A esquerda conservadora e a direita disruptiva: o caso USAID
Porque é bom o Trump acabar com a perversa agência USAID
Nem tudo que o outro lado faz é necessariamente ruim. A esquerda, hoje conservadora, já foi disruptiva. Nada impede que um homem de esquerda, como eu, celebre algumas ações disruptivas de governos de direita. Como, por exemplo, acabar com a USAID.
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A esquerda conservadora e a direita disruptiva
A esquerda tem estado cada vez mais conservadora. Nosso discurso tem sido o de manter e proteger as instituições. Temos até um juiz de estimação, esse improvável herói, o nunca esquerdista Xandão, indicado ao STF pelo Temer. (Vale gostar do juiz indicado pelo golpista? Parece que vale.)
Em 2013, quando estávamos na rua celebrando a aprovação do casamento gay (e eu celebrei muito), não consegui esquecer que, não faz muito tempo, a pauta da esquerda era justamente destruir instituições burguesas e ultrapassadas como o próprio casamento, uma pauta antes lugar-comum e hoje impensável. Afinal, era a época do (e, por favor, cante comigo, pois a música está tocando na minha cabeça) "this is the dawning of the age of Aquarius..."
(Abaixo, duas imagens que criei e compartilhei na época.)
Antigamente, nós, da esquerda, queríamos derrubar as instituições e construir um mundo novo. Nossos adversários naturais eram os conservadores, esses malvadões!, que queriam conservar aquele velho mundo como ele sempre foi: machista, desigual, capitalista.
Agora, é a direita, mais ideológica, mais dinâmica, mais disruptiva, que quer derrubar instituições e construir um mundo novo — um mundo novo de acordo com sua ideologia e com suas prioridades, claro — enquanto nós ficamos aqui com juiz de estimação.
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Nem sempre o outro lado está errado em tudo
Enfim, sou e continuo de esquerda, mas, já percebi que vão haver várias destruições positivas do Governo Trump e não vou deixar de aplaudi-las.
Porque essa, aliás, é outra coisa que se perdeu nas nossas guerras ideológicas. Hoje, parece que o senso comum é q temos que discordar de TUDO que diz e faz o outro lado, como se eles estivessem necessariamente errados em cada uma de suas posições. Mas se o Governo Trump falar que a grama é verde e o céu, azul, não vou discordar só pra ser do contra. Nisso concordamos e tudo bem: continuamos adversários no resto.
Se você é de esquerda, olha para a direita e não vê nada, nada, nada em nenhuma paula deles que você concorda, sinto te informar, você não é esquerda radical (esquerda radical sou eu): você só sofreu lavagem cerebral mesmo.
Eu ter um lado, e saber qual é o meu lado, não significa achar que o outro lado é povoado de pessoas terríveis, idiotas, erradas em tudo.
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Três disrupções do Trump
Três coisas que o Governo Trump quer destruir: uma que eu discordo, outra que não sei, e uma última que eu celebro.
Trump quer acabar com o CDC (Centers for Disease Control and Prevention), o que é uma pena, e é obscurantismo, e pode deixar não só os EUA mas todo o mundo mais vulnerável às próximas pandemias. Discordo. O CDC vale ser preservado.
Por outro lado, Trump também quer acabar com o equivalente estadunidense do Ministério da Educação. Não sei se discordo. Os Estados Unidos da América são mesmo muito mais estados (soberanos) unidos do que um país só. Lá, a Federação é muito mais solta do que no Brasil. Teoricamente, toda a soberania cabe aos estados e ao governo federal só caberiam aquelas poucas coisas que transcenderiam a soberania dos estados, como defesa, política monetária, etc. Nesse contexto, realmente, não sei se faz sentido um Ministério da Educação federal. Deixa os estados decidirem. California e Nova York vão continuar ensinando ciência e o Alabama vai ensinar cada vez mais a Bíblia e, em breve, se tornará um Afeganistão cristão. E tudo bem. A longo prazo, as diferenças entre estados serão tão grandes que o país vai acabar rachando — o que será uma enorme vantagem para o mundo inteiro.
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A perversa USAID
Por fim, Musk anunciou ontem que pretende acabar com a USAID (United States Agency for International Development), um dos braços mais canalhas e insidiosos da política externa estadunidense. (O que é a USAID, no site da CNN, aberto.) No papel, parece incrível. Dizem que é responsável por 40% da ajuda humanitária do mundo. Mas, mesmo se for verdade, é um dinheiro caro, muito caro... pois traz atrelado a ele toda a política externa intervencionista dos EUA.
Já morei nos EUA, em Cuba, no Brasil. São os países que mais conheço. Em Cuba, a USAID promoveu diversos atos de espionagem, sabotagem e subversão contra o governo. Funcionários eram repetidas vezes desmascarados como agentes da CIA. No Brasil, a USAID foi diretamente responsável pelo desmonte da nossa educação, que abriu mão de grande parte das matérias de humanidades em prol de um perfil mais técnico, medidas essas implementadas pela ditadura de 64. Em 2005, a USAID se recusou a financiar o programa anti-AIDS do Brasil porque nosso governo, realista, se recusava a promover abstinência como método contraceptivo.
Os direitistas light do Partido Democrata (que de esquerda não têm nada) podem até estar chiando, mas, para nós aqui, pessoas brasileiras, latino-americanas, terceiro-mundistas, o fim da USAID é pra ser celebrado.
Nem tudo que é ruim pra eles é ruim para nós
Vamos lembrar sempre: não somos os EUA. Nem tudo que é ruim pra eles será ruim para nós. Considerando o poder disruptivo e intervencionista dos EUA nos últimos 150 anos, qualquer coisa que diminua sua capacidade de projetar esse poder pode sim muito bem ser positiva para nós.
Se os EUA extinguissem suas Forças Armadas e dedicassem todo esse dinheiro a dar saúde e educação gratuita para sua população, a vida dos estadunidenses seria melhor e a vida dos não-estadunidenses seria melhor ainda.
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Por que casar?
Em tempo: talvez você esteja se perguntando, “Bem, se o Alex é contra o casamento, por que ele casou duas vezes?”
É simples. Eu casei porque a nossa legislação favorece pessoas casadas com vários direitos que pessoas solteiras não têm. Se nossa legislação não fosse tão fortemente pró-casamento, eu não teria casado.
(Até pouco tempo atrás, o viés era tanto que quaisquer duas pessoas de sexos opostos podiam casar sem precisar dar satisfações a ninguém, mas, se quisessem separar, tinham que convencer um juiz. Felizmente, esse absurdo já acabou.)
Enfim. Casei para compartilhar meu visto de trabalho e meu plano de saúde, e também meus bens sem pagar imposto adicional. Mais importante, casei para decidir quem seria a pessoa com poder de desligar meus aparelhos.
Não casei por amor, porque não precisa casar para amar.
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Uma foto, uma newsletter
Estou passando a semana em São Paulo.
A foto abaixo foi tirada pela linda da Ana Lima Cecílio, livreira e curadora, queridíssima amiga, uma das pessoas que mais entende de livro no Brasil. Ela acabou de lançar uma nova newsletter que não posso recomendar mais enfaticamente: A lábia.
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Novas redes sociais
Bluesky: outrofobia.bsky.social
Threads: threads.net/@outrofobia
E as antigas:
Twitter: x.com/outrofobia
Facebook: facebook.com/AlexCastroEscritor
Instagram: instagram.com/outrofobia
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Próximas atividades
Domingo, 9fev, 16h: Conversa livre, Prisão Autossuficiência
Quarta, 12fev, 19h: aula, Prisão Trabalho
Domingo, 16fev, 16h: aula, Racismo e literatura brasileira em De onde eles vêm, de Jeferson Tenório
Domingo, 23fev, 16h: aula, Cantigas, Grande Conversa Medieval
Quarta, 26fev, 19h: aula, Prisão Autossuficiência
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Paga um café para um artista que você curte?
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Se quiser fazer um pix, agradeço: eu@alexcastro.com.br
Linda foto!
A sua menção ao USAID me fez lembrar mais uma vez de ler o livro As universidades e o regime militar de Rodrigo Patto de Sá Motta, que estranhamente nunca entra em promoções de livros. Ele fala da parceria entre o MEC e o USAID para reformar as grades curriculares das universidades federais brasileiras.
Tenho refletido muito sobre como a esquerda perdeu seu potencial proposicional. Por óbvio que não defendo a virada fascista que estamos vivendo. Contudo, percebo claramente que a extrema direita tem tido muito mais sucesso em capturar a frustração que existe na sociedade e canalizar ela pros seus fins. Uma coisa é certa: a maneira como as coisas se estruturam já não faz mais sentido e não tem sido capaz de sequer manter um horizonte que as pessoas almejem. Por exemplo: defendo a não precarização do trabalho. Mas se falarmos apenas assim, as pessoas vão entender que estamos defendendo trabalho CLT com jornadas extenuantes, ambientes de trabalho abusivos e salários baixos. O que se deveria defender é não apenas a manutenção da CLT mas também a criação de empregos qualificados, que remunerem as epssoas pra além do mínimo, que sejam estáveis etc. Duvido que exista alguém que realmente almeje trabalhar até morrer e nem se aposentar. Cabe a nós propor e construir algo que realmente seja voltado a garantir de verdade a dignidade das pessoas
pessoas.