Porque não escuto podcasts
A vida é muito curta para atividades meia-boca: só vale a pena ser feito aquilo que vale a pena ser feito com atenção plena.
Venho tentando exercer a atenção plena em todas as esferas da vida.
Então, quando estou comendo, estou só comendo: não estou lendo, não estou vendo filme, não estou ouvindo música, não estou pensando na vida. Minha atenção plena está na comida.
(Naturalmente, viver com atenção plena é um projeto que nunca pode ser realizado, uma caminho para o qual não há chegada.)
Uma das primeiras consequências é uma seletividade maior das minhas atividades:
Um velho episódio de Seinfeld, que já assisti cinco vezes, ou um novo episódio de Curb your enthusiasm, podem ser até legais enquanto estou lavando louça mas simplesmente não vale a pena dedicar 22 de minutos de atenção plena exclusivamente a eles.
Quem faz duas coisas ao mesmo tempo não faz nenhuma delas direito.
A vida é muito curta para atividades meia-boca: só vale a pena ser feito aquilo que vale a pena ser feito com atenção plena.
(Ilustração por Rafael Salimena, do Linha do Trem. Sou assinante do Rafael, e você pode ser também.)
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Pergunto às pessoas que curtem podcasts: “quando e como vocês ouvem podcasts?”
Até hoje, nunca encontrei alguém que "sentasse" para ouvir um podcast e somente isso.
Pelo contrário, ouvir podcast é algo que fazem enquanto malham, correm, dirigem. enquanto lavam louça ou fazem tarefas repetitivas e mecânicas no trabalho.
Essas pessoas fazem isso por dois motivos:
Em primeiro lugar, porque vivemos em uma sociedade onde se tornou comum, aceitável, desejável adquirirmos e nos gabarmos de nossas identidades de pessoas ocupadas e muito solicitadas, sempre multitasqueando mil coisas ao mesmo tempo.
Em segundo lugar, porque os podcasts foram feitos, pensados e criados justamente para suprir essa demanda.
Nós, criadoras de conteúdo, temos sempre uma "consumidora" ideal em mente.
(Quem escreve o roteiro de um filme, que será idealmente visto num cinema escuro com atenção plena, escreve um roteiro diferente de quem escreve um capítulo de novela, que será idealmente visto numa mesa de jantar, numa sala de família, todo mundo meio distraído, etc.)
Quem faz podcast não está criando para uma "ouvinte ideal" que pára o que está fazendo e se senta no sofá da sala para somente ouvir o podcast e mais nada.
Pelo contrário, os podcasts são pensados e produzidos, conscientemente ou não, para ser a segunda ou terceira coisa que a pessoa ouvinte está fazendo.
A consequência disso é que a maioria dos podcasts que já tentei ouvir é simplesmente inviável, insuportável, intolerável de ser "somente" ouvido, especialmente aqueles no formato "mesacast", que são basicamente uma mesa de bar gravada.
(Eu também não suporto mesa de bar justamente por ser esse ambiente caótico onde todo mundo fala ao mesmo tempo, por cima umas das outras, e quase sempre as pessoas mais interessantes são as que menos falam, ou menos são ouvidas, porque são as que não interrompem e não passam por cima da fala da coleguinha.)
Enfim, me recomendam um podcast de sete pessoas que eu não conheço debatendo qualquer tema por duas horas e meia... e, sinceramente, eu não tenho esse tempo para dar.
Não para um podcast.
Têm diversos livros incríveis na minha lista leitura que eu leio em duas horas e meia. Eu tiro um cochilo de duas horas e meia e acordo renovado para escrever e produzir. Eu escrevo diversas páginas da peça que estou escrevendo em duas horas e meia.
Duas horas e meia da minha vida, desse meu tempo de vida rapidamente se escoando, é um tesouro.
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Quando falo isso, em geral, me respondem três coisas:
1) "Nem todo mundo tem sua vida boa, Alex. Eu faço multitask porque não posso me dar ao luxo de fazer uma coisa só. Não sou artista. Preciso ser eficiente!"
Isso tudo é o ego falando.
Nós supervalorizamos nossas capacidades e, por isso, nos enganamos que, de fato, conseguimos fazer eficientemente as três coisas que estamos fazendo ao mesmo tempo.
Só que não é verdade.
Eu, Alex, tento fazer uma coisa de cada vez porque, bem, essa é literalmente minha religião. (Sou zen-budista ordenado.)
Mas, se a sua prioridade é ser uma pessoa mais produtiva e mais eficiente, saiba que todos os estudos indicam que o multitask é improdutivo e ineficiente.
Aqui vai um link, do Vox, que oferece seis sugestões pró-ativas para uma maior produtividade e eficiência.
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Outra coisa que me respondem:
2) "Ué, mas nem todo podcast é mesacast."
Sim. Graças a deus, aliás.
Mas mesmo os podcasts que já ouvi com prazer, tipo o The daily, do New York Times, ou o Bobagens Imperdíveis, da Aline Valek (esses podcasts curtos e pautados onde ninguém se perde e onde se vai direto ao ponto), se estivessem transcritos, eu poderia ter consumido esse mesmo conteúdo na metade do tempo, ou no dobro do tempo, de acordo meu tempo pessoal e com minhas necessidades naquele dia.
Considerando que eu faço uma coisa de cada vez (ou seja, que não ouço o podcast lavando louça), acho que não existe vantagem de ouvir esse conteúdo em relação a ler esse conteúdo.
(Disclaimer: fui um dos entrevistados do Bobagens Imperdíveis e a Aline Valek é uma das pessoas que mais admiro nessa vida. também fui entrevistado pelo Coemergência que é paradoxalmente um podcast longo, com várias pessoas, sempre com temas relacionados à atenção, simplicidade, zen, etc.)
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Nesse ponto, alguém comenta a terceira coisa que sempre escuto:
3) "Ué, então você não gosta de áudiolivro?"
Eu adoro áudiolivro.
(Aliás, narrei eu mesmo o áudiolivro do meu Atenção., lançado pela Tocalivros.)
Mas eu adoro áudiolivros justamente nos casos onde o áudiolivro traz vantagens em relação ao livro escrito.
Por exemplo:
a. Quando narrado pela própria pessoa autora
(É uma vibe diferente, única, exclusiva, intimista, ouvir um livro do Stephen King narrado por ele mesmo. imaginem se desse para ouvir Dom Quixote narrado por Cervantes!);
b. Quando narrado por uma grande artista que traz sua própria interpretação
(Estou ouvindo Ana Karenina narrado pela Maggie Gyllenhaal, que ganhou o prêmio de melhor áudiolivro clássico de 2016 e é, de fato, incrível. Aracy Balabanian narrando Clarice Lispector também potencializou muito o texto.);
c. Quando a obra original foi criada originalmente para ser ouvida
(Como a Ilíada, Odisséia, Mil e uma noites, etc. Adoro especialmente ouvir o áudiolivro da Ilíada na tradução do poeta inglês Alexander Pope, que é minha tradução preferida, a mais poética, e que só fica mais rica e poderosa quando declamada por um ator competente.);
d. Quando acrescenta elementos sonoros que vão além do texto
(A versão de Macunaíma em áudiolivro pela Tocalivros é muito mais legal e divertida do que o simples livro impresso, que achei entediante, pois incorpora muitas músicas do folclore brasileiro descobertas e gravadas pelo próprio Mário de Andrade, que ressaltam o aspecto pândego do personagem. igualmente, no áudiolivro de 1808 ou 1822, do Laurentino Gomes, quando o texto fala das músicas que dom Pedro I compunha, podemos ouvir as próprias músicas no fundo.)
e. Quando é uma adaptação com grande elenco e sonoplastia
(O áudiolivro de Guerra dos tronos da Tocalivros tem 35 atores. Em um livro complexo com muitos personagens, o fato de cada um ter uma voz diferente ajuda muito a diferenciá-los. A adaptação de Senhor dos Anéis de Brian Sibley para a BBC, em 1981, uma verdadeira superprodução, me trouxe muito prazer e alento em fases difíceis da minha vida e, durante quase vinte anos, foi o mais próximos que nós, fãs da série, tínhamos de uma versão cinematográfica.)
Todos esses áudiolivros são criações artísticas por si só e merecem serem ouvidos e degustados exclusivamente: eu deito na rede, apago a luz e ouço, deliciado.
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Talvez minha maior questão com podcasts seja simplesmente o seguinte:
Se eu ouvir podcasts quando estiver andando, correndo, malhando, dirigindo, lavando louça, etc...
Quando vou pensar argumentos, desenvolver raciocínios, ter ideias, elocubrar enredos?
Precisamos desse tempo de silêncio.
Ou enlouquecemos.
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As pessoas me dizem que ouvem podcast lavando louça, correndo, etc
E pergunto:
"Ok. Mas então quando pensam, refletem, ressignificam suas vidas em suas cabeças? Em que momento estão em silêncio dentro de si mesmas?
E percebo, pelas respostas, que esse tempo de silêncio, indispensável para a minha sanidade, para a maioria das pessoas é simplesmente intolerável.
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Aviso tristemente necessário
Nada disso que escrevi é uma crítica às bravas pessoas que produzem podcasts no brasil e que só merecem elogios.
Espero que tenha ficado claro que eu não consumo podcast não porque seja um meio inerentemente ruim ou mal-feito, mas apenas porque minhas prioridades de vida e práticas religiosas me levaram para um outro caminho que não comporta o multitasking necessário para se fruir um podcast.
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Lembra que ofereci todos os meus cursos pela metade do preço essa semana? Pois é. Decidi manter os preços. Continua tudo pela metade. A aula de Camões, do curso Grande Conversa Fundadora, acontece semana que vem e a de Shakespeare, em agosto. Vem com a gente?
Um beijo, do Alex Castro
Belíssima colocação, Alex.
Apesar de ainda ser multi em muita coisa, tenho meus momentos de atenção plena e os percebo justamente naquilo que mais gosto de fazer, foi uma escolha natural do processo de seguir fazendo o que gosto, sempre detalhado e focado.
Cara, entendo 100% o que tu diz aí. Em 2014, já meio incomodado com essa percepção, me juntei a um amigo e fizemos um podcast que só vale a pena ser ouvido se for pra prestar 100% de atenção nele hahaha. Sério. O ideal, eu diria, é realmente deitar e ouvir SÓ o podcast. A gente se preocupou em cada mínimo detalhe dele - tanto que escrevemos, atuamos, compomos a trilha. Não podíamos terceirizar a outro pq era um incômodo que parecia bastante particular nosso. Ele é de ficção e tal, o A Voz de Delirium.
No finalzinho de 2019 escrevi um post que tem uma sensação bem parecida com essa tua, tá aqui: https://andremonsev.medium.com/o-que-o-p%C3%B3s-ano-dos-podcasts-pode-nos-ensinar-8630ba02cdeb
Desculpa meter loucamente uma auto divulgação aqui. Acho isso feíssimo e me sinto sujo. É que até então não tinha encontrado esse incômodo tão bem pontuado por aí, e foi meio que um alívio encontrar teu texto.