A Pedra do Reino, romance apocalíptico de Ariano Suassuna
O apocalipse não é um livro: ele é todo um gênero literário
O Apocalipse de João de Patmos, livro que fecha a Bíblia, é somente um dentre vários exemplos do gênero literário apocalíptico. O Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, obra-prima de Ariano Suassuna, é outro.
(Será a leitura da próxima aula do curso A Grande Conversa Brasileira. Ainda dá tempo de participar.)
Do capítulo 19, versículos 11 a 21, do Apocalipse de João, escrita na Ásia Menor por volta do final do primeiro século da Era Comum:
"Vi os céus abertos e diante de mim um cavalo branco, cujo cavaleiro se chama Fiel e Verdadeiro. Ele julga e guerreia com justiça. Seus olhos são como chamas de fogo, e em sua cabeça há muitas coroas e um nome que só ele conhece, e ninguém mais. Está vestido com um manto tingido de sangue, e o seu nome é Palavra de Deus. Os exércitos dos céus o seguiam, vestidos de linho fino, branco e puro, e montados em cavalos brancos. De sua boca sai uma espada afiada, com a qual ferirá as nações. “Ele as governará com cetro de ferro.” Ele pisa o lagar do vinho do furor da ira do Deus todo-poderoso. ... Vi um anjo que estava em pé no sol e que clamava em alta voz a todas as aves que voavam pelo meio do céu: “Venham, reúnam-se para o grande banquete de Deus, para comerem carne de reis, generais e poderosos, carne de cavalos e seus cavaleiros, carne de todos — livres e escravos, pequenos e grandes”. Então vi a besta, os reis da terra e os seus exércitos reunidos para guerrearem contra aquele que está montado no cavalo e contra o seu exército. Mas a besta foi presa, e com ela o falso profeta que havia realizado os sinais miraculosos em nome dela, com os quais ele havia enganado os que receberam a marca da besta e adoraram a imagem dela. Os dois foram lançados vivos no lago de fogo que arde com enxofre. Os demais foram mortos com a espada que saía da boca daquele que está montado no cavalo. E todas as aves se fartaram com a carne deles." (Apocalipse 19, 11-21)
Do Folheto LXXII do Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, escrito no Brasil por Ariano Suassuna em 1971:
"Quando chegar o Século do Reino, e for anunciada a Vigília de fogo, o Senhor enviará a Coluna de brasas sobre o acampamento e o território dos estrangeiros e dos criminosos e poderosos aliados seus. A Onça de fogo do Sertão destruirá seus Exércitos, despedaçando as rodas dos carros-de-combate, e todos os traidores serão arrojados do Sertão para o fundo do Mar. Dirão assim os Estrangeiros: "Fujamos dos Brasileiros e outros Latinos, porque o Deus de Fogo peleja a favor deles e contra nós!" E o Deus de Fogo dirá a Quaderna: "Estende a tua Mão desde a Pedra do Reino até o Mar, para que as águas de Sal se voltem contra os Estrangeiros e corroam seus Carros diabólicos, suas máquinas de fogo e sua cavalaria de engenhos de chamas!" E assim será! Quando Quaderna estender sua mão, quando o Rei brandir o seu Cetro e o Profeta seu Báculo, o Príncipe do Povo, o Moço-do-Cavalo-Branco será suscitado e o Mar fará soçobrar os traidores ... O Senhor do Fogo ordernará a Sinésio, filho de Dom Pedro Sebastião, dizendo: "Anima-te, sê forte e tem coragem, porque tu farás entrar os filhos do Sertão no Reino que lhes prometi; e Eu estarei com o Povo." Como de fato: logo que Quaderna acabar as palavras deste Canto e desta Lei no seu Livro, ordenará aos Sertanejos que levem a Arca-de-Pedra-da-Aliança ao Trono. E dirá: "Tomai este Livro e enterrai-o ao pé das Torres de pedra da Catedral encantada do Reino, para que ele sirva de fundamento e pedra-angular para o Império do Brasil." (Romance da Pedra, 557-558)
A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, possui notáveis semelhanças e pontos de contato com a literatura apocalíptica de modo geral e, mais especificamente, com o Apocalipse de João de Patmos, obra que Suassuna conhece e admira. Em ambas as obras, temos um narrador culto e de classe alta, falando para uma comunidade oprimida ou despreciada, prometendo ao povo a destruição de um inimigo implacável e a instalação de um mundo melhor.
(Quando em itálico e em maiúsculas, o termo Apocalipse irá se referir ao último livro da Bíblia cristã, também conhecido como Apocalipse de João, Apocalipse de João de Patmos, Apocalipse de São João, Apocalipse de São João Evangelista, etc. Quando não em itálico e em minúsculas, o termo apocalipse irá se referir ao gênero literário apocalíptico como um todo. Antes de continuar, leia meu texto O apocalipse como gênero literário.)
Traços Apocalípticos em A Pedra do Reino
Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, (1971), de Ariano Suassuna, é definido por seu narrador, Pedro Dinis Quaderna, como
"romance heróico-brasileiro, ibero-aventuresco, criminológico-dialético e tapuio-enigmático de galhofa e safadeza, de amor lendário e de cavalaria épico-sertaneja."
O livro contém diversas estruturas narrativas, entre elas romance de formação, policial, digressiva ou sátira menipéia, metalinguística e, a que mais nos interessa, mítico-simbólica. Ou seja, uma narrativa mítica, com base em mitos que são invenções coletivas do povo brasileiro. (Maria-Odilia Leal-McBride, Narrativas e Narradores em A Pedra do Reino , 41-42, 161)
Existem muitos pontos de ligação entre a obra de Suassuna e o gênero apocalíptico clássico. Para começar, Suassuna conhecia e apreciava essa literatura ao ponto de nomear umas de suas peças com uma imagem apocalíptica, como veremos abaixo. Em entrevista ao jornalista Leandro Lopes, em janeiro de 2007, conversando sobre a recente adaptação de A Pedra do Reino para a televisão, Suassuna demonstra como associa seu romance ao Apocalipse:
"Eu avisei desde o começo. As pessoas me perguntavam, quando se falavam que iria fazer a ‘Pedra do Reino’: ‘você acha que vai ser um novo Auto da Compadecida?’ Eu dizia: ‘nem espere’. Espere não porque é outra obra. É uma obra mais complexa e não é uma obra que tenha a comunicabilidade popular que tem o ‘Auto da Compadecida’ não. Veja bem, não sei se vocês já leram o Novo Testamento, se não leram, eu recomendo que leiam, tá certo? No Novo Testamento vocês têm os Evangelhos que são narrativos, não é? Por exemplo, o Evangelho de São Mateus começa: ‘livro da geração de Jesus Cristo, filho de Davi, que gerou Abraão, que gerou a Isaac e por ai vai, tá certo?’ Uma coisa bem simples, bem narrativa. Ai você tem o Apocalipse, não é? Pois bem, aquilo é um poema. Eu não estou falando no sentido religioso não, estou falando no sentido literário. O profeta Ezequiel é um grande escritor, São João Evangelista é um grande escritor. Repare que beleza: ...e viu-se um grande sinal no céu: uma mulher vestida de sol, tendo a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça... repare a imagem! Que coisa linda! Acho tão lindo que chamei minha primeira peça de ‘Uma mulher vestida de sol’, baseada nele. Então o Luiz Fernando poderia ter optado em fazer uma narrativa mais evangélica, mas ele optou em fazer uma narrativa mais apocalíptica. A meu ver, fez muito bem (risos). Gostei muito. Agora, tenho a lucidez suficiente para saber que o público comum não pode ter gostado da ‘Pedra do Reino’, como gostou do ‘Auto da Compadecida’" (grifos nossos)
(É uma tradição milenar atribuir a autoria do Apocalipse a São João Evangelista, ou seja, o mesmo autor do Evangelho de João. Atualmente, entretanto, grande parte dos estudiosos bíblicos concordam ser dois autores diferentes e, para diferenciá-los, atribuem o Apocalipse a João de Patmos, pelo nome da ilha onde ele estava quando redigiu a obra.)
Suassuna não apenas demonstra fluência no manejo das imagens apocalípticas como também reconhece em seu romance uma estrutura se não apocalíptica pelo menos que se presta a uma utilização apocalíptica. Não só ele: seu narrador e protagonista, Quaderna, também parece saber bem a tradição onde está inserido. Além de inúmeros trechos francamente apocalípticos, o personagem algumas vezes menciona o gênero abertamente.
O Folheto LXXIII, por exemplo, é entitulado "Cavalhadas de São João na Judéia", onde Quaderna coloca o autor do Apocalipse participando de uma cavalhada em pleno Oriente Médio, fazendo assim uma conexão explícita entre o sertão nordestino e o deserto bíblico, dois locais, aliás, repletos de mitologias. Como escreve Franklin de Oliveira: "De remotos tempos, desde o Antigo Testamento, babilônios e assírios consideravam o deserto o habitat natural dos demônios." (Leal-McBride, 169)
Ao explicar suas alucinações e visões, que ele chama de "viragens", Quaderna explica que esses "acessos apocalípticos" acontecem quando é atacado pelo "mal sagrado", do qual também sofriam muitos personagens ilustres, como Dom Pedro I, Machado de Assis e dois profetas, Ezequiel e "o Profeta João de Patmos, mais conhecido como São João, O Evangelista." (Leal-McBride 563)
Segundo Quaderna, suas "virações" são "coisa muito venerável", uma vez que também aconteciam com esses santos homens. Ou seja, o protagonista-narrador e, em conseqüência, o próprio livro, se colocam como francamente continuadores de uma tradição apocalíptica que vem direto do seu maior praticante, João de Patmos, autor do Apocalipse.
Tendo em mente a distinção entre a literatura profética (preocupada com o presente e clamando por mudanças) e a apocalíptica (que desiste do presente e olha para o futuro), é interessante reparar as oposições que Suassuna realiza, primeiro, na entrevista, entre os evangelhos e o apocalipse, e, depois, no texto, através da boca de Quaderna, entre Ezequiel, talvez o maior dos profetas, e João, autor do Apocalipse.
Seu A Pedra do Reino nos parece muito mais um lamento e um consolo do que um chamado para ação e para a mudança, muito mais apocalíptico do que profético. Quaderna (e, em alguma medida, Suassuna) são filhos de uma classe social, ou seja, representantes de uma comunidade, que está em franca retirada histórica. Perderam sua hegemonia política e econômica com a Revolução de 30 e agora lhes sobra lamentar o passado glorioso (sic) e sonhar um futuro que não acontecerá.
Os folhetos permitem a Quaderna uma fuga para um mundo de sonhos que representa uma alternativa à dura realidade, mas ele percebe a ilusão e sabe que não tem como mudar o mundo. Por isso, torna-se uma figura tragicômica, preso entre o mundo mágico e encantado que ele cria com base nas tradições populares e a dura realidade do seu ambiente, onde homens se digladiam por poder econômico e político. Por fim, Quaderna deseja restaurar a harmonia ao mundo turbulento a sua volta e um dos temas principais da novela é essa sua busca por "redenção e alívio do sofrimento." (Mark Dinneen, "The Relationship Between Erudite Literature and Popular Culture in the North East of Brazil: Ariano Suassuna and Armorial Art", 33)
Em entrevista ao Suplemento Literário Minas Gerais (7nov87), Suassuna admite que muitos dos erros de interpretação do Brasil que cometeu se derivaram de uma defesa do seu pai, líder das forças rurais durante a Revolução de 30 e assassinado logo no começo dos distúrbios:
"Desde menino comecei a ouvir ataques muitos pesados, violentos a meu pai, por pessoas que tinham uma visão maniqueísta da história e apresentavam tudo que era representado pelo elemento rural como obscuro e tudo que era representado pelo urbano como o bem e o progresso. E eu, num movimento legítimo de defesa ao meu pai, comecei a assumir a posição contrária."
Para Quaderna, e como vimos na entrevista, também para Suassuna, uma das questões primordiais é justamente uma defesa agressiva dos valores ancestrais constitutivos de sua nacionalidade - nacionalidade essa que é construída em termos bem restritos, englobando praticamente só a região do narrador e seu "povo".
O Movimento Armorial, fundado por Suassuna, tinha como objetivos, reafirmar valores tradicionais em um contexto de mudanças aceleradas, em uma reação das classes dominantes, ligadas à antiga elite rural patriarcal, contra o estilo de vida mais moderno e industrial vindo do sul; defender as expressões culturais populares das influências cosmopolitas e também recriá-las de modo mais erudito como uma contribuição ao processo de nacionalismo cultural (Dinneen 23, 27):
"As correntes mais "estrangeiras" e "cosmopolitas" querem obrigar os brasileiros a se envergonharem de suas peculiaridades, de suas singularidades. Só o povo é que mantém até os dias de hoje essas características brasileiras que nós, atualmente, procuramos defender e recriar, contra a corrente "europeizante" e "cosmopolita", o que fazemos procurando ligar nosso trabalho de escritores e artistas criadores à Arte, à Literatura e aos Espetáculos populares." (Dinneen 24)
Por isso, boa parte da arte de Suassuna (como em Gilberto Freyre e José Lins do Rego) acaba nostalgicamente recriando a velha ordem patriarcal do Nordeste, sem jamais confrontar as profundas mudanças sócioculturais que aconteciam na região. Por fim, frustrado pela falta de apoio, isolado tanto pela direita quanto pela esquerda, Suassuna anuncia o fim da carreira e da vida pública. (Dinneen 27-28)
Em A Pedra do Reino temos um narrador de uma classe social em retirada histórica, em uma região economicamente atrasada do país, que sente que a sua cultura e seu meio de vida estão sob ataque dos "cosmopolitas" e que, para piorar, é pessoalmente perseguido pelos funcionários desse governo inimigo e ilegítimo, ao ponto de estar, no momento da narração, preso. São justamente situações históricas (e pessoais) como essas, de impotência frente a um poder maior e de nacionalismo extremado e exclusivista ("nós contra eles") que dão origem às narrativas apocalípticas, verdadeiras válvulas de escape para essa consciência em crise. Sem saída e sem ter pra onde ir, não é de se surpreender que Quaderna se volte para visões de um glorioso futuro de vitórias.
As visagens de Quaderna representam a "a transição do realismo da visão coletiva (do sertanejo) do mundo, realismo tingido de ironia, para o mito não deslocado do mundo demoníaco." A figura do rapaz do cavalo branco, nesse contexto, simbolizaria a "esperança de redenção como líder no movimento em direção ao mundo apocalíptico." (Leal-McBride 162)
Uma das características da literatura apocalíptica é a luta cósmica entre duas poderosas forças pelo controle do universo. Em oposição ao rapaz-do-cavalo-branco, "líder divino cuja função seria a de instaurar o paraíso terrestre", temos a Bicha-Bruzacã, "o Mal, o Enigma, a Desordem!", encarnação de tudo o que é mau e ruim.
Há também a curiosa simbologia da onça: por um lado, a cosmogonia da região equipara o mundo a uma onça e os homens, a seus piolhos; a morte tem forma de onça, a Onça-Caetana; a Bicha-Bruzacã também tem ocasionalmente forma de onça; e, por fim, no dia chave da ação do romance, quando o rapaz-do cavalo-branco entra em Taperoá, o Profeta Nazário conta ao povo que teve uma visão de uma onça, cuja captura garantiria todos os "bens" relacionados ao mundo apocalíptico: felicidade, riqueza, beleza, poder e imortalidade. Afinal, a onça é símbolo do bem ou do mal? É símbolo do mundo que acaba ou do velho mundo que se cria? Existirá espaço para essa onça mitológica nos dois mundo? Não sabemos. (Leal-McBride, 173-4)
Há um número tão grande de visagens, visões, virações, alucinações e discursos apocalípticos de modo geral em A Pedra do Reino que seria impossível mencioná-los todos. Vamos nos ater mais detalhadamente somente ao folheto onde os traços apocalípticos estão presentes com maior clareza: o Folheto LXXII, chamado "O Almoço do Profeta". No histórico 1º de junho de 1938, enquanto a chegada do rapaz-do-cavalo-branco está transformando "um grupo social organizado segundo a estratificação feudal em uma multidão histérica", Quaderna, ao invés de participar da cavalhada que tanto apreciava, está almoçando sozinho, em uma laje, do lado de fora da cidade, realizando rituais litúrgico-guerreiros de sua Igreja Católica Sertaneja, em preparação para o tempo de Pentecostes, que naquele ano coincidiria com seu signo de Gêmeos. (Leal-McBride, 173)
Depois de um almoço cercado de sinais e portentos, Quaderna vai até um altar e começar a "salmodiar" um discurso extremamente nacionalista e exclusivista - mas no caso a nação a ser defendida não é o Brasil-nação, mas o Brasil verdadeiro, o sertão, contra o Brasil falso, o Brasil do litoral, o Brasil cosmopolita:
"Essa República dominada por burgueses gordos é, sem dúvida, um grande mal para o Império do Sertão do Brasil! ... O Presidente da República, seus cupinchas e os gordos ricos, entendem que podem governar, trair e vender o Império do Brasil a seu bel-prazer! No entanto, o Brasil está predestinado para o Monarca Castanho do Povo, aquele que foi legitimamente constituído por Deus para fazer o bem e a grandeza do Povo Brasileiro. ... Todos os Brasileiros deveriam estar obedecendo a Quaderna, Pontífice, Rei e Profeta, porque, obedecendo a ele, é a Deus que todos obedecem! ... É erro, e erro grave, dizer que a família real dos Quadernas não deve mais governar o Brasil, como fez há mais de um século, na Pedra do Reino do Sertão do Brasil! Uma coisa é o Sertão, outra é o Mundo! Se o Mundo fosse divino, ainda se poderia duvidar. Mas o Sertão é que é divino, e o Sertão só jura e pune pelo sangue real dos Quadernas! Por isso, esta República da iniquidade cairá por terra e, mais cedo ou mais tarde, Deus fará a devida justiça! A República se acaba breve: é princípio de Espinhos! O Príncipe é o verdadeiro dono do Brasil! Das ondas do Mar, Dom Sinésio Sebastião sairá com todo o seu Exército. Tira a todos, no fio da Espada, desse papel de República, e o sangue há de ir até a junta grossa. ... O Tempo está chegando, o Século vem vindo! ... Na Pedra do Reino, há um século, Dom João II, O Execrável, mandou sacrificar sete mil Cachorros que, se o Reino tivesse continuado, teriam ressuscitado como indômitos Dragões, para devorar os poderosos e confirmar o Império, acabando a escravidão do Povo, a traição do Brasil, e instaurando, de uma vez pra sempre, a justiça e a monarquia do Povo, através da Coroa de couro e prata da Onça Malhada do Sertão!" (553-5)
Nada poderia ser mais apocalíptico do que o sujeito pobre, isolado, marginalizado e, de fato, fisicamente encarcerado, predestinando um futuro de grandeza e realeza para si. Os elementos apocalípticos são numerosos: iminente fim dos inimigos, sangue correndo, um herói cósmico (Dom Sinésio Sebastião, misturando o rapaz do cavalo branco com Dom Sebastião), o uso do Dragão (símbolo apocalíptico por excelência), recurso à História para estabelecer a legitimidade da vitória final, justiça para sempre. Por fim, sobre essas visagens esperançosas de Quaderna, escreve Leal-McBride:
"Embora queira criar uma sociedade justa em que os pobres em lugar de serem oprimidos se elevem ao nível das classes dominantes (466), Quaderna não parece conceber a nova sociedade com as características do paraíso terrestre que é a finalidade de todo movimento messiânico. ... Realista que é, Quaderna sabe que a vitória sobre a morte e sobre o tempo - esperança manifestada pelo "profeta" Nazário, não será obtida nesse mundo, e que o único consolo para a angústia metafísica se encontra no ritual religioso. Apesar das limitações de suas esperanças, estas - sobretudo devido à latitude política que dá ao seu movimento, pois o Quinto Império em termos puramente humanos equivale à hegemonia, no caso, do Brasil - são bastante elevadas." (178)
Não deixa de ser digna de nota uma leitura seletiva que, ao mesmo tempo em que aceita sem ressalvas todo o discurso de Quaderna, questiona as credenciais de Nazário chamando-o de "profeta" entre aspas. Enquanto o próprio texto de Suassuna se encarrega de sabotar continuamente Quaderna, ridicularizando-o a cada momento, Leal-McBride parece comprar seu discurso "monarquista de esquerda" e acreditar que ele sinceramente deseja criar uma sociedade mais justa — ignorando que, para Quaderna, essa sociedade seria mais justa exatamente por tê-lo como Rei do Império do Brasil e sumo-pontífice da Igreja Católica Sertaneja. Apesar de imerso em sonhos de grandeza completamente irrealizáveis, Leal-McBride o considera um "realista".
Ao fim do folheto, o romance mais uma vez sabota a voz de Quaderna e corrói sua credibilidade. Depois do longo discurso que citamos, Quaderna ergue a "água suplicial" para Deus e pede por fé, supostamente para que possa acreditar em seu próprio discurso:
"Meu Deus Sertanejo! Minha Onça Malhada, meu divino Jaguar de sangue, fogo e pedras preciosas! Eu não creio em nada! Vinde inflamar meu sangue com aquele dom de fogo chamado a fé, mesmo que vossa fé venha a me queimar com a ventania deste meu Reino sagrado e sangrado, o Espinhara, o "sertão" incendiário e abrasador!" (558)
(Se gostou, não deixe de ler o artigo sobre o apocalipse como gênero literário.)
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Alex