Morreu Milan Kundera, que viu humor no absurdo
Está vago o posto de maior escritor vivo da humanidade
Acordei hoje às 8h da manhã com uma notícia e um pedido: Milan Kundera tinha morrido, eu poderia escrever um obituário dele para a Folha?
Escrever um texto tão complexo, em tão pouco tempo, logo depois de acordar, é exaustivo, mas dá uma certa onda. O que deu pra escrever, em tão pouco tempo e sem acesso a nenhum livro, foi isso aqui. Confesso que gostei do resultado.
(Por coincidência, ontem e hoje minha biblioteca está passando por sua limpeza sazonal, que faço toda virada de estação, quatro vezes por ano. Essa é a de inverno.)
O link para a matéria da Folha está aqui: Obra de Milan Kundera supera a guerra, o exílio e a diáspora com humor (Por favor, leiam, comentem, compartilhem. Tudo isso só me ajuda.)
Para quem não viveu o Brasil de 1985, é difícil enfatizar como A insustentável leveza do ser estava sendo lido e comentado por todos os lados. No país da Abertura e da Nova República, no ano de Tancredo recém-morto e Sarney recém-empossado, todos os seus temas de repressão e de liberdade adquiriram uma relevância e uma urgência inéditos. Kundera foi um dos autores mais importantes que nos explicou aquele momento histórico que estávamos vivendo.
Abaixo, a versão completa de duas citações que saíram resumidas na matéria da Folha.
Primeiro, o trecho de A cortina que finalmente me fez entender tudo o que Kundera tentou explicar sobre a precariedade das línguas e literaturas das “nações menores”:
“Os poloneses são tão numerosos quanto os espanhóis. Mas a Espanha é uma velha potência que nunca foi ameaçada na sua existência, ao passo que aos poloneses a história ensinou o que quer dizer não existir. Privados de seu Estado, eles viveram durante mais de um século no corredor da morte. “A Polônia ainda não morreu” é o primeiro verso patético de seu hino nacional, e há cerca de cinquenta anos Witold Gombrowicz escreveu uma frase numa carta para Czesław Miłosz que nunca viria à mente de nenhum espanhol: “Se daqui a cem anos nossa língua ainda existir...”.
Esse é um dos nossos privilégios de brasileiro. Por mais pobres e periféricos que sejamos, por mais insignificante que Portugal seja no contexto europeu, nunca me passou pela cabeça que, daqui cem anos, não haveria pessoas lendo e escrevendo, cantando e compondo, na língua de Machado de Assis e Guimarães Rosa.
E, em segundo lugar, um trecho de A insustentável leveza do ser onde o narrador explicita a construção musical da própria obra:
“[A vida humana] é composta como uma partitura musical. O ser humano, guiado pelo sentido da beleza, transpõe o acontecimento fortuito (uma música de Beethoven, uma morte numa estação) e faz dele um tema que, em seguida, inscreverá na partitura da sua vida. Como o compositor faz com os temas de uma sonata, está sempre a voltar a ele, a repeti-lo, a modificá-lo, a desenvolvê-lo, a transpô-lo. ... Mesmo nos momentos da mais profunda desordem, é segundo as leis da beleza que, secretamente, o homem vai compondo a sua vida. ... Enquanto as pessoas são novas e as partituras musicais das suas vidas ainda só vão nos primeiros compassos, podem compô-las em conjunto e até trocarem temas (como Tomas e Sabina trocaram o tema do chapéu de coco). Porém, quando se conhecem numa idade mais madura, as suas partituras musicais já estão mais ou menos acabadas e cada palavra, cada objeto, tem um significado diferente na partitura de cada uma.”
Kundera era fácil, na minha humilde opinião, o maior escritor vivo. Agora, não sei mais quem seria. Fico entre Lobo Antunes e Houellebecq, Alexeivich e Ferrante.
Se quiserem comprar livros do Kundera e puderem fazer pelos meus links, eu ganho uma comissãozinha e agradeço o apoio. Recomendo começar pelos romances A insustentável leveza do ser e A brincadeira, ou pelos contos de Risíveis amores.
Para quem é da literatura, amo de paixão os livros de ensaios: A arte do romance, Os testamentos traídos e A cortina. Kundera me fez ler Sterne, Musil e Rabelais, que eu talvez não tivesse lido sem sua empolgação, e me fez reler Cervantes e especialmente Kafka com novos e melhores olhos.
Muito obrigado a Milan Kundera, por tudo que fez por mim, como leitor e como escritor, e obrigado a você, que me leu até aqui.
(Não esqueçam de ler a matéria da Folha!)
Um beijo,
Alex
Também gostei do resultado, Alex.
muito bom ... aprendendo sempre com seus comentários / observação/análise e equilíbrio , abraços