10 romances contemporâneos preferidos
Metade escrita por mulheres. 2 em português, 2 em inglês, 2 em espanhol, e 1 cada em italiano, francês, coreano e japonês.
Para vocês não me acusarem de só falar de livro velho, aqui vão, em ordem cronológica, meus 10 romances favoritos publicados no século XXI.
Metade escrita por mulheres. 2 em português, 2 em inglês, 2 em espanhol, e 1 cada em italiano, francês, coreano e japonês. E os seus? Me conta nos comentários?
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1. Capa-e-espada (1996-2011)
Essa série espanhola de sete livros, publicados entre 1996 e 2011, é a minha série de aventuras favorita. No Brasil, só saíram o primeiro (excelente, perfeito) e o segundo (muito bom). O autor prometeu que seriam nove e estou esperando ansiosos pelos dois últimos desde 2011. Mas não tem problema: ao contrários dessa outra série maldita, por coincidência também parada desde 2011!, cada livro espanhol é independente. Se não sair mais nenhum, ficarei triste mas não ficou nenhuma ponta solta. O protagonista é, fácil, um dos meus Top5 protagonistas de ficção favoritos de todos os tempos. Se hoje estou fazendo mestrado em literatura espanhola é em grande parte graças ao interesse suscitado por essa série maravilhosa. Aliás, meu mestrado é sobre El Cid, sobre quem esse autor também escreveu um maravilhoso romance em 2019. Ocasionalmente genial, frequentemente brilhante, sempre divertido de ler, dele recomendo também essa declaração de amor a Alexandre Dumas e aos sebos e essa história maravilhosa de uma tropa espanhola perdida no meio da invasão napoleônica da Rússia. Seu novo romance, lançado mês passado, se chama El problema final e é sobre, claro, Sherlock Holmes e estou louco pra ler.
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2. Romance hermafrodita (2001)
Esse velho genial e rabugento é inacreditavelmente prolífico e prolixo: desde 1979, publica um romance gigantesco por ano e parece que só vai parar se levar um tiro de bala de prata. Não sei de onde tira tempo. Imagino que não faça mais nada da vida. Esse seu romance de 2001 não está nem no meu Top5 de romances preferidos dele, mas o homem é tão, mas tão bom, que entrou fácil nos meus Top10 do século XXI. (Para deixar registrado, meus favoritos, todos do século XX, são esses cinco romances aqui.) Enfim, sobre seu romance de 2001 ele afirmou: “Quis escrever um livro sobre a identidade, fazendo várias interrogações que se colocam de um modo especial numa pessoa travesti.” O romance é narrado pelo filho de um pai que largou a família, trocou de sexo e foi se prostituir. No mesmo estilo fragmentário e neobarroco que caracteriza toda a sua obra, aqui ele tenta criar uma “escrita hermafrodita”, onde cada personagem se cria e se recria através da fala, performando novas identidades sempre instáveis, sempre ambíguas. Dizem que só ainda não ganhou o Nobel porque, pessoalmente, é um ser humano muito, muito escroto. Mas, se fosse só pelo conjunto da obra literária, nenhum autor vivo merece mais. Para quem nunca leu, sugiro começar pelo seu romance de estréia, que, apesar de absurdamente inventivo e não-convencional, é o mais careta e fácil de ler. Depois disso, a cada nova obra, ele foi progressivamente despirocando mais e mais. Não sei se o meu preferido é essa deliciosa farsa sobre literatura, cânone e história, ou essa reflexão sobre poder, política, família.
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3. Independência e escravismo (2002)
Conheci esse autor antes de ser modinha, antes mesmo de ser traduzido para qualquer língua, pois passei muitos anos visitando seu país, estudando sua história e amando sua cultura. Sua série de romances policiais, que começou a publicar ainda no século XX, é absolutamente deliciosa e eu recomendo como excelente porta de entrada para o autor, especialmente para fãs do gênero — embora seu protagonista não seja especialmente interessante. Ele estourou mesmo em todo o mundo com esse romance histórico de 2009, também absurdamente excelente, que eu recomendo a qualquer pessoa, sem restrições. É um romance perfeito, vasto, tolstóico, sobre as utopias e distopias políticas que marcaram a primeira metade do século XX, da Revolução Russa à Cubana. Mas não é o meu preferido. Eu gosto mesmo, muito muito, de um romance histórico que ele lançou em 2002, uma obra bem pessoal, para consumo doméstico e não externo, sobre a história de seu país, que eu tanto amo e tanto estudei, e sobre os dilemas de uma nação latino-americana tentando conquistar a liberdade da metrópole ao mesmo tempo em que tenta manter a maior parte de sua própria população escravizada. É o tipo do romance que nunca teria sido traduzido para o português se o autor não tivesse virado celebridade mundial. E, ao mesmo tempo, que dilema poderia ser mais brasileiro? Em 2016, eu o encontrei na rua e fiz questão de apertar sua mão, agradecer por tudo e dizer que, de todos os seus romances, esse era e sempre seria o meu preferido. “O meu também”, respondeu ele.
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4. Saga de uma mulher escravizada (2006)
O único romance brasileiro da lista, um livro que eu tive o prazer de ir no lançamento e, nos anos seguintes, ter longas conversas com a autora, quando ela veio morar na mesma cidade onde eu estava morando. Disse o Millôr, na época, que era “o livro mais importante da literatura brasileira do século XXI”. Quase vinte anos se passaram e, olha, continua sendo. Ainda não apareceu nada que chegue remotamente perto. Em termos de estilo, o romance não traz inovações. José de Alencar poderia ter escrito. A grande inovação é no foco: José de Alencar nunca teria escrito um livro de mil páginas traçando a vida de uma menina africana, desde o seu nascimento, passando por sua captura e por sua vida como escravizada no Brasil, até sua volta para a África como uma mulher rica, livre e poderosa. Uma verdadeira história enciclopédica do Brasil oitocentista, mas visto pelos subalternos, por aquelas pessoas que nunca tiveram voz, pelos personagens que Alencar, apesar de toda sua genialidade, simplesmente não era capaz de enxergar. Estamos desde 2006 esperando por um novo romance da autora, mas a verdade é, mesmo se ela nunca mais escrever nada, já produziu sim o melhor romance brasileiro do XXI.
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5. Alto custo de ser mulher (2007)
Um romance sobre o alto custo de qualquer decisão que vá contra o script da sociedade e, mais especificamente, como as mulheres pagam um custo impossivelmente alto até mesmo por seguir o script. A protagonista é desde cedo descrita como uma mulher que recusa os padrões socialmente impostos de feminilidade, desde seus sapatos sem-graça até sua recusa de usar sutiã, passando pelo fato de trabalhar em quadrinhos e não ter filhos. Quando decide parar de comer cadáveres, porém, essa contravenção vai longe demais: seu pai lhe agride, seu marido lhe estupra e lhe abandona. Mais tarde, ao dessexualizar seu corpo e sua nudez, não é nem mais considerada capaz de viver em sociedade e é internada. Finalmente, desiste da vida, ou, pra ser mais específico, da vida animal, e decide tornar-se planta, outra escolha naturalmente inaceitável. Sua irmã, enquanto isso, é a mulher ideal: corpo mais delineado, obediente aos pais, casada e com um filho e dona do próprio negócio – não por acaso, no mercado de “feminilidade” por definição: cosméticos. Ao final do livro, a irmã desobediente está à beira da morte, estuprada, agredida, destruída. Já a irmã obediente também está em cacos: desiludida pela maternidade, traída pelo marido manipulador, abandonada pela família – e, de certo modo, até pela irmã. Um romance fundamental para entender o que é ser mulher no mundo de hoje, de um país que tem produzido uma literatura sensacional. Li todos os livros dela que saíram em todas as línguas que consigo ler, mas nenhum foi tão bom quanto. Tem esses dois em catálogo no Brasil e mais um novo que saiu esse ano em inglês e espanhol.
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6. Painel de personagens (2010)
Esse romance de estreia foi publicado em 2010, fez um sucesso absurdo, foi traduzido para 25 línguas, saiu no Brasil no ano seguinte… e fuén. Não chamou atenção por aqui, ninguém fala nele, sumiu. Quando menciono o título, até os maiores literatos nunca ouviram falar. É uma pena… para eles. Verdade seja dita, eu também nunca teria ouvido falar do romance se não fosse uma coincidência. Em 2011, fiz um teste de tradução e a tarefa era traduzir o primeiro capítulo. Saí do teste e fui correndo ler o resto. O romance é uma jóia, perfeito, todo fechadinho, sensacional. Li todos as obras seguintes do autor, mas nenhuma chegou aos pés. Parece mesmo um daqueles livros que ficou sendo gestado e pensado, burilado e aperfeiçoado, por décadas. O romance se passa em um jornal anglófono baseado em Roma e cada capítulo é dedicado a um personagem, todos funcionários. Poderia ser a coisa mais chata e desconjuntada do mundo. Mas nunca vi um autor com tanta empatia e atenção e generosidade para com seus personagens. Cada capítulo, para cada personagem, é maior, mais rico, mais complexo, mais bonito do que muitos romanções por aí. É uma aula de como criar personagens inteiros, profundos, belíssimos, com poucas pinceladas.
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7. Amizade feminina (2011-14)
Se você me pergunta qual foi o maior romance já publicado no século XXI, em qualquer língua, em qualquer país, o que melhor representa nossa época, o que acho mais provável de estar sendo lido daqui a mil anos, é esse. Estou pensando em dar, em breve, um curso para lermos seis romances perfeitos, e esse aqui seria o encerramento, o romance perfeito do nosso tempo. (Os outros romances perfeitos são esses aqui.) De novo, é um romance sem grandes inovações estilísticas, mas com uma grande, gigantesca inovação de foco: falar sobre a vida de mulheres como se elas fossem gente. Mais importante, ele aborda a amizade feminina com a mesma atenção, cuidado e escopo com os quais a amizade masculina sempre foi retratada. Essa série de quatro romances é tudo que a grande literatura tem que ser, a começar pelo enredo: é um novelão delicioso, que nos prende da primeira à última página, nunca difícil, sempre apaixonante, que nos faz amar e odiar as personagens de um jeito visceral que a literatura dita séria quase sempre tem medo de fazer. (Só as novelas da TV ainda conseguem.) Eu não fiz mais nada da minha vida até acabar de ler: só queria parar tudo e voltar para esse mundo. Acabei a série amando profundamente uma personagem (eu casava com a Lila), pegando ranço eterno de outra (Lenu mala do caralho!), e com uma verdadeira coleção de afetos e desafetos que me parecem quase reais. Cada livro é maravilhoso, mas o terceiro supera qualquer expectativa. E não é só: a série também traça um painel muito rico e muito interessante das guerras políticas e culturais da segunda metade do XX, que se aplica inclusive aqui ao Brasil, inserido nesses mesmos movimentos. Os outros livros da autora são excelentes (esse aqui é o meu preferido) mas nenhum teria como chegar aos pés nem da ambição nem da execução dessa série perfeita.
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8. Distopia religiosa e acadêmica (2015)
Apesar de toda sua raiva, ressentimento, misantropia, reacionarismo, e também por seu inegável gênio literário, é hoje o escritor vivo mais importante do mundo, aquele que mais capturou o zeitgeist, aquele que tem que ler lido pra se entender 2023. Não é um grande estilista da língua, não elabora enredos envolventes, não cria personagens memoráveis. Seu grande mérito está em ser um cronista, uma testemunha, um profeta. Nos séculos futuros, quando as pessoas quiserem conhecer as pessoas ocidentais da virada do XX para o XXI, será ele que vão procurar. A precisão de sua sensibilidade profética é assombrosa. Seu primeiro romance, de 1994, previu a ascensão dos incels. Seu livro de 2001, sobre colonialismo e terrorismo, prostituição e turismo sexual, antecipou os atentados terroristas em Báli do ano seguinte. Depois, o meu preferido, mostrando um muçulmano chegando ao poder da França, saiu na mesma semana do atentado ao jornal Charlie Hebdo, em janeiro de 2015. Por fim, sua obra de 2019, sobre agricultura e protecionismo, União Europeia e Brexit, saiu na mesma semana em que os coletes amarelos bloquearam as estradas do país. Alguns de seus romances se dedicam a satirizar mundinhos específicos: o turismo; a universidade; as artes. Todos ótimos, pois sua ironia é cáustica e irresistível. Seus romances mais geniais, porém, são também os mais ambiciosos, nos quais ele profetiza contra nossa civilização em escala verdadeira cósmica. Todos os seus livros são brilhantes, desagradáveis, inevitáveis. Seria muito difícil escolher os melhores. O meu preferido certamente é o de 2015: ele não só é uma distopia onde um muçulmano chega à presidência da França, mas também é uma deliciosa sátira do mundinho acadêmico, de suas inseguranças, de suas briguinhas pelo poder e, mais do que tudo, de sua facilidade em ser cooptado. Esse autor é dos poucos que leio todo livro novo na mesma semana em que é publicado.
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9. Normalidade e não-conformismo (2016)
O romance é sobre uma funcionária de loja de conveniência que se rebela contra as expectativas sociais de viver uma vida “normal” e decide, contra tudo e contra todos, viver da maneira que considera mais adequada. (Entre outras coisas, sem transar e sem namorar.) No romance, todas as pessoas-personagens na vida da protagonista não apenas claramente a consideram louca, como deixam bem claro que sabem (melhor que ela própria) como ela deveria estar vivendo sua vida. A pessoa-leitora, claro, pode escolher ler o livro nessa mesma chave, mas como não percebe que está escolhendo se alinhar com todas as forças antagônicas que oprimem e tiranizam a protagonista, que dificultam e quase impossibilitam que viva sua vida em seus próprios termos? Será que também acham que sabem como ela deveria estar vivendo a própria vida? Esse romance sobre normalidade e não-conformismo coloca a própria pessoa leitora na berlinda. Como escolhemos ler o livro diz muito sobre quem somos: enxergamos na protagonista uma heroína potente em sua jornada para viver sua própria vida em seus próprios termos, ou uma pessoa fraca e perturbada, com dificuldades de lidar com o mundo, e precisando de urgente ajuda psiquiátrica? A autora está claramente apontando um dedo, mas para quem? Para a protagonista ou para o mundo? A errada é ela, por querer viver de maneira tão anormal, ou errado é o mundo, por impor um conceito tão estreito e intolerante de normalidade? Se ela é anormal, ok, vamos tratá-la, afastá-la, entupi-la de remédios. O problema é que fazer isso equivale a inocentar e naturalizar o mundo. Mas e se o mundo for anormal? Ainda faz sentido falar em normalidade em um mundo anormal? Aliás, o que é ser normal? Você é normal? É desejável ser normal? Estou há vinte anos tentando articular essas questões nos textos das prisões. Não seria exagero afirmar que são as questões mais importantes da minha vida. Esse romance articula todas de forma magistral e, por isso, não só é um dos meus dez romances contemporâneos preferidos, mas um dos meus dez romances preferidos de todos os tempos. O romance seguinte da autora articula esses mesmos temas e vai ainda mais longe, também recomendo.
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10. Distopia e esperança (2019)
O último romance da minha lista é uma sequência: o romance original foi publicado em 1985 e é certamente a melhor distopia que já li: brilhante, desesperador, completamente implacável e desesperançado, com um último capítulo que é dos últimos capítulos mais geniais de todos os tempos. Era uma época de abertura política, e a autora, para nos alertar contra nossa complacência, queria mostrar o quão facilmente todas as nossas conquistas poderiam ser perdidas. Trinta e tantos anos depois, em 2019, já no governo Trump, ela voltou a esse mundo, mas agora com outro objetivo: mostrar que, mesmo no fundo do poço, a esperança era possível. Difícil dizer qual dos dois livros é o melhor, pois são tão parecidos e, ao mesmo tempo, tão radicalmente diferentes. Mas qualquer um dos dois, se tivesse sido publicado no século XXI, estaria nessa lista. O primeiro, de fato, é perfeito: cada palavra parece sob estrito controle da autora, não existe fuga possível, o horror é total. Mas, por isso mesmo, é um livro limitado, opaco, não seduz. Já a sequência é maior e mais expansiva, ambiciona mais e nem tudo funciona perfeitamente. O horror, quando é horrível, é ainda mais horrível. Mas ela tem duas coisas que o original não tinha: em primeiro lugar, uma protagonista maravilhosa, sedutora, carismática, que nos faz querer que o romance dure para sempre só para continuarmos ouvindo suas histórias. E, em segundo lugar, ele oferece um fio de esperança: nem todos os horrores duram para sempre. Em 2019, estávamos precisando. E nem sabíamos o que nos esperava em 2020! Também vale a pena ler esse seu outro romance, com uma das melhores vilãs da literatura, mostrando o que acontece com um grupo de quatro amigas quando a mesma mulher malvada passa como um furacão por suas vidas.
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Esses foram meus 10 romances contemporâneos preferidos. Espero que tenham gostado dessa rápida viagem pela literatura. Por favor, sintam-se à vontade para compartilhar esse texto e, por favor, me contem nos comentários quais são os seus dez romances contemporâneos preferidos. Sou um fofoqueiro curioso e quero muito saber. :)
Sugestões anotadas e devidamente listadas na Amazon. Muito obrigada!
muito bom, obrigado Abraços