acontece. 99% dos casos é gente que viu os traficantes armados, se assustou, tentou fugir. Não façam isso.
Uma boa tática é perguntar onde é a boca e falar q quer comprar droga. Ou você pode simplesmente dizer que está perdido. Eles provavelmente vão te indicar a saída.
Os caras não tem interesse em atirar contra ninguém, só gera dor de cabeça pra eles.
Entra gente perdida na favela todos os dias. Se você não for espião da polícia, basta falar a verdade e obedecer as instruções.
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Tampouco vou assistir. Toma um tempo danado. Tempo de LEITURA. Bjs
Ótimo.. abraços e um 2025 pleno de amor , saúde e luz.