Minhas autoras mulheres preferidas
Quer ler mais mulheres? Aqui vão algumas das minhas preferidas.
Para quem quer ler mais mulheres, aqui vão minhas pessoas autoras mulheres preferidas, em ordem alfabética.
Na última newsletter, comentei a lista dos 40 melhores livros escritos por mulheres selecionados por Elena Ferrante, e comentados por mim.
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Um aparte: como chamar as autoras?
Sempre me irritou uma certa mania da nossa sociedade — que já me peguei seguindo muitas vezes — de sempre nos referirmos às autoras pelo primeiro nome. Em um primeiro momento, pode parecer fofo. Mas também é condescendente.
Minha relação com Joaquim Maria Machado de Assis, João Guimarães Rosa e Clarice Lispector é a mesma: sou leitor, fã, admirador dos três. Não sou amigo de nenhum deles. Não tenho intimidade com nenhum. Todos morreram antes de eu nascer. Por que então chamá-los de Machado, Rosa e Clarice? Sou mais íntimo dela do que deles? Ela é mais fofinha, mais acessível que eles?
Não é nada que eu nunca corrigiria em alguém. Cada pessoa chama seus autores queridos como quiser. Mas eu, cá pra mim, na minha prática, já faz um tempo e aqui nesse texto, estou me esforçando para quebrar esse padrão e me referir às autoras mulheres com a mesma formalidade e intimidade com a qual me refiro aos autores homens. (Queria muito saber a opinião de vocês, aliás.)
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Svetlana Alexievich
Ganhadora do Nobel de literatura de 2015, Alexievich inventou um novo tipo de literatura, misto de história oral com jornalismo com romance, livros baseados em longas entrevistas, empatia pura, escutatória aplicada, emoção na veia.
Tudo que ela escreve me faz pirar: antes mesmo de ser publicada no Brasil, eu já tinha lido tudo o que saiu dela em todas as línguas que consigo ler.
Recomendo todos os seus cinco livros que saíram em português pela Companhia das Letras são incríveis, eu nem saberia escolher o melhor. Vai depender do seu interesse: Chernobil, União Soviética, Segunda Guerra Mundial, Guerra do Afeganistão, etc.
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Emily Brontë
Uma das frases mais poderosas e mais românticas, mais doentias e mais apavorantes da literatura:
“Eu sou Heathcliff!”
Aliás, todos esses adjetivos servem para descrever esse romance tão perturbador.
Quem acha que O morro dos ventos uivantes (1847) é um romance romântico água-com-açúcar deve ter lido outro livro: é uma das histórias mais duras e cruéis da literatura. O final é fraco, mas a obra como um todo é tão boa que compensa.
No Brasil, recomendo a edição da Clássicos Zahar. Aliás, recomendo todos os livros dessa coleção: são sempre excelentes traduções, muito bem cuidadas e anotadas.
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Kate Chopin
O despertar (1899) é o mais perfeito romance feminista que já li, sobre (você adivinhou) “o despertar” de uma mulher, até então comum, para suas potencialidades humanas e para o patriarcado do sistema.
Bônus adicional: ser um grande romance de Nova Orleans, que ajuda a matar as saudades desse canto do mundo que foi meu lar por seis anos. (Meu depoimento sobre o Furacão Katrina.)
Aliás, também adoro essa coleção Arte da Novela, da editora Grua. A seleção de títulos é excelente (confiram todos aqui), as traduções são ótimas, apesar de só alguns terem notas.
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Marguerite Duras
Existe uma certa qualidade hipnótica, encantatória na prosa de Marguerite Duras: as palavras se repetem de forma insólita, sempre colocadas em posições estranhas onde seu significado é instabilizado, negado, multiplicado, resistindo a qualquer análise lógica, dificultando o trabalho do resenhista, mas criando uma atmosfera inesquecível. (Aliás, a pronúncia correta é Durass, não Durrá.)
Sua obra não chama atenção por seus personagens bem-desenvolvidos: como está sempre fundamentalmente falando sobre si mesma, seus personagens mais memoráveis são seus alter-egos, como a esposa de A dor ou a menina de O amante, talvez suas duas obras-primas Seus romances também não famosos por seus enredos elaborados: ou não tem nenhum – o que efetivamente acontece em Olhos azuis, cabelos pretos? – ou, quando muito, podem ser resumidos em duas linhas, como em O arrebatamento de Lol V. Stein.
Pois o que nos atrai continuamente à obra de Duras, em um movimento que é mais encanto, hipnose ou atração do que um simples “gosto literário”, é justamente sua capacidade de criar atmosferas. Já dizia o ditado: “As pessoas podem até esquecer o conteúdo da sua fala, mas vão sempre lembrar como você as fez sentir.” Qualquer leitora aleatória esquecerá o enredo de mil romances antes de esquecer o desespero cru e sem limites que sentiu ao ler A dor.
Escrevi sobre o obra de Duras para o Rascunho: As atmosferas e dores de Duras. Minha aula avulsa de setembro de 2023 foi sobre Duras e está aberta aqui.
A dor é a maior obra-prima de Duras, pois é o único livro onde ela vence Duras, sua vaidade e seu autocentramento, e simplesmente se permite ser a porta-voz de uma comunidade maior, de uma verdade mais coletiva que suas obsessões pessoais de sempre.
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Mariana Enríquez
Os últimos anos estão vendo um florescer de uma certa literatura bruta, que flerta com o fantástico por um lado e com a crítica social por outro, escrita por jovens mulheres latino-americanas que, naturalmente, têm uma concepção bem diferente de “horror” do que os velhos homens brancos mortos. Dentre muitos nomes que se destacam (gosto bastante da equatoriana Maria Fernanda Ampuero), a melhor, mais poderosa, mais impactante certamente é a argentina Mariana Enriquez. Depois de publicar seus sucessos mais recentes, a Intrínseca lançou ano passado no Brasil sua primeira antologia de contos, Os perigos de fumar na cama, de 2009, onde ela já se mostra uma autora plenamente formada. Sua primeira antologia não deve nada ao resto de sua obra e é igualmente imperdível.
O áudiolivro narrado por Mara Brenner é simplesmente sensacional. Ouvi toda a obra de Enríquez na voz de Brenner e não consigo imaginá-la de outra maneira. Esse livro, por enquanto, só tem em espanhol, mas já tem áudiolivro em português do maravilhoso As coisas que perdemos no fogo, e de seus dois romances, que ainda não li mas estão na fila: Nossa parte de noite, que parece ser sua obra-prima, e Este é o mar.
Todo mês, eu dou uma aula de literatura para minhas pessoas mecenas. A aula de janeiro de 2024 foi sobre os dois livros de contos de Enríquez: Os perigos de fumar na cama e As coisas que perdemos no fogo, e está aberta aqui. (As aulas abertas são só para mecenas, mas ser mecenas é super fácil: basta fazer uma contribuição no meu Apoia-se.)
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Elena Ferrante
Como tudo começou com Elena Ferrante, ela não pode deixar de ser citada. Em breve, darei um curso só com romances perfeitos, e sua Tetralogia Napolitana fará parte. Já podem ir comprando e lendo.
Mas aviso. Além de literatura de primeira, é completamente impossível de largar e acabou de ser relançada no Brasil em um box belíssimo. Vale muito, muito a pena. É a minha recomendação de leitura mais urgente de todas nessa newsletter. E é o presente de natal perfeito para qualquer pessoa, especialmente mulheres, que amam literatura.
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Han Kang
A sul-coreana Han Kang levou o Nobel de Literatura de 2024, uma das mais jovens ganhadoras de todos os tempos, e sim, ela é mesmo isso tudo. Conquista merecidíssima.
Sua obra-prima, A vegetariana (2007), é um romance sobre o alto custo de qualquer decisão que vá contra o script da sociedade e, mais especificamente, como as mulheres pagam um custo impossivelmente alto até mesmo por seguir o script.
A protagonista é desde cedo descrita como uma mulher que recusa os padrões socialmente impostos de feminilidade, desde seus sapatos sem-graça até sua recusa de usar sutiã, passando pelo fato de trabalhar em quadrinhos e não ter filhos. Quando decide parar de comer cadáveres, porém, essa contravenção vai longe demais: seu pai lhe agride, seu marido lhe estupra e lhe abandona. Mais tarde, ao dessexualizar seu corpo e sua nudez, não é nem mais considerada capaz de viver em sociedade e é internada. Finalmente, desiste da vida, ou, pra ser mais específico, da vida animal, e decide tornar-se planta, outra escolha naturalmente inaceitável.
Sua irmã, enquanto isso, é a mulher ideal: corpo mais delineado, obediente aos pais, casada e com um filho e dona do próprio negócio – não por acaso, no mercado de “feminilidade” por definição: cosméticos.
Ao final do livro, a irmã desobediente está à beira da morte, estuprada, agredida, destruída. Já a irmã obediente também está em cacos: desiludida pela maternidade, traída pelo marido manipulador, abandonada pela família – e, de certo modo, até pela irmã.
Leiam.
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Madame de La Fayette
A Princesa de Clèves (1687), um dos primeiros romances da história, foi originalmente publicado de forma anônima. (Não era de bom tom escrever ficção em prosa.) A autoria é atribuída à Madame de La Fayette, mas há controvérsias.
O livro é uma pequena e perfeita jóia, sobre dever, autocontrole, disciplina. Se O despertar é o romance da mulher que rompe as amarras e quebra os padrões, A Princesa de Clèves é o romance da mulher que faz tudo certinho e obedece a todas as regras. Cada um do seu jeito, são ambos grandes romances sobre a condição feminina e sobre as escolhas que estavam abertas às mulheres.
Minha aula avulsa de novembro de 2023 foi sobre a A Princesa de Clèves e é uma das minhas preferidas, especialmente pelo privilégio de poder apresentar esse romance perfeito para tanta gente que não conhecia. A aula está aberta aqui. (As aulas abertas são só para mecenas, mas ser mecenas é super fácil: basta fazer uma contribuição no meu Apoia-se.)
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Clarice Lispector
Desde a onomatopéica primeira frase de seu primeiro livro (“a máquina do papai batia tac-tac… tac-tac-tac… o relógio acordou em tin-dlen sem poeira”) até o tour-de-force brilhante e insuperável de seu romance póstumo, Água viva (inteiramente dedicado a dizer apenas o que não pode ser dito), Lispector criou toda sua obra como uma grande exploração das fronteiras do pensamento, da palavra, da comunicação. Seus contos são apenas os melhores que se produziram no Brasil, especialmente em Felicidade clandestina e Laços de família; A hora da estrela apenas encerra o ciclo de literatura realista de cunho social começado na década de 1930 e estabelece um novo patamar que ainda não foi alcançado; mas A paixão segundo GH e Água viva são alguns dos maiores livros jamais escritos em qualquer língua e fazem parte da grande aventura linguística humana. “Será que consigo escrever sobre isso?”, Lispector parece se perguntar, antes de cada livro. Se a resposta fosse negativa, se fosse objetivamente impossível escrever sobre aquilo, então, ela sentava e escrevia. Sou tão grato a ela por isso que me escorrem lágrimas de alegria pelo rosto. Como agora, escrevendo essas linhas.
A última aula do meu curso Grande Conversa Brasileira foi sobre a obra de Lispector, em especial seus três livros perfeitos: A hora da estrela, A paixão segundo GH e Água viva. (As mecenas do plano Cursos ganham acesso a todas as aulas de todos os meus cursos.)
Esse box traz seus dois melhores livros, Água viva e A hora da estrela, e mais seu primeiro livro, Perto do coração selvagem, em belíssimas edições anotadas capa dura.
Esse outro box, também belíssimo, traz sua obra completa, em 18 livros.
Por fim, esse terceiro box traz todos seus contos, crônicas, cartas. Sim, a Rocco (minha casa editorial, aliás) quer ganhar todo dinheiro possível com Clarice Lispector, e estão certos, porque ela é incrível, e merece ser lida por todo mundo. Cada um desses três boxes dá um excelente presente de natal para qualquer pessoa que ama literatatura.
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Ana Martins Marques
Para mim, poesia é forma. A brincadeira da poesia é ver o quanto pode se dizer dentro daquelas limitações autoimpostas. Mas, se já não existem essas limitações, então o que sobra? Se dá pra falar tudo como se quer, qual é a diferença para prosa? De certo modo, o trabalho do poeta de hoje é mais árduo que do sonetista antigo: precisamos recriar a própria ideia de poesia.
Hoje, na minha humilde opinião, a melhor pessoa escritora em atividade no Brasil, de qualquer gênero (homem ou mulher) ou em qualquer gênero (conto, crônica, poesia, ensaio) é a poetisa mineira Ana Martins Marques.
Eu poderia dizer, só para situar sua produção, que ela se parece com Wisława Szymborska (mais sobre ela abaixo), mas Marques já não deve nada à mestra polonesa e, com menos de 50 anos, ainda vai longe, muito longe.
Li tudo que Marques escreveu. Recomendo O livro das semelhanças (2015) e Risque essa palavra (2021). De novo, presentes de natal perfeitos.
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Cecília Meireles
Cecília Meireles, ao contrário de Marques, foi buscar seu material poético nos gêneros mais antigos. Em sua obra-prima, o Romanceiro da Inconfidência, amarra diversos temas fundamentais para a constituição da ideia de Brasil, com admirável poder de aglutinação e belíssima sonoridade.
Meireles recria, no século XX, a epopéia de nossos inconfidentes – homens iluministas do século XVIII – no estilo dos romanceiros medievais. É a partir dos sons e dos ritmos da nossa mais profunda herança literária portuguesa que ela conta a história dos inconfidentes, a partir das preocupações políticas e prioridades estéticas dos séculos XIX e XX, tecendo diversos fios da nossa História em um único poema, construindo novos heróis nacionais e uma nova visão de Brasil no processo.
Não por acaso, muitos críticos consideram que o Romanceiro da Inconfidência grande epopéia poética brasileira, nosso maior poema e um dos maiores da língua portuguesa, abaixo somente de Camões.
Minha aula avulsa de maio de 2023 foi sobre o Romanceiro da Inconfidência e está aberta aqui.
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Toni Morrison
Ganhadora do Nobel de Literatura de 1993.
Amada, além de ser O grande romance sobre a escravidão africana nas américas, também é uma poderosa reflexão sobre a feminilidade, a maternidade, a negritude.
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Sayaka Murata
Tudo o que eu sempre quis fazer em termos de ficção e nunca consegui está sendo realizado por duas brilhantes autoras asiáticas: Han Kang e Sayaka Murata.
Querida Konbini (2016), da japonesa Sayaka Murata, é sobre uma funcionária de loja de conveniência (no Japão, “konbini”) que se rebela contra as expectativas sociais de viver uma vida “normal” e decide, contra tudo e contra todos, viver da maneira que considera mais adequada. (Entre outras coisas, sem transar e sem namorar.) O mundo permitirá?
Não será essa sinopse que vocês vão ler por aí, aliás. Para boa parte das pessoas leitoras, e para muitas escritoras de resenhas, o romance é sobre uma moça autista (ou neurodivergente) e sua luta com seus problemas mentais. Essa leitura, possível e válida, me parece complacente com a protagonista: ela deixa de ser uma heroína capaz de enfrentar tudo e todos para viver suas escolhas, e passa a ser uma pessoa com problemas mentais vivendo de forma esquisita e, bem, … divergente.
A autora está claramente apontando um dedo, mas para quem? Para a protagonista ou para o mundo? A errada é a protagonista, por querer viver de maneira tão anormal, ou errado é o mundo, por impor um conceito tão estreito e intolerante de normalidade?
Se a protagonista é anormal, ok, vamos tratá-la, afastá-la, entupi-la de remédios. O problema é que fazer isso equivale a inocentar e naturalizar o mundo. Mas e se o mundo for anormal? Ainda faz sentido falar em normalidade em um mundo anormal? Aliás, o que é ser normal? Você é normal? É desejável ser normal?
As questões principais levantadas por Querida Konbini continuam como as questões centrais de Terráqueos, o livro mais recente da autora, mas agora levadas à enésima potência, agora causando incômodo real mesmo à pessoa distraída que tiver passado mais incólume pelo romance anterior.
O que é normalidade? Até que ponto temos direito de viver nossas próprias vidas em nossos próprios termos? Até que ponto o mundo tem direito de fazer com que nos conformemos aos padrões que nos impõe?
E se saíssemos da linha só um pouquinho, como a protagonista de Querida Konbini? Será que o mundo deixava? Será que nossas amigas e familiares permitiriam? E se saíssemos muito da linha, como os protagonistas de Terráqueos? Até onde iríamos? Seríamos capazes?
Sim, as personagens de Terráqueos cometem atos terríveis, radicais, extremados, mas até que ponto esses crimes podem ser colocados na conta pessoal delas, pessoas livres totalmente responsáveis por seus atos, e até que ponto esses crimes são reflexo, sintoma, manifestação da opressão conformista que o mundo exerce sobre todas nós?
Estou há vinte anos tentando articular essas questões nos textos das prisões. Não seria exagero afirmar que são as questões mais importantes da minha vida.
Escrevi sobre as obras de Han Kang e Sayaka Murata aqui: A literatura contra o conformismo. Além disso, minha aula avulsa de julho de 2023 foi sobre a obra de ambas, e está aberta aqui. (As aulas abertas são só para mecenas, mas ser mecenas é super fácil: basta fazer uma contribuição no meu Apoia-se.)
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Raquel de Queiroz
Em 1930, ainda na esteira das reviravoltas causadas pela Semana de Arte Moderna de 1922, uma menina cearense de 19 anos publica um brilhante romance de estréia. O quinze, de Raquel de Queiroz, inaugura uma nova fase na literatura brasileira: o “romance de trinta”, engajado e neo-realista, aboro as grandes questões sociais de cada região. Ao longo do século XX, alguns dos maiores clássicos brasileiros são caudatários do “romance de trinta” Jorge Amado a Graciliano Ramos. Finalmente, só na década de 1970, quando o gênero já vinha se esgotando, A hora da estrela, de Clarice Lispector, encerra o ciclo de literatura realista de cunho social começado na década de 1930 e estabelece um novo patamar que ainda não foi alcançado.
É fácil menosprezar Queiroz. (Que, aliás, foi a primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras.) Qualquer idiota enxerga que Lispector é gênia, mas o estilo de Queiroz é tão límpido, tão perfeito, que faz parecer fácil. Mas não é. O quinze, As três Marias, Memorial de Maria Moura estão entre os melhores romances que temos.
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Mary Shelley
Frankenstein (1818), foi escrito por Mary Shelley, então uma menina de dezenove anos, orfã de uma mãe famosa que morreu em seu parto, Mary Wollstonecraft. Talvez por isso seja um romance sem nenhuma mãe.
A autora cresceu na casa de um homem famoso (seu pai, William Godwin) e cercada de outros homens famosos (seu futuro marido e já pai de seu primeiro filho, Shelley; Byron, etc), que morreram jovens e salpicaram filhos pela vida. Talvez por isso seja um romance sobre masculinidade tóxica e, mais especificamente, paternidade. (Um texto meu: Frankenstein, um romance sobre masculinidade tóxica.)
Uma das coisas mais espantosas da carreira dessa moça brilhante é o quão pouco ela é lembrada. Vejo mil listas de “romances preferidos escritos por mulheres”, como essa da Ferrante, e cadê Frankenstein?, esse romance brilhante que as pessoas aparentemente esquecem que foi escrito por uma mulher e que inaugura a ficção científica? Um romance que pega todo o vocabulário do terror gótico, então na moda, para articular uma narrativa radicalmente nova sobre as ansiedades das revoluções políticas, industriais, tecnológicas em andamento?
Frankenstein é bom demais e, se não pensamos nesse como um “romance escrito por mulher” (e ele é totalmente um romance que só poderia ter sido escrito por uma mulher), é porque estamos com algumas idéias muito essencialistas e estereotipadas do que são “romances escritos por mulheres”.
Em uma nota pessoal: quando eu ainda era uma criança, depois de ler uma biografia do Shelley, Mary se tornou meu primeiro crush.
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Wislawa Szymborska
Sou absolutamente apaixonado pela poetisa polonesa Wisława Szymborska (Visuáva Chamborska), ganhadora do Nobel de Literatura de 1996.
Ninguém desvelou melhor as possibilidades da poesia contemporânea do que essa polonesa doida. Nossa melhor escritora em atividade é Ana Martins Marques porque é continuadora e discípula de Szymborska. E espero que vá ainda mais longe. Recomendo as duas sem restrições.
Uma poesia:
O terrorista, ele observa
(Tradução brasileira de Regina Przybycien)
A bomba vai explodir no bar às treze e vinte.
Agora são só treze e dezesseis.
Alguns ainda terão tempo de entrar;
Alguns de sair.
O terrorista já passou para o outro lado da rua.
A distância o livra de todo mal
E a vista, bom, é como no cinema:
Uma mulher de jaqueta amarela, ela entra.
Um homem de óculos escuros, ele sai.
Uns jovens de jeans, eles conversam.
Treze e dezessete e quatro segundos.
Aquele mais baixo tem sorte, sai de lambreta,
E aquele mais alto entra.
Treze e dezessete e quarenta segundos.
Uma moça, ela passa de fita verde no cabelo.
Só que aquele ônibus a encobre de repente.
Treze e dezoito.
A moça sumiu.
Se foi tola de entrar ou não.
Vai se saber quando os carregarem para fora.
Treze e dezenove.
Parece que ninguém mais entra.
Aliás, um gordo careca sai.
Mas remexe os bolsos como se procurasse algo.
E às treze e vinte menos dez segundos
Ele volta para buscar a droga das luvas.
São treze e vinte.
O tempo, como ele se arrasta.
Deve ser agora.
Ainda não.
É agora.
A bomba, ela explode.
No Brasil, a Companhia das Letras lançou três antologias. Recomendo todas, claro.
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Simone Weil
Simone Weil (1909-43) é uma das pessoas que mais amo na humanidade inteira, no passado e no presente. Como Simone Weil é linda, forte, sensível. Como ela se entrega em cada frase. Como seu raciocínio é límpido, implacável. Tenho vontade de abraçá-la, de apoiá-la, de aprender com ela, de salvar sua vida. Uma das pensadoras mais radicalmente originais de todos os tempos. O cerne de todas as contradições filosóficas do século XIX, explodindo em pleno XX. Todo mundo deveria ler, conhecer, amar Simone Weil.
Existem três Simones: a primeira, pensadora política, anticolonialista, de esquerda, que colocou seu corpo na reta, foi trabalhar numa fábrica; a segunda, a crítica literária que escrevia basicamente sobre os gregos; e a terceira, depois da conversão, pensadora religiosa, autoimolada em solidariedade às vítimas da guerra. As três, na verdade, são a mesma pessoa, em uma mudança belíssima de acompanhar. Cada pessoa leitora escolhe sua Simone Weil preferida.
Para conhecer a pensadora política, recomendo essa coletânea simplesmente maravilhosa.
Para conhecer a pensadora religiosa, esse aqui é o meu preferido.
Eu me apaixonei pelos seus textos políticos e hoje, cada vez mais religioso, amo também a Simone teológica. Nesse texto aqui, falo mais sobre as múltiplas Simones.
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Menções honrosas
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Aula avulsa de HOJE: Classe e gênero em Senhorita Júlia, de August Strindberg
Todo mês, no terceiro domingo, às 16h, eu dou uma aula avulsa de literatura para minhas pessoas mecenas. A aula avulsa de novembro se chamará “Classe e gênero em Senhorita Júlia, de August Strindberg”. Ainda dá tempo de ler, é uma peça curtíssima, menos de 60 páginas. É HOJE!
Acabo de me dar conta que é a segunda obra teatral escandinava oitocentista da qual falo nas aulas avulsas em ano. Primeiro, foi Um inimigo do povo (1882), do norueguês Ibsen, e, agora, Senhorita Júlia (1888), do sueco Strindberg. E falei sobre elas porque, apesar de escritas no século retrasado, são absurdamente atuais: Um inimigo do povo tem tudo a ver com aquecimento global e com a tragédia das chuvas em Porto Alegre (a aula está aberta aqui) e Senhorita Júlia.
Poucas obras europeias podem ser tão brasileiras. Em um fim de festa, a filha do patrão começa a dar em cima de um dos empregados. E aí? Será que ele topa? Pode dizer não para a sinhazinha? Mas e se o patrão souber? Será que perde o emprego? Mas, se não topar, será que não perde a hombridade? E ela? Por que está fazendo isso? O que pode acontecer com uma moça rica se souberem que está agressivamente correndo atrás de um empregado?
Em uma relação que não poderia ser mais desigual, nesse brasileiríssimo embate entre classe e gênero, acontece a surpreendente ação da peça.
A aula acontece HOJE, domingo agora, 17 de novembro, às 16h. Só para mecenas. (Mas é super fácil ser mecenas: basta fazer uma contribuição no meu Apoia-se.)
Beijos e até lá,
Alex Castro
caramba, vc q tinha um blog chamado "liberal, libertino e libertário" milianos atrás? 😆 faz tempo, né 🙃 e gostei muito da lista!
Muito legal, adorei sua empolgação e sinceridade. Não conheço todas, vou começar pela Ana Martins Marques, que eu leio pouca poesia e penso em mudar isso.