Kafka, um autor traído
Você invadiria a casa de uma artista para ver a pintura que ela escolheu nunca exibir?
Existem vários mitos sobre Kafka. Um deles é que ele nunca publicou nada em vida e o outro, que pediu ao seu melhor amigo que queimasse toda sua obra. Errado e errado.
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Você arrombaria a casa da pintora?
Digamos que uma artista pintou uma tela, mas decidiu não expor. Achou que era muito pessoal, muito crua, muito inacabada, qualquer coisa. Guardou no seu porão e pronto.
Você, como fã dessa pintora, se considera no direito de invadir a casa dela e arrombar o porão para "apreciar" a tela?
Todo mês, na última quarta-feira, dou uma aula avulsa sobre História e/ou Literatura. A aula de novembro, dia 30, às 19h, se chamará Kafka, um autor traído.
Para quem quiser se preparar, a obra de Kafka é pequena e dá pra ler numa única tarde —certamente a tarde mais desesperadora da sua vida.
Aqui vai o mínimo que eu recomendo para uma pessoa poder dizer que "leu" Kafka: A metamorfose, Um médico rural, O veredito/ Na colônia penal e Um artista da fome. Para quem tem pouco tempo e/ou pouco dinheiro, o volume Kafka Essencial da Penguin/Companhia traz de fato o essencial do essencial.
Reparem que (tirando a última antologia) só recomendei textos que Kafka publicou e autorizou em vida. Aliás, um dos temas da aula será justamente esse:
É ético lermos as cartas íntimas de um homem intensamente privado e tímido?
É ético lermos obras de um artista que não queria que lêssemos essas obras?
Qual é o limite da autoridade autoral de um artista?
Qual é o limite da invasibilidade do público?
Temos "direito" a usufruir de uma obra de arte só porque ela existe, ou temos esse direito somente a partir do momento em que a artista libere essa obra ao público?
E se a artista não liberar?
Voltando à pergunta original, temos direito de "invadir" a casa da artista pra ver a tela que ela pintou mas decidiu não exibir?
(A aula é só para as mecenas dos planos ENCONTROS, CURSOS & MIDAS. Para fazer parte, visite o meu Apoia-se.)
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Kafka, um autor traído
Algumas das melhores obras de Kafka foram publicadas ainda em vida, como A metamorfose, Um médico rural, O veredito e Na colônia penal. Sua outra obra-prima, Um artista da fome, teve suas provas revisadas por ele em seu leito de morte e saiu pouco depois.
E ele pediu ao seu melhor amigo, Max Brod, que queimasse apenas seus papeis pessoais e obras incompletas, que não estavam à altura do seu padrão de qualidade, como O processo, O castelo e O desaparecido (Amerika).
Pessoalmente, acho Max Brod um canalha que deveria arder no mármore do inferno, mas há discordâncias. Argumentam alguns: será que somente a obra publicada de Kafka teria sido o bastante para impulsionar seu nome? Em outras palavras, estaríamos falando de Kafka, se não fosse a traição de Brod?
A minha pergunta é outra: e daí? Então quer dizer que o sucesso da traição perdoa o traidor? Max Brod é menos canalha porque sua traição foi abençoada pela posteridade?
Só Na colônia penal, Um artista da fome e Um médico rural já seriam mais que suficientes para garantir o nome de Kafka.
A Traição de Max Brod
Max Brod se defendeu das acusações de traição dizendo o seguinte: Franz sabia que eu idolatrava qualquer palavra que saísse dele, que eu jamais poderia queimar nada que tivesse escrito. Eu lhe disse isso diversas vezes. Se ele quisesse realmente queimar tudo, teria pedido a outra pessoa, não à única que ele sabia que não iria atender seus pedidos.
Na verdade, a defesa mais aceita de Max Brod é a seguinte: ele traiu seu melhor amigo em nosso nome. A humanidade merecia ler O castelo e O processo. Ele já conhecia ambos os livros – Kafka costumava lê-los para seus conhecidos – e não suportou a idéia de essas obras morrerem com seu autor. Em troca de uma perigosa abstração – a humanidade – traiu algo real e concreto, o último desejo de seu melhor amigo.
Já eu acredito que todo o mal do mundo emana de pessoas que querem salvar a humanidade, que colocam seus ideais abstratos e fugazes sobre realidades concretas como nosso amor por nossa família nossos amigos, nosso bairro.
Posturas como a de Brod possibilitaram os maiores massacres e genocídios da história: o padeiro francês que entregou o amigo aristocrata aos jacobinos, o menino que denunciou que sua família criticou o führer, o marxista que admite que o paredón cubano é necessário para a consolidação do regime, todos são Max Brods.
Para salvar a humanidade, todos entregariam seu amigo ao carrasco.
O que mais me assusta é que a maioria das pessoas apóia Max Brod sem reservas. Dizem: como poderíamos viver sem O castelo e O processo? Viveríamos muito bem, obrigado.
Max Brod não conhecia a humanidade. A humanidade é grande demais pra se conhecer. Mas Max Brod conhecia Franz Kafka. Max Brod tinha olhado nos olhos de Kafka, pego em sua mão, conhecido sua família. Max Brod sabia da timidez patológica de Kafka.
O castelo e O processo quase dá pra engolir. Afinal, são realmente obras fundamentais, que mudaram a literatura pra sempre, blá blá blá – não que Max Brod pudessem quantificar isso naquele momento, claro.
Mas nada justifica a publicação de papéis pessoais, como Carta ao Pai, por exemplo, uma carta que Kafka escreveu ao seu pai mas, de tão tímido que era, nunca teve coragem de enviar, uma carta que hoje qualquer um compra na Amazon por R$21,89 na edição da Companhia das Letras.
Kafka não pediu a destruição de suas cartas e romances inacabados para que não fossem publicados. Provavelmente, isso nem passava por sua cabeça. Kafka pediu que fossem destruídos porque eram documentos pessoais seus, que não diziam respeito à mais ninguém – e, com certeza, não à humanidade como um todo.
Se um autor não tiver direito de queimar um romance inacabado com o qual ele não está satisfeito, quem tem? Não será essa a prerrogativa mínima do artista? Decidir quando, onde e como divulgar sua obra? Ou não divulgar?
Não acredito em inferno mas, se houver, Max Brod está lá.
"E por que Kafka não queimou tudo ele mesmo?"
Pensem na dinâmica concreta da situação.
Era pra ele ter feito o que? Ficar carregando nas costas todos os manuscritos que quisesse destruir, mantendo-os sempre a mão, com um isqueiro de prontidão para quando ele sentisse a morte chegando? Como é que se adivinha a hora da morte?
Kafka não queria destruir seus trabalhos porque eram ruins, mas porque estavam incompletos, disformes e ainda não revisados. Ele ainda não tinha desistido deles e, periodicamente, retrabalhava O processo, O castelo e O desaparecido (Amerika). Não faria sentido destruí-los nem se tivesse certeza da morte iminente. Jamais arriscaria voltar do coma e descobrir que tinha queimado O processo à toa.
Que se entenda: Kafka não queria simplesmente destruir seus trabalhos. Se fosse só isso, ele realmente os teria destruído. Mas o que ele não queria era que fossem lidos em sua forma incompleta e abaixo do seu padrão de qualidade.
Enquanto fosse vivo, poderia sempre trabalhar neles. A partir do momento em que morresse, não haveria mais como melhorá-los seu senso estético preferia que não fossem vistos jamais a serem vistos incompletos. Não há decisão artística mais íntegra que essa.
Kafka morreu no exterior, em um hospital alemão, bem longe de sua mesa de trabalho em Praga, sem acesso aos seus papéis. Podia contar apenas com a lealdade de seu melhor amigo, Max Brod, para cumprir seu último desejo.
E foi traído por Brod, que publicou até suas cartas pessoais.
A opinião de Milan Kundera
Sobre as violências cometidas contra Kafka, não posso recomendar outra coisa se não o excelente livro de Milan Kundera, Os testamentos traídos. Acho que vocês já sabem qual foi o testamento que foi traído, não é?
Em outro livro, A arte do romance, Kundera escreveu:
O romancista é aquele que, segundo Flaubert, quer desaparecer atrás de sua obra, (…) renunciar ao papel de homem público. Não é fácil hoje, quando tudo o que é muito ou pouco importante deve passar pelo palco insuportavelmente iluminado dos mass media que, contrariamente à intenção de Flaubert, fazem desaparecer a obra atrás da imagem de seu autor. Nessa situação, da qual ninguém pode escapar inteiramente, a observação de Flaubert me parece quase uma advertência: prestando-se ao papel de homem público, o romancista põe em perigo sua obra que corre o risco de ser considerada como um simples apêndice de seus gestos, de suas declarações, de seus pontos de vista. O romancista desfaz a casa de sua vida para, com as pedras, construir a casa do seu romance. Os biógrafos de um romancista desfazem portanto o que o romancista fez, refazem o que ele desfez. O trabalho deles não pode esclarecer nem o valor nem o sentido de um romance, apenas identificar alguns tijolos. No momento em que Kafka atrai mais atenção do que Joseph K., o processo de morte póstuma de Kafka se iniciou.
Concordo com Kundera e percebo que acabei de escrever um longo texto sobre a vida de Kafka, sem nem tocar nas obras em si.
Faça o que eu digo mas não faça o que eu faço.
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Um beijo,
Alex