O patriotismo é uma apropriação indevida
Quem é o sujeito de "ganhamos o Penta"? (Reflexões sobre a Prisão Patriotismo.)
Se a ginasta treinou sozinha ao longo de sua vida inteira, sem nenhuma ajuda nossa, por que nos damos ao direito de nos gabar que “levamos o ouro em Tóquio!” Nós? Nós quem?
(A próxima aula do Curso das Prisões, Prisão Patriotismo, acontece na quarta, 31 de maio de 2023, às 19h. Todas as aulas ficam gravadas. Ao entrar no curso, você tem acesso total às aulas anteriores. Mas vou te contar: o legal mesmo são as conversas livres… que não ficam gravadas! Compre aqui.)
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Amar o Brasil faz tão pouco sentido quanto odiá-lo
Quando publiquei os dois textos anteriores da Prisão Patriotismo (Orgulho de ser leonina & Nosso país não importa, e nem nós), muitas pessoas leitoras perceberam nele uma crítica ao Brasil e correram para concordar:
"É isso aí. O Bananão é mesmo uma bosta. É por isso que essa merda não vai pra frente. Foda-se o Brasil mesmo! etc."
Mas meu texto não está fazendo nenhuma afirmação qualitativa sobre o Brasil. Não ataca, nem defende. O Brasil não é pior nem melhor que outros Estados-Nações.
Nesse texto sobre patriotismo, os exemplos são brasileiros somente porque o público-alvo é brasileiro.
Odiar o Brasil por seus muitos defeitos faz tão pouco sentido quanto amá-lo por suas muitas qualidades.
O Brasil, essa entidade abstrata incorpórea inanimada, não tem como perceber nem retribuir nossos ó-tão humanos sentimentos, sejam eles de lealdade ou de desprezo, de gratidão ou de raiva.
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Orgulho de ser brasileiro
Eu respeito e valorizo o Brasil.
O Brasil é o estado nacional que garante os meus direitos humanos básicos. Foi o Brasil que me deu as estradas, a segurança pública, a paz social, a estabilidade institucional, a saúde pública, a água potável, etc etc, que permitiram que eu me desenvolvesse como pessoa humana. Mais especificamente, foi o Brasil que pagou pela excelente educação superior que obtive na universidade pública onde estudei e, aliás, ainda estou estudando. (Me formei em História pela UFRJ e, atualmente, sou mestrando em Letras Neolatinas.)
Nada disso quer dizer que eu vá amar, ou mesmo me orgulhar, dessa abstração política abstrata inumana incorpórea chamada Brasil.
Em troca de tudo o que ele me ofereceu e ainda oferece, o Brasil me exige ou pede algumas obrigações, como ser reservista das Forças Armadas, ser mesário, pagar impostos, obedecer leis – obrigações que eu, em larga medida e de acordo com a minha consciência, cumpro.
Mas, gostando eu ou não do Brasil, sendo eu grato ou não ao Brasil, essa não é uma relação afetiva: é uma relação contratual (o tal Contrato Social), regulamentada pela Constituição da República.
Meu amor eu reservo para seres animados.
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O patriotismo é uma apropriação indevida
A ginasta treinou a vida inteira desde a infância. Fez todo tipo de sacrifício. Não se divertiu. Castigou seu corpo. Enfrentou todos os entraves institucionais em seu caminho. Então, coroou todos esses esforços conquistando a medalha de ouro nos jogos olímpicos.
E tudo para que, no dia seguinte, milhões de pessoas que nunca lhe ajudaram em nada, que nunca nem lhe levaram uma aguinha durante os treinos, possam dizer:
— Levamos o ouro na ginástica olímpica!
Levamos? Nós? Nós quem?
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Quem conquistou essas conquistas?
Um dos meus escritores favoritos, judeu norte-americano, conta a seguinte história.
Ele estava conversando com um amigo, também judeu, que disse, em tom de orgulho e confidência:
— Sabia que nós judeus somos zero vírgula quase nada da humanidade mas ganhamos dezenas por cento dos prêmios Nobel? Não é de se orgulhar?
O escritor pensou um pouco e respondeu:
— E você sabia que nós judeus somos zero vírgula quase nada da população dos Estados Unidos mas somos quarenta por cento dos estelionatários?
O amigo ficou chocado:
— Sério?
— Sério. Chega a dar vergonha de ser judeu, né?
Mas o amigo foi veemente:
— Claro que não, ué! Eu nunca cometi estelionato, por que teria vergonha?
— Bem, esse número eu acabei de inventar agora, mas aqueles prêmios Nobel também não foi você que ganhou. Por que tem orgulho deles?*
[*Quem conta a história sobre judeus e prêmios Nobel é Isaac Asimov, em sua autobiografia I, Asimov. Obrigado a Eduardo Wachter por me achar essa referência.]
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Quem é o sujeito de “ganhamos o Penta”?
Eu, Alex, não tenho orgulho de ser canhoto. De ter 1,83 de altura. De ser libriano. De ter olhos e cabelos castanhos. Por que teria orgulho de ser brasileiro? Ser brasileiro, assim como ser destro, não é mérito meu, não é nada que eu fiz. É uma circunstância fortuita totalmente fora do meu controle.
Ter orgulho de nossas afiliações coletivas é tão comum e normatizado que nunca nem pensamos a respeito. Vivemos cercados de pessoas que têm orgulho de ser brasileiras, católicas, cariocas, flamenguistas, mangueirenses.
É normal e aceitável um torcedor brasileiro qualquer falar que somos fodas no futebol, que vamos arrasar todos os outros times, que ninguém joga bola como nós, etc.
Afinal, quem nunca?
Por outro lado, um astro de futebol (uma dessas pessoas que está de fato em campo trabalhando duro para ganhar as partidas) que diga qualquer coisa que demonstre auto-consciência de o quão foda ele é vai enfrentar uma ojeriza generalizada. Será chamado de arrogante, vaidoso, soberbo.
O pecado supremo do vaidoso é justamente quebrar o pacto de silêncio que sustenta nossa auto-estima coletiva.
Para viabilizar nossas vidas, tantas vezes chatas e vazias, precisamos de conquistas coletivas das quais possamos nos apropriar.
Ou, em outras palavras, "ganhamos o penta!"
O que poderia ser mais intolerável do que sermos rudemente lembrados, e, pra piorar, por uma pessoa mais rica, mais famosa, mais sarada, mais bonita, que, na verdade, foi ela que ganhou o penta, não nós?
É claro que vamos odiar esse babaca.
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Série “As Prisões”
Aqui estão os textos já reescritos, revisados e finalizados em 2023:
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Não tem como escrever esses textos e dar essas aulas sem consumir uma enormidade de livros. Sou membro de três bibliotecas, baixo pirata tudo o que encontro e, ainda assim, acabo precisando comprar muitos livros importados.
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E muito, muito obrigado.
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O curso das Prisões
Em 2023, estou dando o Curso das Prisões.
Em maio, estamos conversando sobre a Prisão Patriotismo. Nossa aula expositiva acontece na quarta, 31 de maio de 2023. Antes disso, nas nossas conversas livres, no Zoom e no Whatsapp, estamos discutindo coisas como: Quais são nossas crenças fundantes? Existe ideologia melhor que outra?
Sim, ainda dá tempo de participar. Mais detalhes aqui.
Vem com a gente?
Lembrou-me muito de um ensaio do Tolstói. Tenho até um trecho desse ensaio no meu celular de tanto que me abriu os olhos pra algo que achava normal, depois de ter lido tanto o texto do Tolstói quanto o teu, fica nítido a anormalidade dessa paixão que é o patriotismo. Afinal, se somos patriotas, acreditamos que somos superiores enquanto nação e que exista nações/pessoas inferiores a nós.
"O patriotismo é, em nossa época, um sentimento antinatural, insentato, prejudicial, causador de grande parte das catástrofes pelas quais sofre a humanidade, e que por isso esse sentimento não deve ser alimentado como se faz atualmente, mas ao contrário, deve ser contido e elimidado, utilizando-se todos os meios à disposição das pessoas sensatas."