Mudando o mundo, uma piada de cada vez
O que pode ser mais importante do que nomear a si própria?
A língua é um campo de batalha: quem nomeia tem o poder, dá o tom, dita as regras, efetiva a posse. Quando as pessoas conservadoras reclamam da “patrulha do politicamente correto”, o que estão reclamando é da perda desse poder nomeador. Hoje, as pessoas desprivilegiadas conquistaram o direito de nomear a si próprias.
Mudando o mundo, uma piada de cada vez
Um dia, um amigo me perguntou:
"Alex, meu tio sempre fez piadas homofóbicas e racistas. Sempre. Agora, depois de levar umas broncas da chefa no escritório, ele parou. Quer dizer, parou lá. Em casa, ele continua fazendo as mesmas piadas e agora reclamando dessa patrulha do politicamente correto. Mas, sério, de que adianta? Meu tio continua o mesmo racista homofóbico que ele sempre foi. O que mudou?"
E eu respondo que mudou tudo.
O seu tio é um adulto que gosta de contar piadas homofóbicas e racistas porque ele cresceu e se formou em um mundo, em uma sociedade, em uma família, onde contar piadas homofóbicas e racistas era aceitável e esperado. Esse comportamento, além de não ter custo social algum, ainda trazia vários benefícios, como ser percebido como uma pessoa divertida, bem-humorada, etc.
Já o filho dele está crescendo em um mundo radicalmente novo.
Na melhor das hipóteses, o filho concorda com a chefa do pai que piadas racistas e homofóbicas são inaceitáveis, está feliz do pai não estar mais contando esse tipo de piada e, naturalmente, quando tiver suas próprias filhas e filhos, não vai lhes contar essas piadas, quebrando assim a corrente de transmissão.
Na pior das hipóteses, mesmo que esteja revoltado do pobre pai estar sendo oprimido pela patrulha do politicamente correto, esse filho também está crescendo no mundo radicalmente novo onde essas piadas não são aceitáveis nem esperadas nem recompensadas, mas sim tem um custo social real. Por mais que esse filho ache que contar piada homofóbica não tem nada demais, amanhã, quando estiver no primeiro dia de trabalho em uma nova empresa, não vai contar uma piada homofóbica (como talvez o pai fizesse sem nem pensar vinte anos antes), porque, mesmo se nenhum colega for homossexual, ele pode estar se queimando severamente no escritório. A corrente de transmissão não se quebra, mas se enfraquece.
Essa pequena diferença, acontecendo milhões e milhões de vezes todos os dias, é o que muda o mundo.
Hospedeiras, não vetores
O racismo, o machismo, a homofobia, a transfobia, o capacitismo, a intolerância, e todas as vertentes possíveis e imagináveis da outrofobia, não têm existência concreta.
A outrofobia precisa da nossa cumplicidade para existir.
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Somos todos crias da mesma sociedade outrofóbica.
Já "sabemos" que ser homossexual é pecado, que pessoas negras têm "cabelo ruim", que mulheres foram feitas para a maternidade, muito antes de sentirmos em nós mesmas os primeiros desejos homossexuais ou de termos qualquer noção de nossa identidade negra ou feminina.
Então, nada mais natural do que existirem pessoas negras racistas, homossexuais homofóbicas, mulheres machistas: elas não são bugs do sistema, mas sim features. Quando uma pessoa escuta por toda a sua vida que o seu "cabelo é ruim", nada mais compreensível que ela acredite e nada mais árduo do que vencer essa programação.
Somos todas hospedeiras da cultura outrofóbica. Trazemos dentro de nós todos os xingamentos homofóbicos, todas as piadas racistas, todos os lugares-comuns machistas. (Por isso também ninguém está livre, nem mesmo a mais politizada militante, de escorregar e deixar escapar uma atitude ou fala outrofóbica.)
Mas, se não temos escolha de sermos hospedeiras da cultura outrofóbica, temos escolha sim de sermos vetores.
A escolha de passar adiante esses horrores do passado é só nossa.
A homofobia é um conceito abstrato. Ela não tem existência concreta. O que existe são pessoas que contam piadas homofóbicas.
E eu posso escolher não ser uma delas.
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Talvez o meu amigo Grafite realmente não se importe de ser o Grafite em um escritório de Cláudios e Felipes. Talvez o Grafite considere que, para seus objetivos profissionais, é melhor não virar "o chato do escritório" (“Pô, Grafite, você vê racismo em tudo!”) e decidiu lutar outras batalhas. Não cabe a mim julgá-lo, ainda mais que nunca vou saber a pressão e o preconceito que sofrem um homem negro no Brasil.
Mas eu posso escolher não chamá-lo de Grafite.
Pra mim, ele é o Paulo Roberto.
O poder da palavra
"A palavra tem o poder: de nos tornar empoderadas ou indefesas, de ser fonte de certeza ou de dor. Alguém que age como se não pudéssemos falar por nós mesmas ou se refere a nós por um nome que não reconhecemos está usando a palavra para nos machucar, para roubar nossa subjetividade, para apagar nossa existência. Então, para continuar existindo, respondemos, interpelamos, machucamos. Usar a palavra é negociar os termos de nossa própria existência." (Alicia Dillon)
Uma das principais lições que a filosofia nos ensinou no século XX é que a palavra molda o mundo.
Nomear é poder. Nossa relação com a realidade é sempre mediada pela palavra: todas as relações de poder passam, em algum momento, pela palavra. Quem nomeia dá o tom, dita as regras, efetiva a posse.
(Não foi à toa que os navegantes portugueses do século XVI subiram e desceram a costa brasileira colocando nome de santo em cada acidente geográfico de uma terra onde mal tinham pisad0.)
Por isso, quando uma pessoa trans se apresenta socialmente com um nome e um gênero em oposição aos seus documentos, o que ela está fazendo é tomar posse de sua identidade: ela está nos dizendo que sabe mais sobre quem ela é do que qualquer outra pessoa, inclusive seus próprios documentos.
Faz sentido ser contra? Quem teria o direito de lhe brandir o dedo na cara e dizer, "você é Carlos Eduardo que eu sei!"?
Muitas pessoas sentiam-se insultadas e diminuídas ao serem chamadas de "deficientes", uma definição baseada em um diagnóstico médico. (Seria como chamar alguém de "canceroso" ao invés de simplesmente dizer que "ela tem câncer".) O movimento "people first" (pessoas primeiro) defende que se coloque as pessoas antes das doenças e que se descreva o que elas têm e não o que são. Por isso, hoje, o termo mais usado é "pessoa com deficiência". O site governamental pessoacomdeficiencia.gov.br apresenta inclusive um manual muito interessante para orientar o apoio e o atendimento a essas pessoas.
Faz sentido ser contra? Quem teria o direito de exigir chamá-las de "deficientes", "cadeirantes" ou o que seja?
(E, aliás, como as pessoas com deficiências não são um bloco homogêneo de opiniões unânimes, também existem algumas que criticam essa expressão e propõem outras.)
Respeitar o modo como as pessoas querem ser tratadas deveria ser uma simples questão de empatia, quando não de boas maneiras: é triste precisar ser um movimento político, e polêmico ainda por cima
Se podemos falar dos "princípios" de algo que nem existe, como o politicamente correto, um deles seguramente seria: nomear a si própria.
Aliás, como as pessoas privilegiadas sempre foram donas do discurso e se autonomearam, na prática estamos falando de estender esse direito também às minorias marginalizadas e desprivilegiadas.
Ou seja, de tirar das pessoas privilegiadas esse poder de nomear o Outro e garantir às pessoas desprivilegiadas o poder de nomear a si mesmas.
Portanto, quando as pessoas privilegiadas reclamam da "patrulha politicamente correta" estão reclamando da perda desse privilégio nomeador.
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Esse texto é parte de uma série sobre politicamente correto e liberdade de opinião. Já publicados:
Nossa língua é a história dos nossos crimes (1)
Politicamente correto, o que é (2)
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O curso desse ano, A Grande Conversa Brasileira: a ideia do Brasil na literatura está rolando e você pode entrar a qualquer momento. Na próxima aula, dia 5 de agosto, vamos conversar sobre Os sertões, de Euclides da Cunha, O Uraguai, de Basílio da Gama e Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus.
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Um beijo do
Alex Castro