Uma marciana perceptiva conseguiria deduzir toda a história de machismo, racismo, homofobia (ou seja, outrofobia) da cultura lusobrasileira simplesmente lendo algumas poucas páginas escritas em português.
(Sempre quero saber a opinião de vocês sobre tudo que escrevo. Todos os links de livros enviam para a Amazon e, se comprar algo, eu ganho uma comissão, você apoia o meu trabalho e te agradeço.)
Ela encontraria expressões como "não seja xiita", "pára de judiar do gato" e "não passa um cristão aqui essa hora" e se perguntaria: por que as pessoas membros de uma religião viraram sinônimos de intransigência, de outra de maldade, e, de uma terceira, de pessoa humana genérica?
(Ninguém precisaria contar para a nossa perceptiva marciana qual é a religião dominante dessa cultura.)
Nossa marciana perceberia que quase todos os xingamentos feitos contra homens se referem a uma suposta homossexualidade ("mariquinha", "viadinho", "puto"), como se ser homossexual fosse a pior coisa que um homem pudesse ser.
(Ninguém precisaria contar para a nossa perceptiva marciana qual é a orientação sexual dominante nessa sociedade.)
Nossa marciana perceberia que quase todos os xingamentos feitos contra mulheres se referem a um suposto excesso de sexualidade ("puta", "galinha", "vadia"), como se dispor livremente de seu corpo fosse a pior coisa que uma mulher pudesse fazer. Mais ainda, ela perceberia que muitas e muitas palavras que são neutras no masculino significam variações pejorativas de mulher-que-faz-sexo-demais quando no feminino: aventureira, pistoleira, cachorra.
(Ninguém precisaria contar para a nossa perceptiva marciana qual é o gênero dominante nessa sociedade.)
Nossa marciana perceberia que quase todas as variações de "negro" e "preto" ("enegrecer", "empretecer" etc) são negativas e, de branco, positivas. Se estivesse lendo textos cariocas, talvez se deparasse com a expressão "neguinho" e, a princípio, talvez, pensasse que é um sinônimo de "pessoa genérica", até perceber que quase sempre é "neguinho só faz merda" e quase nunca "neguinho tem uma casa linda em Búzios".
(Ninguém precisaria contar para a nossa perceptiva marciana qual é a cor dominante nessa sociedade.)
Nossa História não acabou: ela vive e pulsa e se reproduz nas entrelinhas da nossa língua.
Mas a História não é uma prisão, nem um destino: ela é uma prática.
Que pode e deve ser mudada. No nosso dia-a-dia. Uma palavra de cada vez.
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Civilizados & bárbaros
A próxima aula do meu curso A Grande Conversa Brasileira: a ideia do Brasil na literatura acontece na quinta, 5 de agosto, e vamos conversar sobre Os sertões, de Euclides da Cunha, O Uraguai, de Basílio da Gama e Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus.
E sim, ainda dá tempo de participar. (Eu não estaria divulgando se não desse, né?)
Poucos anos depois da Proclamação da República, o Exército Brasileiro mobilizou quase todas as suas forças para enfrentar e destruir uma pequena aldeia rebelada no sertão da Bahia, Canudos. Entre os correspondentes de guerra, estava Euclides da Cunha, de O Estado de São Paulo, para contar aos seus leitores paulistas sobre as hordas bárbaras que ameaçavam a sagrada República. Se tivesse conseguido contar o que pretendeu, hoje não seria nem nota de pé de página na História da Literatura. É preciso ler Os sertões sem tentar classificá-lo, pois é nas classificações fáceis que ele escorre por nossos dedos: nas entrelinhas do projeto classificador de Euclides da Cunha, pelas frestas de seu determinismo racial, Os sertões é um livro que vibra de idealismo e compaixão.
O estilo barroco-científico febril de Euclides da Cunha é marcado por uma eterna dicotomia entre opostos irreconciliáveis: ler Os sertões é acompanhar, ao vivo, uma verdadeira batalha entre esses titãs. De um lado, um militar positivista e patriótico, narrando a épica batalha através da qual o glorioso (e civilizado!) exército nacional derrotou uma horda de fanáticos primitivos e degenerados que ameaçava a própria essência do país. Do outro lado, um escritor, um cronista e um jornalista, mestre contador de histórias, arguto observador, dotado de enorme empatia, desmentindo todas as teorias do positivista ao mostrar homens e mulheres de fibra e de coragem, de força física e de inteligência, vivendo momentos dramáticos de intensa humanidade enquanto defendiam seu líder, sua religião, suas casas, seus entes queridos… sua civilização, enfim.
Mas quem são os bárbaros e quem são os civilizados? Quem é o “nós” e quem é o “eles”? Os sertões é um clássico porque sua contradição interna ainda é a mesma que a nossa, sua fratura exposta é a mesma que ainda nos incomoda. Como todo clássico, Os sertões vive e pulsa e respira porque ainda fala diretamente a nós.
O Uraguai (1769), de Basílio da Gama, é um poema épico que, assim como Os sertões, foi escrito no calor do momento: narra um conflito que acabara de acontecer. Em 1756, Portugal e Espanha, inimigos sempre irreconciliáveis, se unem militarmente pela primeira vez em sua história para expulsar o povo guarani e os missionários jesuítas que os defendiam do território das Missões — hoje, na Argentina. Por seus esforços em construir o indígena como personagem-chave da literatura nacional, Basílio da Gama antecipa o indianismo fundacional de Alencar e de Gonçalves Dias. Por sua ambivalência em relação aos civilizados e aos bárbaros, antecipa as dualidades irreconciliáveis de Euclides da Cunha: os espanhóis, aliados de momento, não são amigos; os guaranis, adversários, se comportam como nobres e lutam por seus lares. Quem está certo? Quem está errado? O Uraguai, escrito na atmosfera humanista do iluminismo pombalino de meados do XVIII, em versos livres e em linguagem clara, é de certo modo mais aberto e mais tolerante, mais fluente e mais legível, do que Os sertões, quase esmagado pelo peso do determinismo científico do começo do século XX.
A escritora Carolina Maria de Jesus, mulher negra e autora de um diário sobre sua vida na favela (1960), entre muitas outras obras, foi durante décadas a pessoa autora brasileira, de qualquer sexo, mais vendida e mais conhecida em todo o mundo. Respondona e altiva, Carolina Maria de Jesus se recusou a interpretar o papel de “favelada bem-comportada” que quiseram lhe impingir e foi rapidamente colocada no papel de “Outra”, “selvagem”, “não-civilizada”: duvidavam até que tivesse escrito seus próprios livros — best-sellers no mundo inteiro, vamos lembrar. (Até poucos anos atrás, continuava mais conhecida no exterior: quando ensinei Quarto de despejo em uma universidade norte-americana, na década de 2000, a enorme maioria das pessoas leitoras do meu blog, no Brasil. nunca tinha ouvido falar dela.) Se, em Os sertões, Euclides da Cunha narra como o Exército exterminou um terrível Outro, no diário de Carolina Maria de Jesus temos a chance de ouvir esse Outro — na verdade, uma pessoa como nós, mas subalternizada na posição de Eterno Outro — falando em sua própria voz, sobre sua própria vida, sua própria subjetividade. O que não teriam nos contado os diários das mulheres sertanejas canudenses?
(Entrando agora, você assiste as primeiras quatro aulas na gravação, as seis seguintes ao vivo e ainda participa do nosso grupo no Whatsapp.)
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De qualquer modo, te agradeço demais. :)
Um beijo do
Alex Castro