Orgulho de ser leonina ou "Destros do mundo, uni-vos"
Nossas identidades podem ser Prisões. Afinal, como existir coletivamente sem xenofobia contra outros coletivos? (Reflexões sobre a Prisão Patriotismo)
Se nossa identidade de classe nos aprisiona, nossas muitas identidades tribais, seja nacional, regional, estadual, também. Mas faz sentido isso? Além da nossa criação, existe uma essência brasileira, baiana, carioca? Somos seres gregários que só sabem existir em grupos, mas como existir coletivamente sem xenofobia contra outros coletivos?
(A próxima aula do Curso das Prisões, Prisão Patriotismo, acontece na quarta, 31 de maio de 2023, às 19h. Todas as aulas ficam gravadas. Ao entrar no curso, você tem acesso total às aulas anteriores. Mas vou te contar: o legal mesmo são as conversas livres… que não ficam gravadas! Compre aqui.)
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Introdução à Prisão Patriotismo
Toda identidade é, por definição, exclusionária: somos algo (aquarianas, brasileiras, classe alta, etc) porque não somos infinitas outras coisas (leoninas ou arianas, uruguaias ou chinesas, classe média ou classe baixa). E tudo bem. O problema nunca é termos nossa identidade ou sermos quem somos. O problema é tudo aquilo que não enxergamos, que não percebemos, que não reconhecemos porque a posição que ocupamos nos impede, nos bloqueia a vista e nos embota a percepção.
Nossa identidade de classe pode ser uma prisão porque ela é, antes de tudo, insidiosa: muitas vezes, não sabemos, ou nos recusamos a reconhecer, nossa classe social, e, mesmo assim, ou apesar disso, ela determina nossas amizades, nossas roupas, nossas leituras, nossos sotaques, nossos trabalho.
Não foi à toa que, no Manifesto Comunista, o grito de guerra era para que os “trabalhadores de todos os países” se unissem. Pois, para Marx e Engels, um trabalhador inglês e um trabalhador belga tinham mais em comum, desde interesses até traumas, do que um trabalhador espanhol e seu patrão espanhol. Mais ainda, ambos escreveram nesses termos pois sabiam estar nadando contra a corrente: a partir da ascendência do nacionalismo em começos do século XIX, a tendência ideológica das pessoas européias era sempre se identificarem, e se unirem, em nacionalidades e não em classes.
E, se a nossa identidade de classe é insidiosa por ser tão esfumaçada, nossa identidade nacional é violenta por ser tão escancarada, por nos ser enfiada goela abaixo tão sem cerimônia, por sermos obrigadas até mesmo a jurar que morreremos por ela. As pessoas muitas vezes não sabem, ou não querem saber, sua classe social, mas todas sabem sua nacionalidade.
Na Prisão Classe, vimos como nossa identidade de classe nos aprisiona; na Prisão Patriotismo, veremos que nossas muitas identidades tribais, seja nacional, regional, estadual, também. Mas faz sentido isso? Além da nossa criação, existe uma essência brasileira, baiana, carioca? Somos seres gregários que só sabem existir em grupos, mas como existir coletivamente sem xenofobia contra outros coletivos?
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Qual é a nossa tribo?
É deliciosa a sensação de irmandade que nos acolhe quando estamos em nossa terra, cercadas de iguais, praticando nossos costumes, ouvindo nossa língua, nosso sotaque.
É reconfortante fazermos parte de um estado-nação que nos reconhece como pessoas cidadãs, que garante nossos direitos humanos fundamentais, que nos fornece um passaporte aceito por outras nações.
Infelizmente, essa nossa sensação de comunidade, que não é menos real, concreta e verdadeira por ter sido imaginada, fabricada, construída, muitas vezes nos leva a odiar ou desprezar as outras pessoas que não nasceram no nosso chão, que têm outros costumes, outras línguas, outros sotaques.
Então, se amamos exaltadamente essas abstrações políticas imaginárias, com seus simbolozinhos e musiquinhas; se nos dispomos a matar e morrer por elas; se engolimos acriticamente o discurso nacionalista-excludente do "ame-o ou deixe-o", então, sim, o patriotismo pode ser uma prisão.
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O patriotismo das leoninas
Como pessoas humanas, nossa tendência é sempre naturalizar o mundo que recebemos. As coisas são assim porque sempre foram assim porque sempre serão assim.
Para nós, é tão normal esse mundo onde as pessoas se dividem e se identificam com base no pedaço de chão onde nasceram que mal conseguimos perceber o quanto esse sistema é arbitrário e convencionado.
Por que não criarmos outras irmandades?
Se existem duas pessoas competindo, o natural, o normal, o esperado, o óbvio, é que eu torça pela pessoa brasileira.
Mas por que me identificar com linhas arbitrárias traçadas no chão e com as pessoas que compartilham comigo o acidente histórico e fortuito de ter nascido no espaço compreendido dentro dessas linhas?
Por que não traçar outras linhas arbitrárias para definir nossas lealdades?
Ao invés de traçar linhas arbitrárias no espaço, por que não traçar, digamos, linhas arbitrárias no tempo?
Por que não torcer para a pessoa que é aquariana como eu?
Por que não torcer pelas pessoas que têm o mesmo gênero? A mesma cor? A mesma profissão? A mesma classe social? O mesmo tipo sanguíneo?
Por que todas essas opções nos soam tão estranhas, insólitas, injustificadas, mas torcer pela pessoa que nasceu no mesmo país que nós, por outro lado, nos parece tão autoevidentemente natural?
Será mesmo que quaisquer duas mulheres, quaisquer dois metalúrgicos, quaisquer dois leoninos não têm mais em comum entre si do que, digamos, um amapaense branco rico e uma gaúcha canhota faxineira, uma sergipana capricorniana recém-nascida e um mato-grossense loiro mudo?
Por que o fato de terem nascido no mesmo estado-nação parece compensar e superar todas as outras diferenças?
Quem foi que nos convenceu que, apesar de suas inúmeras, óbvias, gritantes diferenças étnicas, linguísticas, religiosas, etc, que uma paranaense e uma baiana têm mais coisas em comum do que diferenças?
Os gaúchos dos pampas argentinos e riograndenses, apesar de, na prática, fazerem parte de uma mesma nação, de terem os mesmos hábitos, costumes, estilos de vida, etnias, etc, ficaram séculos se matando ferozmente, alegremente, seguindo as ordens de metrópoles com as quais não tinham nada em comum, que pelo contrário desprezavam, derramando seu sangue para defender seus compatriotas da Terra do Fogo e da Amazônia, que nem conheciam e com quem não tinham nada em comum.
Que força é essa capaz de fazer esses homens ignorarem sua óbvia irmandade e se prontificarem a abrir mão de suas vidas em nome de uma outra irmandade, mais etérea e mais abstrata?
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O curso das Prisões
Em 2023, estou dando o Curso das Prisões.
Em maio, estamos conversando sobre a Prisão Patriotismo. Nossa aula expositiva acontece na quarta, 31 de maio de 2023. Antes disso, nas nossas conversas livres, no Zoom e no Whatsapp, estamos discutindo coisas como: Quais são nossas crenças fundantes? Existe ideologia melhor que outra?
Sim, ainda dá tempo de participar. Mais detalhes aqui.
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