Clarice Lispector, autora nordestina
A hora da estrela é a história-desabafo de uma nordestina por outra nordestina, uma história do Nordeste que Clarice viveu.
Clarice Lispector é, talvez, o escritor brasileiro mais estudado e aclamado internacionalmente. A questão de sua identidade já foi foco de diversos trabalhos: Clarice foi estudada enquanto escritora brasileira, latino-americana, judia, feminista, esotérica, etc. Essa sua versatilidade de identidade é talvez um dos mais importantes elementos do seu sucesso acadêmico. Entretanto, além de mulher, brasileira, latino-americana, russa e judia, Clarice também era — ou se considerava — nordestina.
A autora nasce em uma pequena vila no interior da Ucrânia, filha de pais imigrantes judeus a caminho da América — naquele momento, ainda não sabiam se iriam aos Estados Unidos ou ao Brasil. A família pára na vila somente para o parto e, depois, segue viagem. Sobre sua origem russa, Lispector afirmava:
"Naquela terra eu literalmente nunca pisei: fui carregada de colo." (Gotlib, 132)
Quando a família chega ao Brasil, Clarice contava somente dois meses de idade. Foi alfabetizada em português e nunca aprendeu russo. Em casa, os pais preferiram desde a chegada falar somente em português com as três filhas — não falavam, e nem possuíam livros, em russo ou ídiche, a outra língua do casal. Filha de pais judeus, Clarice também aparentemente nunca praticou a religião nem comentava muito o assunto. Em uma entrevista, logo depois de confirmar ser judia, ela emenda, como se quisesse fugir da questão:
"Enfim, sou brasileira, ponto e ponto." (66)
Apesar da alfabetização em português, Clarice falava com um fortíssimo sotaque. Mais tarde, casou com um diplomata e passou quase vinte anos acompanhando-o por várias cidades do mundo. Todos esses elementos (religião exótica ao Brasil, nascimento e grande parte da vida adulta no exterior, forte sotaque) contribuíram para o surgimento de diversas lendas e mitos sobre a identidade nacional e linguística de Clarice Lispector. Muitos sustentavam que ela não era brasileira e não sabia falar bem o português. (132)
Seu forte sotaque, entretanto, era proveniente de uma língua presa que tornava impossível a pronúncia correta da letra R. Sua biógrafa Nádia Gotlib registra que a palavra "aurora" lhe atormentava particularmente (132). Estritamente falando, seu único sotaque era um leve sotaque nordestino, da infância passada no Recife e em Maceió. Não apenas isso, o Nordeste marca também seu vocabulário: falava frequentemente expressões nordestinas como "sei não", "oxente!" e "virgem maria!" (122). Em uma de suas crônicas para o Jornal do Brasil, depois reunidas no livro A Descoberta do Mundo, Clarice revela o impacto no Nordeste em sua vida:
Criei-me em Recife, e acho que viver no Nordeste ou Norte do Brasil é viver intensamente e de perto a verdadeira vida brasileira que lá, no interior, não recebe influência de costumes de outros países. Minha crendices foram aprendidas em Pernambuco, as comidas que mais gosto são pernambucanas. E através de empregadas, aprendi o rico folclore de lá. Somente na puberdade vim para o Rio com minha família: era a cidade grande cosmopolita que, no entanto, em breve se tornava para mim brasileira carioca. (Citada em Gotlib, 114)
E é justamente essa nordestinidade tão menosprezada pelos críticos, e também tão sutil na obra de Clarice, que vai explodir em seu último romance, A hora da estrela. Olga Borelli, melhor amiga de Clarice, presenciou o primeiro estalo criativo do livro. Estavam ela e Clarice na Feira de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, um tradicional ponto de encontro de migrantes nordestinos, com muita dança, diversão, comida. Assim como seu narrador Rodrigo S.M., que tem a idéia do romance ao pegar de relance o sentimento de perdição de uma moça nordestina nas ruas do Rio de Janeiro, Clarice também tem a idéia de escrever A hora da estrela ao ver uma moça nordestina na Feira de São Cristóvão. Segundo sua amiga Olga Borelli, Clarice sentou-se imediatamente em um banco e escreveu, ali mesmo, cinco páginas enquanto comia beiju e rapadura. (473) Sobre Macabéa, que como ela, também veio de Alagoas para o Rio, Clarice disse:
“Ela é nordestina e eu precisava botar pra fora um dia o Nordeste que eu vivi.” (465)
Ou seja, apesar de ser um romance magistral e cósmico, apesar de tratar da vida e da morte, do cosmos e da biologia, da arte e da escritura, A hora da estrela é, antes de tudo, a história-desabafo de uma nordestina por outra nordestina, uma história do Nordeste que Clarice viveu.
(Esse texto continua aqui: A Hora da estrela, romance nordestino de Clarice Lispector)
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Referência
Gotlib, Nádia Batella. Clarice. Uma Vida que se Conta.
(Os números de página se referem à edição da Ática, de 1995.)
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