Cada pessoa é um universo que se estende eternamente além do meu olhar.
Casa de sucos. A balconista Érica está passando meu cartão. De repente, olha por cima do meu ombro e emudece, paralisada.
Sigo seu olhar. Atrás de mim, do outro lado da rua, um ônibus acaba de parar no ponto.
Depois de manter a mirada no ônibus por alguns segundos, seu olhar sobe, se amplia, se expande, ganha o horizonte.
Em poucos segundos, porém, o ônibus sai do ponto e o encanto se quebra.
“Crédito ou débito?”, diz ela, como se nada tivesse acontecido.
Pergunto se está tudo bem, se gostaria de conversar, mas Érica me olha assustada, sem entender minha oferta.
Parece não ter percebido que passou trinta segundos viajando dentro de si mesma no meio de uma interação comercial.
O que aconteceu?
Pela minha cabeça, passam mil teorias. Viu alguém que conhecia? Rememorou toda uma história de vida com essa pessoa? Ou estava somente pensando no jantar?
Minha única certeza, entretanto, é que não sei. Jamais saberei. Cada pessoa é um universo que se estende eternamente além do meu olhar.
(O texto em si já acabou. Daqui pra baixo, é comentário.)
* * *
Sobre a prática da escrita
Dizia Papa Hemingway, e concordo, que o primeiro rascunho de qualquer coisa era lixo.
Por isso, tenho tanta reserva com quem defende coisas como “escrita espontânea”.
Não existe nada de espontâneo na escrita. É um artesanato como qualquer outro, e demanda prática, trabalho, experiência.
Para quem tem curiosidade sobre o processo, compartilho abaixo três versões preliminares do texto acima.
A primeira versão foi escrita de improviso, de supetão, em um email para uma amiga. Se eu acreditasse em “literatura espontânea”, essa versão já estaria pronta, já seria literatura.
Mas claro que não é.
A segunda versão já está bem mais trabalhada. A terceira traz mudanças grandes no final.
Por fim, na quarta versão, final, acima, o texto ficou mais enxuto e, na minha opinião, mais poderoso.
Quero muito saber a opinião de vocês.
(Muito obrigado à pessoa incrível que leu todas as versões desse texto e me deu sugestões inestimáveis.)
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1ª versão, email
tava na sorveteria (sorvete de chocolate belga diet, me julgue) e a atendente, raquel, de repente pára tudo e olha straight ahead. eu sigo o olhar dela e um ônibus tinha acabado de parar no ponto de onibus do outro lado da rua.
a raquel estava tao hipnotizada por algo que nem reparou que eu segui o olhar dela e dei um 180 no pescoco pra ver o que ela estava olhando.
e ela ficou olhando. claramente pro onibus.
e depois o olhar se fixou mais longe.
minha teoria (a gente nunca tem certeza né) é que ela ou viu alguem conhecido ou, mais provavel, viu alguem que lhe lembrou alguem conhecido, e isso fez essa entrar em um trem de pensamento.
acho que foi a segunda opção pq teorizo que, tivesse sido uma pessoa que ela de fato conhece no onibus, talvez ela tivesse mantido o olhar mais no onibus, ao inves de secar o onibus e, entao, olhar para o vazio.
só quando o onibus andou ela saiu do transe.
eu perguntei se tava tudo bem, se ela queria conversar, e ela nem entendeu. acho que ela nao percebeu que ela zoned out for 30 sec no meio de uma interação comercial.
foi bem interessante.
e eu pensei: muita gente, todas nós, na verdade, somos muito expressivas, mas com nem todo mundo a gente tem a intimidade para ever saber o que está acontecendo.
na verdade, a gente nunca, nunca sabe o que está acontecendo.
mas, pelo menos, com as pessoas com quem temos intimidade podemos perguntar.
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2ª versão, trabalhada
Casa de sucos. Érica está passando meu cartão quando, de repente, olha pra frente e emudece, paralizada.
Sigo seu olhar e, atrás de mim, do outro lado da rua, um ônibus acaba de parar no ponto.
Volto para ela e continua imóvel. Nem mesmo parece perceber que dei um 180 no pescoço para seguir seu olhar.
Será que viu alguma pessoa conhecida?
Talvez não. Pois não mantém o olhar no ônibus: depois de alguns segundos, sua mirada sobe, se amplia, se expande, ganha o horizonte.
Será que viu alguém que a lembrou de alguma pessoa conhecida?
Talvez sim. Essa pessoa, depois de lhe sequestrar a atenção, provavelmente lhe fez embarcar em um trem de pensamento para alguma localidade distante.
Poucos segundos depois, o ônibus sai do ponto, a viagem termina, o encanto se quebra.
“Crédito ou débito?”, diz ela, como se nada tivesse acontecido.
Pergunto se está tudo bem, se gostaria de conversar, mas Érica me olha assustada, sem entender minha oferta, como se não tivesse nem percebido que passara trinta segundos fora de combate no meio de uma interação comercial.
Agradeço e vou pra casa, refletindo sobre o infinito mistério que é cada pessoa, um vasto insondável universo para sempre fora do alcance de todas as outras, impermeável até aos nossos mais astutos poderes de observação.
Nunca vou saber o que houve com a Érica. Nunca vou saber realmente o que houve nem com minha melhor amiga. Nunca nem vou saber exatamente porque sinto o que sinto, porque tenho tesão no que tenho.
E tudo bem.
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3ª versão, novo final
Casa de sucos. A balconista Érica está passando meu cartão quando, de repente, olha por cima do meu ombro e emudece, paralizada.
Sigo seu olhar: atrás de mim, do outro lado da rua, um ônibus acaba de parar no ponto.
Será que viu alguma pessoa conhecida?
Talvez não. Pois não mantém o olhar no ônibus: depois de alguns segundos, sua mirada sobe, se amplia, se expande, ganha o horizonte.
Será que viu alguém que a lembrou de alguma pessoa conhecida?
Talvez sim. Essa pessoa, depois de lhe sequestrar a atenção, provavelmente lhe fez embarcar em um trem de pensamento com paradas em estações alegres e traumáticas, nostálgicas e agitadas.
Em poucos segundos, porém, o ônibus sai do ponto, a viagem termina, o encanto se quebra.
“Crédito ou débito?”, diz ela, como se nada tivesse acontecido.
Pergunto se está tudo bem, se gostaria de conversar, mas Érica me olha assustada, sem entender minha oferta.
Parece nem ter percebido que passou trinta segundos viajando no meio de uma interação comercial.
Agradeço e vou pra casa, refletindo sobre o infinito mistério que é cada pessoa, um vasto insondável universo para sempre fora do alcance de todas as outras, impermeável até aos nossos mais astutos poderes de observação.
Nunca vou realmente saber o que houve com a Érica.
Mas não porque não a conheço.
Pois também nunca vou realmente saber o que houve com a minha melhor amiga naquele dia em que brigamos.
E também nunca vou saber o que realmente houve comigo no dia em que briguei com ela.
Por que sentimos o que sentimos, tememos o que tememos, pensamos o que pensamos?
Nunca vamos realmente saber.
E tudo bem.
(Agora, volta pro começo e leia a versão final de novo. Qual você prefere? Por quê? Me conta nos comentários?
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Me paga um café?
Tudo o que produzo, todos os frutos do meu trabalho e da minha experiência, são oferecidos para você, de graça, na internet.
Caso esse conteúdo tenha adicionado valor à sua vida, peço que considere a possibilidade de fazer uma contribuição do tamanho desse valor.
Assim, você estará me dando a possibilidade de criar novos textos, produzir novos argumentos, inventar novas ideias.
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Não é uma operação de compra-e-venda. Não é um toma-lá-dá-cá.
Os textos são ofertados de graça, sem condições, sem barganhas.
Ninguém precisa se sentir obrigada a pagar por eles, nem culpada por não ter pago.
Mas, se você puder, eu agradeço, pois esse é meu trabalho e é disso que eu vivo.
Para contribuir:
apoia.se/alexcastro
(Aliás, apoiem o Salimena, autor dessa ilustração acima.)
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Apoia-se, novo espaço de mecenato
Lá em 2009, muito antes de existirem sites de financiamento coletivo (o Patreon é de 2013!), eu fiz um financiamento coletivo no braço para meu romance Mulher de Um Homem Só, inspirado nas práticas editoriais do século XIX e usando o PagSeguro – que, na época, era o único jeito de receber pagamentos. Fez tanto sucesso que comecei a pedir contribuições para as Mecenas e, assim, ganhei a vida nos últimos dez anos. Vi surgirem uma a uma todas as plataformas brasileiras, considerei migrar para todas elas, mas sempre pensei: já tenho todas as minhas Mecenas fazendo pagamentos recorrentes pelo PagSeguro, não vale a pena mudar.
Mas quem mudou foi o Brasil mudou: com o aumento da crise, as 800 mecenas foram sumindo aos poucos, até que o Pix deu o golpe de misericórdia no PagSeguro. Não tinha mais porque alguém fazer um pagamento pelo PagSeguro quando o Pix era mais fácil e mais rápido. E o Pix não tem pagamento recorrente: as pessoas fazem uma vez e esquecem. Assim, a crise me pegou também: em setembro de 2022, pela primeira vez desde dezembro de 2012, raspei o tacho das minhas economias e minha conta bancária foi a zero. (Antes disso, a última vez que eu tinha ido a zero tinha sido 2002: claramente, anos terminados em 2 são meus resets financeiros.)
E, enfim, aqui estou eu buscando por novas maneiras de ganhar a vida com a minha arte, da maneira menos capitalista e canalha possível.
A ideia do novo espaço de mecenato no Apoia-se é:
Criar uma comunidade mais próxima, de encontros, de conversas, de vídeos;
Publicar textos mais pessoais, rascunhados, incipientes;
Testar primeiras versões de contos e romances;
Promover bate-papos mais livres no Whatsapp e no Zoom;
Compartilhar minhas leituras e meus interesses nas formas de aulas mensais;
Proporcionar um ambiente único onde estejam todos os meus cursos.
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Os planos de mecenato
O plano básico, Mecenas TEXTOS (R$19), oferece textos exclusivos, mais pessoais, às vezes rascunhados, e também uma participação maior no meu processo de escritura, com acesso às primeiras versões dos meus textos ficcionais. Além disso, para quem gosta, rola um grupão de Whatsapp para conversarmos livremente todo dia, sobre qualquer coisa. Seu nome vai pra lista de mecenas (se quiser, claro) e você ganha descontos em tudo que eu fizer, cursos, eventos, etc.
O plano Mecenas NÃO-MONOGAMIA (R$39) é bem específico para as pessoas que vinham me pedindo por uma interlocução maior nesse assunto. Ele oferece, além de todas as vantagens do plano anterior, também um grupo de Whatsapp separado somente sobre não-monogamia, para que as pessoas interessadas possam fazer amizades e tirar dúvidas. Uma vez por mês (1º domingo, 17h), teremos um encontrão no Zoom para conversar mais e trocar experiências.
Recomendo o plano intermediário, Mecenas ENCONTROS (R$47), que tenta criar ainda mais espaços de intimidade e interação. Além das vantagens dos planos anteriores, ele inclui um encontro mensal (2ª domingo do mês, 17h), uma conversa de boteco sem assunto definido, só para bater-papo, e também uma aula mensal (última quarta-feira do mês, 19h), sobre literatura ou história, cujo tema será avisado com antecedência, ambos pelo Zoom. É uma maneira de eu compartilhar os meus interesses e minhas leituras de cada mês. (A próxima aula será “Kafka, um autor traído”, no dia 30 de novembro de 2022.)
Por fim, o plano mais abrangente, Mecenas CURSOS (R$88), dá acesso completo a todos os meus cursos online, passados e futuros, enquanto durar o seu apoio: Introdução à Grande Conversa: Um passeio pela história do Ocidente através da literatura (2020), Grande Conversa Brasileira: a ideia de Brasil na literatura (2021) e História do Mundo Enquanto Fofoca (2022), já completos, e os dois cursos ainda em andamento: Grande Conversa Espanhola: do El Cid ao Dom Quixote, a invenção da literatura moderna e Grande Conversa Fundadora: as obras que inventaram as línguas literárias modernas.
Para as pessoas que gostariam de ajudar um pouco mais, o plano Mecenas MIDAS (R$199) oferece literalmente tudo, por um preço um pouco mais generoso, com os meus eternos agradecimentos.
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Dá uma olhada na página de mecenato e me diz o que acha? Eu mudei tudo!
Um grande, grande beijo e muito obrigado,
Alex Castro
Que belo exercício de escrita. Eu gosto da primeira versão. Acredito que está mais enxuta, ela entrega um pedaço da ideia, sem transmiti-la totalmente. Ao contrário, a última versão de rascunho, ao final, entrega tudo, não permitindo ao leitor, portanto, seguir completando o pensamento que você começou, a reflexão que você jogou no ar. Os dois rascunhos, achei brilhantes para ler num compilado "rascunhos de alex castro". Sou fascinada por cadernos, diários, rascunhos e coisas do tipo. Neste caso, os rascunhos me parecem "mostrar" um pouco mais do escritor, seu pensamento original. É bonito, mas não como texto final.
A primeira versão do texto me fez lembrar que tenho um vinil do Eric Dolphy e Oliver Nelson que não ouço há muito tempo, em algum lugar. Obrigado.
O texto original, ou rascunho como você diz, para mim, disparado. Não saberia dizer porque.