Comprar livros é uma aposta no futuro
O mal-estar do tsundoku. E mais: as melhores ofertas de livros bons do Prime Day
Antigamente, cavalos com estribos e barcos a vela já foram tecnologias que mudaram o mundo. Hoje, se tornaram objetos de luxo para uma elite de colecionadores. Considerando que a Wikipédia tomou o lugar das enciclopédias, e que uma pessoa intelectual não precisa mais ter acesso físico a uma biblioteca de papel para ser bem informada, os livros físicos ainda servem para alguma coisa? Pior: existirá alguma justificativa razoável para legitimar o comportamento de nós, pessoas que compramos mais livros do que conseguimos, ou mesmo tentamos, ler?
(Uma versão muito, muito resumida desse texto saiu na revista 451 desse mês e está fazendo um sucesso inesperado. Aqui vai a versão expandida, com todos os detalhes, referências, conexões. E não deixem de linkar e divulgar a matéria original lá na 451. Todos os links de livros levam para a Amazon BR. Clicando neles e comprando alguma coisa na Amazon, qualquer coisa, eu ganho uma comissão e fico muito grato. Não esqueçam que estamos no meio da semana Prime Day e tem uns descontos rolando realmente impressionantes. Vale a pena clicar nos links e conferir. E eu te agradeço, muito, muito mesmo.)
Quantos livros são muitos livros?
Lá por 2014, a rede social Shelfari tinha uma comunidade chamada “Acumuladores Compulsivos de Livros”. Para fazer parte era preciso ter no mínimo mil livros. Muito? Pouco? (Em 2016, a Shelfari se uniu ao Goodreads, uma rede social de livros equivalente ao nosso Skoob. Hoje, no Goodreads, que pertence à Amazon, não existe nenhuma comunidade de acumuladores de livros. Melhor não estigmatizar logo os melhores clientes.)
Nosso maior best-seller, Paulo Coelho, em coluna publicada no jornal O Globo de 10 de outubro de 2004, revelou só ter 400 livros, “alguns por razões sentimentais, outros porque estou sempre relendo.” Conversei com Paulo Coelho em fevereiro, vinte anos depois, para saber se continua com apenas 400 livros ou se algo tinha mudado. Ele me respondeu que agora são apenas 300 e que não guarda mais os livros que relê, só os afetivos: “Tenho a coleção completa de Sherlock Holmes, Henry Miller, Malba Tahan.” E, na coluna do jornal, explica: “Tal decisão foi tomada por vários motivos, e um deles é a tristeza de ver como bibliotecas acumuladas cuidadosamente durante a vida são depois vendidas a peso, sem qualquer respeito.”
Paulo Coelho não está errado. Moro em Copacabana, bairro com maior concentração de idosos do país. Todo dia, andando pelo bairro, vejo netos e bisnetos esvaziando apartamentos. Por razões sentimentais, como no caso de Coelho, um móvel ou outro é resgatado, talvez alguns poucos livros: o resto (quem tem espaço para tanta tralha?) acaba empilhado nas calçadas sujas de urina.
Em 2005, durante o furacão Katrina, eu estudava em Nova Orleans. A cidade passou cinco semanas fechada, as universidades cancelaram o semestre letivo, boa parte da população se espalhou pelo país, muitos não voltaram, a maioria parou de pagar aluguel. Sem receber, os senhorios começaram a despejar nas ruas o conteúdo das casas. Muitos livros que tinham sobrevivido bravamente secos ao furacão terminaram assim, poucas semanas depois, abandonados nas calçadas, molhados e mofados. Em meia hora de caminhada da minha casa ao campus, eu passava por milhares de exemplares, muitos que queria desesperadoramente folhear, mas não ousava: o mofo era tóxico.
Porque, fundamentalmente, hoje ou amanhã, todo livro é lixo.
“Pessoas portadoras de tsundoku”
Existem as pessoas bibliófilas, do grego “biblio”, ou seja, “livro”: quase sempre intelectuais, adoram ter livros raros, edições únicas, várias traduções dos mesmos textos. Reúnem coleções profissionalmente catalogadas que podem até ser de muita utilidade para pesquisadoras. Algumas das mais famosas pessoas bibliófilas brasileiras, como José Mindlin e Plínio Doyle, tinham dezenas de milhares de volumes em bibliotecas particulares que as vezes enchiam apartamentos inteiros. Bibliófilas planejam, organizam, sempre sabem exatamente o que compram e o que possuem.
Existem as pessoas acumuladoras de livros, do inglês “hoarders”. “To hoard” é o verbo para “acumular”. Então, as hoarders, ou acumuladoras, acumulam enormes quantidades de objetos, inclusive livros. Via de regra, quando se usa o termo “acumuladora”, quase sempre já está se falando de uma patologia: são pessoas que acumulam objetos porque simplesmente não conseguem jogá-los fora . Muitas vezes, suas casas parecem chiqueiros, pois também podem ser incapazes de se desfazer inclusive do lixo. E são também muitas vezes incapazes de catalogar, cuidar, organizar, até mesmo limpar seus objetos. O reality show Acumuladores compulsivos, às vezes bem doloroso de assistir, já teve mais de quinze temporadas desde 2009. Não falta assunto.
Ou seja, essas duas personagens podem, quem sabe, até ter as mesmas quantidades de livros, mas não poderiam ser mais diferentes: na casa da bibliófila, os livros estão limpos, organizados, catalogados, podendo até ser usados por pesquisadoras; na da acumuladora, estão sujos, rasgados, empilhados pela casa, e não são possíveis de serem usados por ninguém, nem pela própria; fundamentalmente, já são lixo, um lixo de papel que não foi jogado fora.
E existimos nós, pobres mortais que não temos nem a seriedade e o senso de propósito das bibliófilas, e nem a patologia descontrolada das acumuladora de livros, mas que, sim, vamos comprando livros pela vida, um por um, ou talvez de cinco em cinco, e, na semana que vem, antes de termos lido qualquer uma das compras da semana anterior, já estamos comprando novos livros, que vão (ai de nós) se acumulando bibliofilamente por nossas casas sem serem lidos. As pessoas japonesas, sempre elas, têm um nome para essa prática: “tsundoko”, das palavras “tsunde” (empilhar), “oku” (algo como deixar correr) e “doku” (ler). O termo tsundoku surgiu no Japão do século XIX, mas acabou ficando popular mesmo no contexto da afluência e consumismo do pós-guerra do século XX. Assinar, ou mesmo apenas ler, uma revista como a 451 já pode ser considerado sinal de tsundoku precoce.
Resta uma dúvida: se as praticantes da bibliofilia são as bibliófilas e as de hoarding, acumuladoras, como nós, acometidas por diferentes graus de tsundoku, nos identificamos? Qual é nossa tribo? Tsundoqueiras ou tsundoquistas? Pessoas portadoras de tsundoku ou pessoas em situação de tsundoku?
Uma biblioteca, mas do contra
Quando entravam na biblioteca particular (30 mil livros) de Umberto Eco, bibliófilo italiano e autor do best-seller O nome da Rosa, a primeira pergunta da maioria das pessoas sempre era um espantado “Você leu todos os esses livros?” Mas uma biblioteca de livros lidos é como uma sala de caçador cheia de animais empalhados: ela não serve para nada, exceto dar palmadinhas no ego de seu dono. “Olha esse javali que eu cacei!”, “Olha esse Ulisses que eu li!”, etc. O valor de uma biblioteca pessoal está justamente nos livros não lidos, no potencial de leituras ainda por realizar, nas conexões inesperadas entre obras aleatórias.
Uma das muitas pessoas que repete essa anedota já quase proverbial é Nassim Nicolas Taleb, investidor milionário e enfant terrible das listas de mais vendidos, em seu livro A lógica do Cisne negro: o impacto do altamente improvável, publicado no Brasil em 2008 pela Best Seller. Sempre fascinante, Taleb se torna ocasionalmente cansativo por fazer questão de ser sempre do contra: ele recomenda, por exemplo, nunca ler jornal nem acompanhar o noticiário. Uma biblioteca pessoal, defende ele, deve conter tantas coisas que o dono desconhece quanto seus meios financeiros permitirem. (Nesse momento, Taleb sempre se gaba de ser mais rico que seu leitor.) Enfim, conclui, “quanto mais você sabe, maiores devem ser suas fileiras de livros não lidos.” Essa seria, define ele, sua “antibiblioteca”.
Ano passado, a Companhia das Letras publicou Como organizar uma biblioteca, um dos últimos livros de Roberto Calasso, legendário editor italiano e das poucas pessoas capazes de rivalizar em erudição com seu compatriota e contemporâneo Umberto Eco. (Deve ser algo na água da Itália.) Para Calasso, bibliotecas deveriam ser organizadas de forma aleatória e lúdica, um lugar para o usuário se perder e, quem sabe, encontrar um livro ainda melhor quando se está buscando por outro apenas adequado. Mais importante, toda boa biblioteca é comprada no presente, mas para ser útil no futuro: “Nada tira do fascínio de ter nas mãos – na hora – um livro cuja necessidade não se sabia até um momento antes,” escreve ele. “O gesto decisivo permanece o de ter comprado algo, um dia, pensando que seu uso era somente hipotético.”
Ou seja, pegando carona em Taleb que pegou carona em Eco e ecoando Calasso, não é que sou hiper consumista, alucinado e descontrolado, tsundokoso estágio IV. De modo nenhum, me respeita, estou montando uma antibiblioteca lúdica. Na verdade, uma aposta no futuro.
O tsundoquento é, antes de tudo, um otimista
Conversei também com a espanhola Irene Vallejo, autora do best-seller internacional O infinito em um junco: A invenção dos livros no mundo antigo, publicado no Brasil pela Intrínseca em 2022, uma obra deliciosa que tira toda e qualquer dúvida sobre livros, desde “onde os gregos compravam literatura?” até “como funcionava a Biblioteca de Alexandria?” Ainda faz sentido comprarmos livros?, perguntei.
Vallejo se confessa surpresa com a idéia de que um novo formato ou suporte deve necessariamente substituir ou tornar obsoletos os anteriores. Ao invés de celebrarmos o enriquecimento das alternativas, se espanta ela, criamos uma falsa competição. Um áudiolivro pode ser ouvido na academia ou enquanto se varre a casa. Os livros eletrônicos são úteis em viagens ou residências no exterior. Os livros de papel oferecem a experiência estética do design, das ilustrações e dos mapas; da dimensão tangível do cheiro, do som, do tato; permitem dedicatórias do autor ou de quem presenteia; e, além disso, estudos indicam que se retém mais a informação na leitura em papel. “Eu, como leitora,” diz ela, “me sinto uma felizarda por ter tantas opções.”
E sobre o acúmulo exagerado de livros? Devem existir limites ao tsundoquismo maníaco? Não estaremos comprando livros demais? Responde Vallejo:
“As bibliotecas nascem quando a fome por livros é maior que o ritmo de leitura. Comprar livros é uma forma de afirmar a esperança que viveremos o suficiente para ler tudo que nos interessa. Uma ilusão, claro. Mas uma forma de otimismo.”
Para Coelho , o livro de hoje é o lixo de amanhã. Por isso, não vale a pena acumulá-los. Para Taleb, Eco e Calasso, livros são ferramentas de trabalho. Por isso, vale a pena tê-los, mesmo se não forem usados. Para Vallejo, por fim, o livro de hoje é uma aposta no amanhã. Por isso, vale a pena comprá-los. Nem que apenas pela promessa de que estaremos vivos para lê-los.
Tsundófilos, estamos autorizados.
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Para ler mais
Dois textos meus na Folha de São Paulo sobre Calasso e Vallejo:
'O Infinito em um Junco', de Irene Vallejo, reflete a luta contra a morte
De tema aparentemente desinteressante, livro já vendeu 700 mil exemplares e busca responder as mais frutíferas dúvidas
Bibliotecas desordenadas são melhores, defende escritor italiano
Roberto Calasso escreve que livros não devem ser organizados de maneira lógica, mas lúdica, para que o leitor se perca
Leia também minha newsletter de anteontem sobre a lista dos cem livros do século, feita pelo jornal New York Times.
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Para registro
Declarações de Irene Vallejo, dadas pelo Instagram no dia 18 de março de 2024:
“A mí me sorprende la idea recurrente de que los nuevos formatos deberían lógicamente arrinconar y expulsar a los anteriores. En lugar de celebrar el enriquecimiento de las opciones, creamos una falsa competencia, que no es real en la experiencia de los lectores. No se trata de elegir bando. Cada posibilidad tiene ventajas y desventajas. Los libros electrónicos son útiles para vacaciones o estancias en el extranjero. También permiten aumentar el tamaño de letra. Los audiolibros se pueden escuchar en el gimnasio o mientras haces tareas domésticas. Los libros de papel ofrecen la experiencia estética del diseño, de la dimensión tangible (olor, sonido, tacto, ilustraciones). Además, permiten la dedicatoria del autor o de la persona que te lo regala. Por otro lado, distintos estudios académicos demuestran que retenemos más información al leer en papel. En función de estas consideraciones —y de las preferencias personales—, podemos preferir un formato u otro en cada contexto.
Yo me siento afortunada como lectora. En la vida en general, disfruto la variedad de opciones. Creo que la idea de jerarquía, de superioridad e inferioridad de unas soluciones respecto a otras, es un tanto arbitraria. Bienvenida sea la posibilidad de elegir y cambiar.
Las bibliotecas nacen de un apetito de libros más grande que el ritmo de lectura. Comprar libros es una forma de cimentar la esperanza de vivir para leer todo lo que nos interesa. Una ilusión, en definitiva. Una forma de optimismo.”
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Algumas promoções do Prime Day
Abaixo, alguns livros famosos e/ou importantes que estão saindo com um bom desconto no Prime Day. Todos selecionados pela linda da Marina.
Sobre a terra somos belos por um instante, Ocean Vuong (55% de desconto)
O avesso da pele, Jeferson Tenório (50% de desconto)
Eneida, Virgílio, tradução de Carlos Alberto Nunes (40% de desconto)
O morro dos ventos uivantes, Emily Brontë (30% de desconto)
A quinta estação, N.K. Jemisin (45% de desconto)
Prosa, Charles Baudelaire (50% de desconto)
Grande Conversa Medieval
Algumas de nossas próximas leituras, com enormes descontos:
Beowulf: e outros poemas anglo-saxônicos (45% de desconto)
O livro do travesseiro, Sei Sonagon (45% de desconto)
Confissões, Agostinho de Hipona (42% de desconto)
Introdução à Suma Teológica, Martinho Grabmann (60% de desconto)
Espelho das almas simples, Marguerite Porete (51% de desconto)
De diligendo Deo, Bernardo (40% de desconto)
Conselhos espirituais, Mestre Eckhart (30% de desconto)
A mística e os místicos, Marcus Reis Pinheiro, org (50% de desconto)
Divina Comédia, Dante Alighieri (30% de desconto)
As viagens, Marco Polo (42% de desconto)
Cantigas Trovadorescas (50% de desconto)
Grande Conversa Brasileira
Os livros mais fundamentais e inescapáveis para entender o Brasil:
Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda (50% de desconto)
Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre (60% de desconto)
Os sertões, Euclides da Cunha (55% de desconto)
O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil, Darcy Ribeiro (52% de desconto)
Um defeito de cor, Ana Maria Gonçalves (50% de desconto)
Formação da literatura brasileira: Momentos decisivos, Antonio Candido (22% de desconto)
A paixão segundo G. H., Clarice Lispector (50% de desconto)
A hora da estrela, Clarice Lispector (50% de desconto)
Água viva, Clarice Lispector (53% de desconto)
Felicidade clandestina, Clarice Lispector (41% de desconto)
Grande sertão: veredas, João Guimarães Rosa (33% de desconto)
Auto da Compadecida, Ariano Suassuna (50% de desconto)
Livros sobre os quais já falei na Folha de São Paulo
Contra a interpretação, e outros ensaios, Susan Sontag (45% de desconto)
A insustentável leveza do ser, Milan Kundera (31% de desconto)
Carta ao pai, Franz Kafka (50% de desconto)
Primeiro amor, Ivan Turguêniev (25% de desconto)
(Confira minhas matérias na FSP)
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Espero que tenham curtido o texto e as dicas. Boas compras e boas leituras. :)
Me acertou em cheio a ideia dos livros como uma esperança de estar vivo para lê-los, uma aposta no futuro. A pilha vai crescendo e já penso que alguns que estão comigo, agora aos 40, podem nunca ser contemplados com “agora é sua hora, vem cá”. Adorei o texto!
ótimo ..obrigado...Abraços..