O paradoxo do "Paradoxo da tolerância"
Não só perdemos a vergonha de odiar, como agora exigimos publicamente nosso direito ao ódio.
Se a pessoa odeia algum grupo, se acha que com eles não tem diálogo, então, essa pessoa é o problema. Seja se odeia imigrantes ou crentes, gays ou gado.
E pior ainda se responde citando o “Paradoxo da Tolerância”, essa desculpinha fácil pra justificar nossa intolerância.
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O tal “Paradoxo da Tolerância”
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O paradoxo do “Paradoxo da Intolerância” é o seguinte:
Se a pessoa defende seu direito de ser intolerante com outro grupo de pessoas — porque ela tem um bom motivo, claro! — o que a separa das pessoas ditas intolerantes que ela quer combater?
Afinal, elas também acham que têm um bom motivo para serem intolerantes.
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Uma resposta ao entendimento apressado do “Paradoxo da Tolerância”
Mesmo se você concorda com essa tolice do “Paradoxo da Intolerância” (eu não) perceba que, para Popper, os intolerantes que não deveriam ser tolerados… eram os armados e fisicamente violentos.
Não os comediantes que contam piadas, mesmo se forem as piores piadas do mundo, as mais desagradáveis e nojentas. Não quem vota no outro partido. Não seu tio bolsonarista.
Só os que saem armados na rua.
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Aliás, Popper era um pensador de direita, extremamente crítico da esquerda. Então, é especialmente irônico ver pessoas de esquerda abraçando essa bobagem de “Paradoxo da Intolerância” achando que ele lhes dá o direito tão-desejado de serem intolerantes com o tio bolsonarista ou com a tia evangélica.
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As pessoas citam o “Paradoxo da Intolerância” e falam em “combater nazistas e fascistas” (aqui, nos comentários), mas não é porque querem pegar em armas ou colocar o delas na reta: querem é licença para serem grossas com o tio.
Tio bolsonarista eu tenho vários, mas pessoa nazifascista eu nunca vi. Cadê? Quem já viu na vida real? Ou é tipo bebê reborn, que só existe na internet?
E pra quem disse que viu: ok, então. E daí? O que você fez?
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As pessoas não querem enxergar, ouvir o Outro: querem o prazer de sentir sua onda de Raiva Diária Matinal. E, pra justificar essa raiva, qualquer justificativa é válida, inclusive o fato desse Outro não ouvir o Outro, não enxergar o Outro.
Parece que estão falando:
“Se eu só conseguir encontrar as pessoas certas pra odiar, então, aí vai ficar tudo bem!”
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Postei essas reflexões no Instagram e, infelizmente, apareceram muitas pessoas nos comentários defendendo de forma agressiva seu direito de ser intolerantes.
Às vezes, tenho a impressão que é isso que muitas pessoas não-secretamente estão buscando: um bom motivo, moral e justificado, pra poderem odiar alguém e ainda assim se sentirem as heroínas da história.
Não vou responder comentários desse texto, mas me reservo o direito de bloquear qualquer pessoa que eu considere que saiu da linha.
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Quem confunde bloquear pessoas desrespeitosas num espaço privado (onde ninguém tem o direito de estar) com ser intolerante com outras pessoas no espaço público (que por definição é de todos) precisa entender melhor a diferença entre público e privado.
Não é intolerante uma pessoa decidir que, na casa dela, só entra quem ela quer — é por isso que a casa é dela. É intolerante essa mesma pessoa querer prender alguém por falar uma coisa que ela não gostou ou por fazer parte de um movimento político que ela não gosta.
Não existe intolerância no espaço privado de alguém, só no espaço público de todos.
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As pessoas quererem odiar na encolha, eu até entendo, mas aparecerem numa caixa de comentários, colocando o próprio nome e foto na reta, pra defender seu direito sacrossanto de odiar esse ou aquele grupo, isso eu nunca vou entender.
Não só perdemos a vergonha de odiar, como agora exigimos publicamente nosso direito ao ódio.
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Não estou aqui defendendo tolerância, nem colocando a “tolerância” como um valor. Pelo contrário, a palavra “tolerância”, como usada hoje, é ofensiva e condescendente.
Uma pessoa que diga que “tolera gays” está, ao mesmo tempo, se colocando acima das pessoas gays, em uma posição de “tolerá-las”, como está afirmando que as pessoas gays são algo de tão desagradável que precisam ser “toleradas”.
Então, não defendo “tolerância” jamais.
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Tenho a impressão que boa parte da direita racista e homofóbica ainda tenta esconder seu racismo e sua homofobia, mas que nós, da esquerda, já perdemos totalmente a vergonha de defendermos em público nossa intolerância e nosso autoritarismo. Isso simplesmente acaba comigo. Achei que éramos melhores. De verdade.
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Abaixo, um textinho de 2018 que acho importante repostar hoje. Sem cagação de regras para ninguém. Só um manual pessoal de como eu tento me comportar quando interajo com pessoas que pensam diferente de mim. (Dica: todas as pessoas pensam diferente de mim.)
Outros textos importantes: Politicamente correto, uma defesa & Liberdade de expressão: o que é, como usar
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Guia pessoal para conversas políticas
Uma conversa política frutífera só pode se dar na base da Atenção e do Cuidado.
Antes de conversar sobre política com qualquer pessoa, tento sempre lembrar que:
1. A outra pessoa tem tanto direito à sua opinião e ao seu voto quanto eu, minha opinião e o meu voto não são melhores do que os da outra pessoa;
2. A outra pessoa não quer (deliberadamente) destruir o país: todas nós queremos felicidade, segurança, conexão humana significativa;
3. Não sei como foi a vida da outra pessoa, que traumas sofreu, que experiências a levaram às suas escolhas;
4. Dado que não é uma opção matar ou expulsar do país as pessoas com opiniões inaceitáveis a mim, só me resta aceitá-las ou, em período eleitoral, convencê-las;
5. Não se convence uma pessoa de nada lhe acusando de más intenções ou lhe impondo identidades (“você é isso!”), ofendendo ou excluindo;
6. O primeiro passo para convencer uma pessoa é ouvindo o que ela tem a dizer e se abrindo para sua visão de mundo, aceitando suas experiências e entendendo suas razões;
7. Meu objetivo é inclusão, não exclusão; atração, não repulsão; encontrar pontos de convergência, não de divergência;
8. Se tudo mais falhar, repetir para mim mesmo o primeiro mantra: “A outra pessoa tem tanto direito à sua opinião e ao seu voto quanto eu, minha opinião e o meu voto não são melhores do que os da outra pessoa”.
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Uma conversa política frutífera só pode se dar na base da Atenção e do Cuidado: presumindo que a outra pessoa quer tanto cuidar do Brasil quanto eu e ouvindo com atenção o que ela tem a dizer.
Nada aqui é teórico. Essa é uma prática, difícil e delicada, que venho tentando exercer no dia-a-dia, especialmente depois que me ordenei no zen-budismo.
Mais importante, essas são regrinhas pessoais, em constante fluxo. Elas foram pensadas por mim, para mim, a partir do lugar que ocupo. Não são sugestões nem prescrições para outras pessoas. Estou compartilhando como faço, como tento fazer.
Quem quiser me acompanhar nessa prática que fique à vontade. Quem achar que não faz sentido, idem.
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Depois de passar o texto entre pessoas amigas, muitas delas discordaram fortemente do segundo item. Em resposta, escrevi a continuação abaixo:
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Todas as pessoas querem o melhor para o Brasil
Uma pessoa que defenda propostas políticas que me parecem odiosas está, ainda assim, autoevidentemente falando a partir de um lugar de tornar o Brasil um lugar melhor.
A diferença é que temos ideias bem diferentes de como tornar o Brasil um lugar melhor.
Eu acho que as ideias dela para tornar o Brasil um lugar melhor, na verdade, tornarão o Brasil um lugar pior.
Mas, do ponto de vista dela, idem: as minhas ideias para tornar o Brasil um lugar melhor, para ela, tornarão o Brasil um lugar pior.
Dá pra ter muita conversa e muito diálogo dentro disso.
Naturalmente, o diálogo predispõe intenção de ambas as partes.
Se a outra pessoa não quer diálogo (e ela tem direito de não querer dialogar comigo), e dado que não posso matá-la, expulsá-la, prendê-la por ter opiniões diferentes das minhas, só me resta aceitar essas opiniões.
Mas, se presumo que, por ela ter opiniões para mim odiosas e inaceitáveis, que ela quer tornar o Brasil um lugar pior, então, quem está se colocando em um beco sem saída, fora da possibilidade de diálogo, sou eu.
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As pessoas não sabem o que querem e o que sentem. Quando sabem, não conseguem articular verbalmente. Quando conseguiriam, não ousam, porque têm vergonha, porque querem agradar, porque pegaria mal, porque magoaria alguém.
Ainda assim, desse jeito tosco e tropeçante, caminhamos pela vida, buscando felicidade e segurança, sempre carentes por qualquer tipo de conexão humana significativa.
Presumir essa boa-fé inerente à condição humana é o que nos permite criar uma ponte com a outra pessoa.
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Os três votos da Ordem dos Pacificadores Zen
Faço parte da Ordem dos Pacificadores Zen. Todos os dias, ao meio-dia, repito nossos três votos:
— Praticar o não-saber, abrindo mão de certezas prévias.
— Estar presente na alegria e no sofrimento, nunca virando o rosto.
— Agir amorosamente, de acordo com essas duas posturas.
O primeiro voto, “praticar o não-saber, abrindo mão de certezas prévias”, não significa abandonar nossos conhecimentos, mas somente nosso apego a eles, por reconhecer que esse apego muitas vezes nos impede de perceber a realidade como ela é. Quem acha que sabe, não enxerga, não aprende, não escuta: a atenção precisa ser somente para o outro, vazia de todo o peso que colocamos nela.
O segundo voto, “estar presente na alegria e no sofrimento, nunca virando o rosto”, significa enxergar a outra pessoa sem separação e sem negação, sem julgamento e sem análise, sem sujeito e sem objeto. É estarmos ali, de forma plena e destemida, abertas ao que é, aceitando a realidade do momento presente, habitando a vulnerabilidade ou o êxtase, a dor ou a alegria, da outra pessoa.
Já o terceiro voto, “agir amorosamente, de acordo com essas duas posturas”, é a consequência lógica e necessária dos dois primeiros: se consigo me desapegar de meus conhecimentos e habitar plenamente o momento presente, então, a ação correta, ao mesmo tempo amorosa e política, se revelará.
O processo de corporificar os três votos em nosso dia a dia pode ser árduo e gratificante, inspirador e apavorante. O primeiro passo é reconhecer a enormidade de nosso não-conhecimento. Ao fazer isso, perdemos aquela profunda certeza na solidez de nossas opiniões. Sem essa certeza, já não nos sentimos tão impelidas a julgar e opinar sobre as vidas alheias. Sem julgar e sem opinar, nossas interações humanas começam a se tornar menos violentas, invasivas e autocentradas. Agora, já conseguimos simplesmente estar ali, ao lado de outra pessoa, de maneira plena e aberta, não mais como juízas que tudo sentenciam ou como mestras que tudo aconselham, mas apenas como pessoas capazes de ouvir e de aceitar, de acolher e de abraçar.
Longe de promover a alienação e o conformismo, estar presenta na alegria e na dor alheias a partir de uma postura de não-conhecimento nos permite e nos estimula a agir no mundo de forma mais efetiva e mais generosa, menos egoica e menos violenta, mais transformadora e mais política.
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Atenção., por uma política do cuidado
Escrevi todo um livro para desenvolver esses temas. Atenção., por uma política do cuidado foi publicado pela editora Rocco em 2019, e está disponível nas versões impresso, ebook e áudiolivro — narrado por mim.
Todos os detalhes do livro estão aqui, inclusive links para as partes que estão disponíveis gratuitamente na internet.
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Me paga um café por mês?
A vida ficou difícil pra mim, e criei um Apoia-se.
Se meus textos tiveram impacto em você, se minhas palavras te ajudaram em momentos difíceis, se usa meus argumentos para ganhar discussões, se minhas ideias adicionaram valor à sua vida, por favor, considere fazer uma pequena contribuição recorrente do tamanho desse valor.
Assim, você estará me dando a possibilidade de criar novos textos, produzir novos argumentos, inventar novas ideias.
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Grande conversa romance: 6 romances perfeitos, 1 ano
O curso Grande conversa romance: um ano para ler seis romances perfeitos vai começar em agosto de 2025. Um mergulho profundo em alguns dos maiores e mais perfeitos romances da literatura mundial.
Dois meses para cada livro (três para Guerra e paz): um encontro livre para conversar sobre a leitura no primeiro domingo de cada mês e uma aula expositiva ao final dos dois meses, ambos no Zoom, e muito bate-papo literário todo dia no Whatsapp.
Ninguém precisa de ajuda para ler os livros fáceis e curtos. A ideia do curso é ajudar vocês a lerem aqueles livrões que, talvez, estavam adiando ler a vida inteira e, quem sabe, ajudá-los também a encontrar novos livrões legais.
Leremos só grandes livros, um romance em cada uma das principais línguas literárias ocidentais. Abaixo, a lista completa, em ordem cronológica. Os links já levam à edição recomendada.
1 Moby Dick, inglês, 1851 (agosto & setembro 2025)
2 Os miseráveis, francês, 1862 (outubro & novembro 2025)
3 Guerra e paz, russo, 1867 (dezembro 2025, janeiro & fevereiro 2026)
4 Grande sertão: veredas, português, 1956 (março & abril 2026)
5 Cem anos de solidão, espanhol, 1967 (maio & junho 2026)
6 Tetralogia napolitana, italiano, 2015 (julho & agosto 2026)
O precursor polonês Manuscrito encontrado em Saragoça (1805) só não abriu o curso por não ter tradução em catálogo no Brasil, mas eu recomendo enfaticamente, seja no original em francês, em inglês, em espanhol, ou em português de Portugal. Para quem quiser, teremos uma aula zero sobre esse livro em julho.
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Grande Conversa: Romance, Calendário
Dom, 6jul25, 16h: Conversa livre, Manuscrito encontrado em Saragoça, Abertura do curso
Qua, 23jul25, 19h: aula zero, História do Romance e Manuscrito encontrado em Saragoça
Dom, 10ago25, 16h: Conversa livre, Moby Dick
Dom, 14set25, 16h: Conversa livre, Moby Dick
Qua, 24set25, 19h: aula 1, Moby Dick
Dom, 5out25, 16h: Conversa livre, Os miseráveis
Dom, 9nov25, 16h: Conversa livre, Os miseráveis
Qua, 26nov25, 19h: aula 2, Os miseráveis
Dom, 7dez25, 16h: Conversa livre, Guerra e paz
Dom, 1fev26, 16h: Conversa livre, Guerra e paz
Qua, 25fev26, 19h: aula 3, Guerra e paz
Dom, 1mar26, 16h: Conversa livre, Grande sertão: veredas
Dom, 12abr26, 16h: Conversa livre, Grande sertão: veredas
Qua, 29abr26, 19h: aula 4, Grande sertão: veredas
Dom, 10mai26, 16h: Conversa livre, Cem anos de solidão
Dom, 14jun26, 16h: Conversa livre, Cem anos de solidão
Qua, 24jun26, 19h: aula 5, Cem anos de solidão
Dom, 5jul26, 16h: Conversa livre, Tetralogia napolitana
Dom, 2ago26, 16h: Conversa livre, Tetralogia napolitana
Qua, 26ago26, 19h: aula 6, Tetralogia napolitana
o quadro, me parece, piora ainda mais nos tempos em que vivemos, onde as pessoas parecem mais preocupadas em falar do que ouvir...
Acho cômico como a critica da critica da critica, acaba só sendo uma agua de salsicha. Concordo que é bem superficial esse papo do paradoxo de Popper (aliás um filosofo bem superestimado), inclusive porque ele nem é um argumento tão completo e ta bem longe de ser o mais interessante sobre isso. Se for defender a intolerância radical a violência opressora talvez melhor recorrer as pensadoras e pensadores anticoloniais. Ali sim é uma escola mais bem organizada e enfática. O triste da história da esquerda não é ser tolerante de menos, é ser tolerante demais, e qualquer pessoa de esquerda dos grupos historicamente esmagados, sabe muito bem o tanto de paciência que é preciso ter pra construir qualquer coisa. Evocar indiretamente (talvez covardemente mesmo) as piadas VIOLENTAS, como um problema menor, ou equivalente ao tio bolsonarista é um problema sério. Pra mim bem grave. A história da desumanização de pessoas negras através do humor, por exemplo, deveria ser um alerta pra quem acha q isso é tolerável. Mas se a opinião é q é toleravel, fica inviavel o diálogo. Para mim a desumanização de pessoas oprimidas não é algo negociavel. Se pra vc é, eu acho grave, mas acho q tenho direito a livre pensar. O humor não precisa de armas ou punhos pra ser violento, e a gente já ta cansado de saber que violência simbólica e psicológica pode ser muito pior q violência fisica. Ou a gente tem q tolerar insultos racistas, homofóbico, misóginos como algo próprio da liberdade de expressão? Além disso que bizarrice é essa de questionar a realidade de grupos nazifacistas, se vc não conhece, talvez seja um bom momento pra perceber que passou da hora de sair da sua percepção como critério absoluto para fazer afirmações ou questionamento irresponsáveis (dá uma pesquisada amigo, antes de falar bobagem). Lendo esse texto me perguntei porque mesmo q sigo esse newsletter, não achei nenhuma resposta. Melhor deixar de seguir, mas não sem antes exercer meu direto a livre expressão (rs) que provavelmente não será tolerado.