A Hora da Estrela, romance nordestino de Clarice Lispector
A história de um olhar: do Sudeste sobre o Nordeste, de Rodrigo S.M. sobre Macabéa
A hora da estrela (1977) foi a última obra publicada em vida por Clarice Lispector. Sempre uma autora introspectiva, voltada para dramas existenciais e psicológicos, nessa sua última obra Clarice enfrenta o desafio de abordar a vida vazia e muda de uma nordestina pobre, no Rio de Janeiro: Macabéa.
O livro poderia ter se transformado em mais um representante tardio do romance de trinta, com a única diferente de mostrar o nordestino no Sudeste ao invés de em sua própria terra, mas sempre enfatizando sua situação precária, patética, submissa, explorada. A genialidade de Clarice, entretanto, está em criar um narrador intermediário entre ela e sua problemática personagem, uma zona tampão: desse modo, A hora da estrela torna-se muito mais do que a simples história de uma nordestina pobre no Rio de Janeiro, mas sim a história de um escritor masculino do Sudeste tentando entender, se relacionar e contar a história de uma nordestina pobre no Rio de Janeiro.
A luta de Rodrigo S.M., narrador de A hora da estrela, simboliza a própria luta da cultura brasileira dominante parar criar, entender, digerir, domar e possuir a cultura do Nordeste. Nesse sentido, A hora da estrela é praticamente uma representação ficcional do processo narrado por Albuquerque em A Invenção do Nordeste.
(Antes de prosseguir, leia meu texto sobre A Invenção do Nordeste.)
Assim como os intelectuais do Sudeste e do próprio Nordeste criam o Nordeste que lhes interessa, Rodrigo S.M., que é ao mesmo tempo carioca mas também nordestino, pois cresceu no Nordeste, tenta criar uma nordestina que possa controlar, dominar o discurso e manipular.
Finalmente, porém, tanto o próprio conceito de Nordeste escapa do controle de seus criadores e torna-se orgânico para a cultura do país como a própria Macabéa se recusa a se encaixar nos limites impostos por Rodrigo e acaba tendo que ser sacrificada - como se sacrifica um projeto fracassado ou um cavalo manco.
A idéia de Nordeste é fundamental para o romance. Já na segunda página, Rodrigo S.M. descarta o conceito de felicidade (palavra doida, inventada por uma dessas nordestinas que andam por aí aos montes), revela que vai contar a história de uma nordestina que viu de relance pelas ruas do Rio e, tão importante quanto, estabelece suas credenciais de nordestino também:
"sem falar que eu, em menino, me criei no Nordeste. Também sei das coisas por estar vivendo." (12)
Existe um movimento interessante nesse trecho: ao mesmo tempo em que despreza a nordestinidade, se referindo às nordestinas que existem por aí como se fossem todas iguais e intercambiáveis, ele também valoriza o conceito, ao se propor a escrever um romance, gênero nobre, sobre a história de uma nordestina, algo que ele também é. Afinal, o leitor poderia se perguntar, ser nordestino é desprezível ou não, digno de orgulho ou não?
O nome de Macabéa só é revelado na segunda metade do livro. Por dezenas e dezenas de páginas, ela é somente "a nordestina", mais uma entre milhões, sem nada que a diferencie ou defina. O próprio ato de tardar tanto em lhe nomear é revelador da pouca importância que ela têm para o narrador. Até que seja nomeada, Macabéa não existe enquanto indivíduo mas somente como representante paradigmática dessa "nordestina" migrante, feia e burra, intercambiável e substituível:
Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam. (14) Ela era um acaso. Um feto jogado na lata de lixo embrulhado em um jornal. Há milhares como ela? Sim, e que são apenas um acaso. (36)
Na arrogância de sua voz narrativa, Rodrigo S.M. deixa claro que Macabéa somente é digna de destaque por estar tendo sua vida narrada por ele: ou seja, a dignidade humana emana dele, e não dela. Sem ele, sem sua narração, sem seu olhar, ela seria realmente somente mais uma. Mais ainda, para sublinhar a suprema desimportância de Macabéa, ele enfatiza que escreve por ele e para ele, por causa de suas necessidades e obsessões, nunca por ela. Macabéa não importa:
"Preciso falar dessa nordestina senão sufoco. (17) Escrevo portanto não por causa da nordestina mas por motivo grave de 'força maior'". (18)
Esse desprezo é completamente explícito, nada sutil. O narrador enfatiza diversas vezes a posição inferior de Macabéa em relação a ele e deixa claro seus esforços para se rebaixar ao seu nível. Impossível não ver nisso um paralelo com a atitude do Sudeste para com o Nordeste:
"Pra falar da moça tenho que não fazer a barba durante dias e adquirir olheiras escuras por dormir pouco, só cochilar de pura exaustão, sou um trabalhador manual. Além de vestir-me com roupa velha rasgada. Tudo isso para me pôr no nível da nordestina." (19)
Ao longo de todo o livro, o Nordeste e os nordestinos são retratados de forma consistentemente negativa. O nordestino é doente do fígado, tem a pele manchada, é magro e raquítico, repleto de defeitos provenientes de maus antecedentes, de pais famintos e da herança do sertão, uma área de febres ruins, doenças e pobreza. (27-28, 58) Através da figura de Olímpico, Rodrigo traça um retrato cruel do homem nordestino: preconceituoso, machista, ladrão, agressivo, burro, aproveitador, seco, inculto, incompetente, arrogante, ambicioso, racista. Ele humilha Macabéa, rouba o relógio de um colega, mata um homem, só sabe falar sobre comida, nem sabe o que é cultura, não admite sua ignorância e, finalmente, troca Macabéa por Glória somente por essa ser loira, gorda, carioca e filha de açougueiro. Rodrigo faz com Olímpico o mesmo que esse faz com Macabéa e humilha-o com requintes de crueldade:
"Trouxera consigo, comprada no mercado da Paraíba, uma lata de vaselina perfumada e um pente, como posse sua e exclusiva. Não desconfiava que as cariocas tinham nojo daquela meladeira gordurosa." (57)
Ou seja, o típico migrante ignorante que nem mesmo domina os códigos da terra para onde migrou.
Para Rodrigo S.M., Macabéa e Olímpico são não personagens humanos, mas símbolos de tudo o que o Nordeste e os nordestinos têm de mais patético e desprezível. Similarmente, para Clarice, Rodrigo também é menos personagem do que símbolo paradigmático da atitude sulista para com o Nordeste. A hora da estrela, antes de tudo, é a história de um olhar.
A Invenção do Nordeste em A Hora da Estrela
Apesar da forte ligação de Clarice Lispector com o Nordeste, apesar de Rodrigo S.M. ser também nordestino, apesar de Macabéa ser de Alagoas, primeiro estado onde Clarice morou antes de ir para Pernambuco, apesar da auto-identidade de Clarice como nordestina, apesar de A hora da estrela ser um romance escrito por uma migrante nordestina sobre um migrante nordestino tentando escrever sobre outra migrante nordestina, apesar de o conceito de Nordeste ser absolutamente central para o romance, apesar de todos esses fatores ainda não houve um estudo específico sobre o Nordeste em A hora da estrela.
Alguns acadêmicos, entretanto, indicaram variados pontos de contato. Lúcia Helena, em seu estudo sobre a problematização da narrativa em Clarice Lispector, aponta que a página de títulos de A hora da estrela remete à forma de exposição dos folhetos da literatura de cordel nas feiras e praças públicas (Helena, 1170), sendo que um dos títulos é "História lacrimogênea de cordel". O próprio Rodrigo faz questão de também deixar claro o débito de sua narrativa para esse gênero:
"Eu bem avisei que era literatura de cordel, embora eu me recuse a ter qualquer piedade." (Lispector, 33)
Cynthia Sloan, escrevendo sobre a questão do narrador masculino, aponta que o ato de mostrar Macabéa longe de sua terra natal, longe dos elementos que lhe conferem identidade, a torna ainda mais patética:
By removing Macabea from the backdrop of the Northeast, laden with potential symbolic insights, Lispector renders her character even more pathetic by distancing her from any possibility of identity. Macabea is lost in a city that has nothing to do with her reality, and her story is being told by a man who cannot possibly know anything about her except that she is pathetic enough to attract his attention. [Ao retirar Macabea do pano de fundo do Nordeste, carregado de potenciais insights simbólicos, Lispector torna sua personagem ainda mais patética ao distanciá-la de qualquer possibilidade de identidade. Macabea está perdida em uma cidade que nada tem a ver com sua realidade, e sua história é contada por um homem que nada pode saber sobre ela, exceto que ela é patética o suficiente para atrair sua atenção.] (Sloan, 101)
O que Sloan, e tantos outros críticos estudando A hora da estrela, nunca mencionam, o que talvez até mesmo ignorem, é a forte nordestinidade da própria autora. Clarice era tão migrante nordestina quanto Macabéa. Em sua juventude, passou pela experiência semelhante à de sua personagem, ao se mudar de Recife para o Rio. Ao criar seu narrador-tampão Rodrigo S. M., ela o fez homem mas, reveladoramente, manteve-o também migrante nordestino, como a própria autora e como a própria personagem. Ignorar todos esses esses dados é não entender um fator essencial na construção tanto de A hora da estrela, como também do romance dentro do romance sendo escrito por Rodrigo S.M. Vale a pena lembrar que A hora da estrela começa, para Clarice Lispector, como a simples história de uma nordestina. Fitz, em seu artigo sobre ponto de vista narrativo em A hora da estrela, é um dos poucos a fazer essa conexão:
Clarice, like Macabéa, knew what it meant to be a young girl obliged to move from her home in a small northeastern city and go to a huge southern metropolis. She knew what it meant to be immediately bombarded with a plethora of utterly new sights, sounds and ideas. She knew what it meant to find herself suddenly among strangers and to have to make up her life as she went along. [Clarice, assim como Macabéa, sabia o que significava ser uma jovem obrigada a se mudar de sua casa em uma pequena cidade nordestina e ir para uma grande metrópole do sul. Ela sabia o que significava ser imediatamente bombardeada com uma infinidade de imagens, sons e ideias totalmente novas. Ela sabia o que significava se encontrar de repente entre estranhos e ter que reconstruir sua vida à medida que avançava.] (Fitz, 202)
Solange Oliveira, em seu artigo sobre configurações culturais em Clarice Lispector, enfatiza que essa dicotomia norte/sul é essencial para se entender não só a literatura brasileira de modo geral, mas também as próprias trajetórias das protagonistas femininas de Clarice: de certo modo, diz Oliveira, todas elas reproduzem simbolicamente a jornada de Macabéa (e da própria Clarice) em direção ao sul, ao Rio de Janeiro, uma terra de fartura econômica, psicológica e espiritual. (Oliveira, 125)
Alguns críticos, quando mencionam a questão do Nordeste em A hora da estrela, colocam o romance na tradição do romance de trinta: regionalista, realista, denunciador de mazelas sociais. Gotlib escreve que A hora da estrela segue a "trilha do romance social dos anos trinta, que tem o Nordeste como espaço da fome e da miséria" mas com a diferença de jogar a protagonista no cenário agressivo da grande capital. (Gotlib, 466) Fitz concorda:
Clarice Lispector has placed A hora da estrela thematically well within the tradition of regionalistically oriented literature and cultural conflict so brilliantly depicted by Euclides da Cunha. (...) It is her special genius to have added to the external story, the one that recounts what happens to an unskilled and unwanted northeastern waif in the big city, an inner drama, the disintegration of a crippled personality, one pathetically incapable of any kind of meaningful self-realization or fulfillment. (...) Macabea's story (...) is kind of updated and urbanized version of what might have been Victória's story, in Graciliano Ramos' Vidas Secas (1938) or what was actually Guta's story, in Rachel de Queiroz's As Três Marias (1943). [Clarice Lispector inseriu A hora da estrela tematicamente bem dentro da tradição da literatura de orientação regionalista e do conflito cultural tão brilhantemente retratada por Euclides da Cunha. (...) É seu gênio especial ter acrescentado à história externa, aquela que conta o que acontece com um nordestino desqualificado e indesejado na cidade grande, um drama interno, a desintegração de uma personalidade aleijada, pateticamente incapaz de qualquer tipo de auto-realização ou satisfação significativa. (...) A história de Macabea (...) é uma espécie de versão atualizada e urbanizada do que pode ter sido a história da Victória, em Vidas Secas de Graciliano Ramos (1938) ou o que foi na verdade a história de Guta, em As Três Marias de Rachel de Queiroz (1943).] (Fitz, 200-201)
Realmente, A hora da estrela se encaixa no processo de invenção do Nordeste apontado por Albuquerque: ao mesmo tempo em que o Nordeste é visto por seus migrantes como um espaço da saudade, ele também é denunciado como um lugar pobre, miserável e desesperançado, de gente ignorante e cruel, explorado economicamente e dominado politicamente.
Mas A hora da estrela é bem mais que isso.
O que salva A hora da estrela de ser apenas mais um entre tantos romances regionalistas na tradição do romance de trinta é a genialidade de Clarice ao criar Rodrigo S. M. como narrador-intermediário entre ela e Macabéa. Na verdade, é o romance escrito por Rodrigo S.M. que se encaixa na tradição do romance de trinta; é Rodrigo S.M. o típico intelectual/artista nordestino morando no Sudeste ao mesmo tempo recriando o Nordeste como um espaço de saudade e também denunciando suas mazelas e tomando sua voz para si. Ao se distanciar de Rodrigo, Clarice ganha deniability. O romance que Clarice escreve é não a história de Macabéa, tantas vezes contada e tão difícil de contar, mas a história de Rodrigo tentando contar a história de Macabéa; é a história do Nordeste tentando entender a si mesmo, tentando se recriar à distância para consumo no Sudeste; é a história de dois nordestinos que, por suas diferenças de classe, simplesmente não conseguem se entender.
Na verdade, a tradição em que Clarice se insere é outra. De acordo com a terminologia de Albuquerque, Clarice estaria dando continuidade ao processo de "desregionalização da região" começado por João Cabral de Mello Neto. Sua crítica ataca o próprio discurso da região, desmonta suas tradições narrativas, expõe seu ridículo e sua hipocrisia. O grande dilema de Clarice (e de Rodrigo) é como escrever como uma semianalfabeta sem enriquecer a linguagem? Como representar o pobre sem empobrecer? Como falar de pobreza de um modo que seja verossímil, como sendo um grandes temas da literatura, ao mesmo tempo em que se tenta não ser oportunista, não tratar a pobreza como somente mais um assunto? (Arêas, 81)
Pois ao criar Rodrigo S.M., Clarice foge brilhantemente dessa questão: seu tema agora é justamente a dificuldade de um intelectual classe-média em assimilar a linguagem de uma semianalfabeta - mesmo quando ambos são migrantes nordestinos no Rio de Janeiro. Desse modo, A hora da estrela acaba se mostrando uma perfeita exemplificação dos conceitos desenvolvidos por Albuquerque em A Invenção do Nordeste sendo aplicados na prática. Enquanto Rodrigo S.M. embarca em uma versão tardia do romance de trinta, Clarice leva a novos patamares o projeto de "desregionalização da região" iniciado por Cabral.
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Referências
Albuquerque, Durval Muniz de, Jr. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. Recife: Massangana, 1999.
Arêas, Vilma. Clarice Lispector com a Ponta dos Dedos. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
Fitz, Earl E. "Point of View in Clarice Lispector's "A Hora da Estrela"" in Luso Brazilian Review, Vol.19, No.2. (Winter, 1982), pp.195-208.
Gotlib, Nádia Batella. Clarice. Uma Vida que se Conta. São Paulo: Ática, 1995.
Helena, Lúcia. "A Problematização da Narrativa em Clarice Lispector" in Hispania, Vol.75, No.5. (Dec., 1992), pp. 1164-1173.
Oliveira, Solange Ribeiro de. "The Dry and the Wet: Cultural Configuration in Clarice Lispector's Novels" in Oliveira, Solange Ribeiro de and Still, Judith, Eds. Brazilian Feminisms. Nottingham: University of Nottingham Press, 1999.
Sloan, Cynthia A. "The Social and Textual Implications of the Creation of a Male Narratings Subject in Clarice Lispector's "A Hora da Estrela"" in Luso Brazilian Review, Vol.38, No.1. (Summer, 2001), pp.89-102.
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