Nosso uso da língua é e sempre foi político. Não existe, nem poderia existir, linguagem neutra. O politicamente correto serve para destruir essa ilusão: seu grande mérito é escancaradamente politizar a palavra.
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Durante muito tempo, a esquerda se definiu por um certo economicismo, que via nas questões econômicas, como desigualdade social e luta de classes, a contradição principal da sociedade capitalista e fonte de todos os seus conflitos.
Ao longo das décadas de 1960 e 1970, vários movimentos identitários dentro da esquerda começaram a adquirir mais visibilidade e relevância, politizando questões antes vistas como apolíticas (raça, gênero, orientação sexual, currículo escolar, literatura infantil, comida, moda, etc) e trazendo-as para a arena privada, para os cenários do dia-a-dia, para a esfera da interação social. Como dizia o novo slogan feminista, "o pessoal é político". Não apenas os "proletários do mundo", mas também pessoas negras, gays, feministas, etc, estavam se unindo politicamente em torno de suas identidades sociais compartilhadas.
Com a queda do Muro de Berlim e o colapso da União Soviética, enquanto a direita festejava sua (aparente) vitória e a esquerda fazia uma autocrítica de algumas de suas premissas econômicas, houve uma mudança de paradigma dentro da própria esquerda, onde as questões econômicas, apesar de sempre fundamentais, perderam terreno para essas novas "políticas de identidade", cada vez mais proeminentes.
Ao longo dos anos, a vitória dessa tendência foi tão completa que é fácil esquecer que muitas pessoas de esquerda criticavam essas preocupações identitárias como triviais e irrelevantes (especialmente quando comparadas às "verdadeiras questões da esquerda", como pobreza, desigualdade, luta de classes) e que foram essas pessoas que inventaram o termo "politicamente correto", para fazer pouco do que enxergavam como um zelo exagerado nas militantes das causas identitárias.
O que é então o "politicamente correto?"
Se quisermos saber quem são os socialistas, podemos começar lendo o que escrevem as pessoas que se dizem socialistas, como agem na esfera política os partidos ditos socialistas, como se definem as organizações ditas socialistas.
Mas como definir um movimento que não existe de forma concreta, que não tem textos ou cânones que lhe definam, que não possui autoproclamadas líderes ou defensoras?
Na falta dessas pessoas, só quem pode definir o politicamente correto são suas inimigas, mas elas também nem tentam.
O jornalista Leandro Narloch, em suas histórias politicamente incorretas, escritas explicitamente para "jogar tomate na historiografia politicamente correta", nunca se preocupa em definir politicamente correto e parece simplesmente equacionar "politicamente correto" com "esquerda". Paradoxalmente, ele ainda enfatiza que está se referindo a uma esquerda que enxergaria tudo pelo lado econômico:
"nessa estrutura simplista [do politicamente correto], o único aspecto que importa é o econômico."
Mas, como vimos, ironia das ironias, foram justamente os defensores dessa esquerda "que enxerga tudo pelo lado econômico" que inventaram o termo "politicamente correto" para fazer pouco da esquerda "que enxerga tudo pelo lado da identidade".
Até bem pouco tempo atrás, ainda circulavam pelo Brasil representantes dessa espécie dinossáurica, o esquerdista politicamente incorreto, mas, ironia das ironias de novo, foi o sucesso dos livros de Narloch, ao fortalecer a associação entre "politicamente incorreto" e "direita", que causou sua extinção definitiva.
Hoje, aos nossos ouvidos, uma pessoa de esquerda se afirmando "politicamente incorreta" parece uma contradição em termos.
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Como o politicamente correto é aquilo que as pessoas que odeiam o politicamente correto dizem que ele é, sua definição será sempre falha, parcial e pejorativa.
Então, uma primeira definição pode ser: politicamente correto é o nome daquele desconforto que tanto incomoda as pessoas que se dizem "politicamente incorretas".
E o que incomoda essas pessoas?
Sua principal crítica parece ser em relação a uma pretensa "patrulha" que lhes impede de falar algumas coisas que estavam acostumadas a dizer.
Será que o politicamente correto é isso? Uma censura? Um atentado à liberdade de expressão?
(Continua amanhã…)
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Civilizados & bárbaros
A próxima aula do meu curso A Grande Conversa Brasileira: a ideia do Brasil na literatura acontece na quinta, 5 de agosto, e vamos conversar sobre Os sertões, de Euclides da Cunha, O Uraguai, de Basílio da Gama e Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus.
E sim, ainda dá tempo de participar. (Eu não estaria divulgando se não desse, né?)
Poucos anos depois da Proclamação da República, o Exército Brasileiro mobilizou quase todas as suas forças para enfrentar e destruir uma pequena aldeia rebelada no sertão da Bahia, Canudos. Entre os correspondentes de guerra, estava Euclides da Cunha, de O Estado de São Paulo, para contar aos seus leitores paulistas sobre as hordas bárbaras que ameaçavam a sagrada República. Se tivesse conseguido contar o que pretendeu, hoje não seria nem nota de pé de página na História da Literatura. É preciso ler Os sertões sem tentar classificá-lo, pois é nas classificações fáceis que ele escorre por nossos dedos: nas entrelinhas do projeto classificador de Euclides da Cunha, pelas frestas de seu determinismo racial, Os sertões é um livro que vibra de idealismo e compaixão.
O estilo barroco-científico febril de Euclides da Cunha é marcado por uma eterna dicotomia entre opostos irreconciliáveis: ler Os sertões é acompanhar, ao vivo, uma verdadeira batalha entre esses titãs. De um lado, um militar positivista e patriótico, narrando a épica batalha através da qual o glorioso (e civilizado!) exército nacional derrotou uma horda de fanáticos primitivos e degenerados que ameaçava a própria essência do país. Do outro lado, um escritor, um cronista e um jornalista, mestre contador de histórias, arguto observador, dotado de enorme empatia, desmentindo todas as teorias do positivista ao mostrar homens e mulheres de fibra e de coragem, de força física e de inteligência, vivendo momentos dramáticos de intensa humanidade enquanto defendiam seu líder, sua religião, suas casas, seus entes queridos… sua civilização, enfim.
Mas quem são os bárbaros e quem são os civilizados? Quem é o “nós” e quem é o “eles”? Os sertões é um clássico porque sua contradição interna ainda é a mesma que a nossa, sua fratura exposta é a mesma que ainda nos incomoda. Como todo clássico, Os sertões vive e pulsa e respira porque ainda fala diretamente a nós.
O Uraguai (1769), de Basílio da Gama, é um poema épico que, assim como Os sertões, foi escrito no calor do momento: narra um conflito que acabara de acontecer. Em 1756, Portugal e Espanha, inimigos sempre irreconciliáveis, se unem militarmente pela primeira vez em sua história para expulsar o povo guarani e os missionários jesuítas que os defendiam do território das Missões — hoje, na Argentina. Por seus esforços em construir o indígena como personagem-chave da literatura nacional, Basílio da Gama antecipa o indianismo fundacional de Alencar e de Gonçalves Dias. Por sua ambivalência em relação aos civilizados e aos bárbaros, antecipa as dualidades irreconciliáveis de Euclides da Cunha: os espanhóis, aliados de momento, não são amigos; os guaranis, adversários, se comportam como nobres e lutam por seus lares. Quem está certo? Quem está errado? O Uraguai, escrito na atmosfera humanista do iluminismo pombalino de meados do XVIII, em versos livres e em linguagem clara, é de certo modo mais aberto e mais tolerante, mais fluente e mais legível, do que Os sertões, quase esmagado pelo peso do determinismo científico do começo do século XX.
A escritora Carolina Maria de Jesus, mulher negra e autora de um diário sobre sua vida na favela (1960), entre muitas outras obras, foi durante décadas a pessoa autora brasileira, de qualquer sexo, mais vendida e mais conhecida em todo o mundo. Respondona e altiva, Carolina Maria de Jesus se recusou a interpretar o papel de “favelada bem-comportada” que quiseram lhe impingir e foi rapidamente colocada no papel de “Outra”, “selvagem”, “não-civilizada”: duvidavam até que tivesse escrito seus próprios livros — best-sellers no mundo inteiro, vamos lembrar. (Até poucos anos atrás, continuava mais conhecida no exterior: quando ensinei Quarto de despejo em uma universidade norte-americana, na década de 2000, a enorme maioria das pessoas leitoras do meu blog, no Brasil. nunca tinha ouvido falar dela.) Se, em Os sertões, Euclides da Cunha narra como o Exército exterminou um terrível Outro, no diário de Carolina Maria de Jesus temos a chance de ouvir esse Outro — na verdade, uma pessoa como nós, mas subalternizada na posição de Eterno Outro — falando em sua própria voz, sobre sua própria vida, sua própria subjetividade. O que não teriam nos contado os diários das mulheres sertanejas canudenses?
(Entrando agora, você assiste as primeiras quatro aulas na gravação, as seis seguintes ao vivo e ainda participa do nosso grupo no Whatsapp.)
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De qualquer modo, te agradeço demais. :)
Um beijo do
Alex Castro