Ainda é cedo pra falar de cinema
O Cinema é a mais recente das grandes formas de arte. Tudo ainda está por fazer, tudo ainda está por descobrir.
Quantos milênios de experiência acumulada, contando histórias em volta da fogueira, foram necessários para produzirmos uma Ilíada, o obra fundadora da nossa literatura?
Quanto mais aprendemos sobre literatura nos três mil anos desde Homero? (Pensem na distância entre Eurípedes e William Burroughs, Safo e Hilda Hilst, Chaucer e Thomas Mann.)
O Cinema é a mais recente das grandes formas de arte. Tudo ainda está por fazer, tudo ainda está por descobrir.
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Perguntaram a Mao Zedong:
“O que você acha do Cinema como forma de arte?”
“Ainda é cedo para dizer”, respondeu o apócrifo chinês.
Talvez o Cinema ainda esteja muito nos seus primórdios — pouco mais de um século de existência — para já ter encontrado seu rumo mais consolidado, suas formas mais maduras.
O Cinema, como temos hoje, na prática, fundamentalmente, é Teatro: um Teatro filmado, um Teatro com alguns recursos técnicos adicionais, mas, na sua essência, na sua lógica interna, Teatro.
O meu filme-teatro preferido é o Romeu + Julieta (1996), de Baz Luhrmann, não por acaso um filme que aplica sobre uma peça de teatro consagrada todo o maravilhoso instrumental acessório desenvolvido por cem anos de Cinema: um filme quente, colorido, cinestésico, uma adaptação de texto brilhante, atores em suas melhores performances, uma trilha sonora inesquecível. Mas, ainda assim, fundamentalmente, Teatro com alguns adicionais.
Meu filme preferido de todos os tempos, e uma das grandes obras de Arte de qualquer meio produzidas no século XX, é Shoah (1985), de Claude Lanzmann, onde o Holocausto é memorializado de uma maneira completamente única, além do alcance de qualquer livro, além do alcance de qualquer peça. Shoah, para mim, é a grande obra do Cinema de todos os tempos, entre outras muitas qualidades, porque ele só poderia ser Cinema. Shoah é inadaptável, instransferível para qualquer outro suporte, para qualquer outra forma de Arte.
(Um texto meu, sobre escravidão e holocausto, e sobre o filme Shoah.)
Nessa mesma linha, o Documentário talvez seja a forma mais nativa, mais intrínseca de Cinema. Documentário é algo que só poderia existir no Cinema, a partir do Cinema. (Antes do século XX, não havia “peças-documentário” nos teatros.)
Poucos filmes me fazem sentir, como consumidor de Arte, que estou assistindo uma forma de Arte independente, uma forma de Arte que não é apenas uma dissidência tecnófila do Teatro. Todos são documentários.
Um homem com uma câmera (1929), do Vertov, é uma magnífica, linda, emocionante obra de Arte que só poderia existir enquanto Cinema, enquanto celebração do Cinema. (Recomendo muito assistir à versão musicada pela The Cinematic Orchestra em 2003.)
Ou pensem em filmes do Eduardo Coutinho, como Jogo de Cena (2007, o meu preferido), Edifício Master (2002) ou Cabra Marcado para Morrer (1984): de que maneira eles seriam possíveis fora do Cinema? Mesmo um filme absurdamente simples como Jogo de Cena, que usa o Teatro como cenário e como metáfora, seria impossível de adaptar como uma peça teatral: ele é um filme que só poderia ser um filme.
Se existe algum problema intrínsico ao Documentário como forma de Arte é a pretensão à Verdade que ele ocasionalmente vende. Uma das grandes qualidades de Jogo de Cena é justamente questionar essa veracidade. Será que uma história soa mesmo mais verdadeira quando contada por quem realmente a viveu? O que é a verossimilhança?
O Cinema de Coutinho também transcende o próprio Cinema: o DVD de Edifício Master traz a opção de ver os depoimentos do filme em ordem aleatória, o que adiciona à obra uma camada adicional de interesse que explode os limites da sala de cinema e que só pode acontecer plenamente em nossas próprias casas.
(Um texto meu, de 2002, sobre Edificio Master.)
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Meus filmes preferidos
Shoah
Uma das melhores obras de arte do século XX, em todas as artes e, com certeza, o melhor filme de todos os tempos.
Abaixo, os outros em ordem alfabética.
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De olhos bem fechados
(deliciosamente estranho.)
Duro de matar
(o filme de ação perfeito)
Edificio Master
(mas poderia ter sido Jogo de cena.)
Grand Hotel Budapest
(nostalgia inteligente.)
Fale com ela
(melhor Almodovar.)
Harry e Sally, feitos um para o outro
(um dos roteiros mais perfeitos de todos os tempos.)
Homem de palha
(um filme estranho que não fica menos estranho quanto mais vezes você assiste.)
Magnólia
(quanto mais assisto, melhor fica.)
Missão, A
(melhor filme espiritual.)
Quanto vale ou é por quilo
(deliciosamente esquerdista.)
Romeo + Juliet
(melhor uso de roteiro adaptado, cores, música, que já vi.)
Tropa de elite
(o filme carioca da minha geração.)
Vida dos outros
(o poder da arte.)
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Enfim, não entendo nada de Cinema, como deve ter ficado evidente. Com certeza, pessoas leitoras mais inteligentes que eu vão ter muitas ressalvas, críticas, sugestões, pedradas. Isso aqui não é um texto com começo, meio e fim: é um ensaio no sentido estrito do termo, ou seja, ideias jogadas, rascunhadas, ensaiadas, de fato, em busca de uma interlocução.
Quero muito saber a opinião de vocês.
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Grande conversa romance: um ano para ler seis romances perfeitos
O curso Grande conversa romance: um ano para ler seis romances perfeitos vai começar em agosto de 2025. Um mergulho profundo em alguns dos maiores e mais perfeitos romances da literatura mundial.
Dois meses para cada livro (três para Guerra e paz): um encontro livre para conversar sobre a leitura no primeiro domingo de cada mês e uma aula expositiva ao final dos dois meses, ambos no Zoom, e muito bate-papo literário todo dia no Whatsapp.
Ninguém precisa de ajuda para ler os livros fáceis e curtos. A ideia do curso é ajudar vocês a lerem aqueles livrões que, talvez, estavam adiando ler a vida inteira e, quem sabe, ajudá-los também a encontrar novos livrões legais.
Leremos só grandes livros, um romance em cada uma das principais línguas literárias ocidentais. Abaixo, a lista completa, em ordem cronológica. Os links já levam à edição recomendada.
1 Moby Dick, inglês, 1851 (agosto & setembro 2025)
2 Os miseráveis, francês, 1862 (outubro & novembro 2025)
3 Guerra e paz, russo, 1867 (dezembro 2025, janeiro & fevereiro 2026)
4 Grande sertão: veredas, português, 1956 (março & abril 2026)
5 Cem anos de solidão, espanhol, 1967 (maio & junho 2026)
6 Tetralogia napolitana, italiano, 2015 (julho & agosto 2026)
O precursor polonês Manuscrito encontrado em Saragoça (1815) só não abriu o curso por não ter tradução em catálogo no Brasil, mas eu recomendo enfaticamente, seja no original em francês, em inglês, em espanhol, ou em português de Portugal. Para quem quiser, teremos uma aula zero sobre esse livro em julho.
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Grande Conversa: Romance, Calendário
Dom, 6jul25, 16h: Conversa livre, Manuscrito encontrado em Saragoça, Abertura do curso
Qua, 23jul25, 19h: aula zero, História do Romance e Manuscrito encontrado em Saragoça
Dom, 10ago25, 16h: Conversa livre, Moby Dick
Dom, 14set25, 16h: Conversa livre, Moby Dick
Qua, 24set25, 19h: aula 1, Moby Dick
Dom, 5out25, 16h: Conversa livre, Os miseráveis
Dom, 9nov25, 16h: Conversa livre, Os miseráveis
Qua, 26nov25, 19h: aula 2, Os miseráveis
Dom, 7dez25, 16h: Conversa livre, Guerra e paz
Dom, 1fev26, 16h: Conversa livre, Guerra e paz
Qua, 25fev26, 19h: aula 3, Guerra e paz
Dom, 1mar26, 16h: Conversa livre, Grande sertão: veredas
Dom, 12abr26, 16h: Conversa livre, Grande sertão: veredas
Qua, 29abr26, 19h: aula 4, Grande sertão: veredas
Dom, 10mai26, 16h: Conversa livre, Cem anos de solidão
Dom, 14jun26, 16h: Conversa livre, Cem anos de solidão
Qua, 24jun26, 19h: aula 5, Cem anos de solidão
Dom, 5jul26, 16h: Conversa livre, Tetralogia napolitana
Dom, 2ago26, 16h: Conversa livre, Tetralogia napolitana
Qua, 26ago26, 19h: aula 6, Tetralogia napolitana
Iniciou muito bem o debate. Isso aqui acho que é verdade para 80% dos filmes. "O Cinema, como temos hoje, na prática, fundamentalmente, é Teatro: um Teatro filmado, um Teatro com alguns recursos técnicos adicionais, mas, na sua essência, na sua lógica interna, Teatro".
Li seu texto com sabor. Eu sou um cineasta que tem feito curta-metragens. Fiz um recentemente que tem sido aceito em diversos festivais internacionais. Aqui tem sinopse, trailer, cartaz e fotos.
https://filmfreeway.com/abolacurta
E é essa pergunta que tento responder. Pra mim, cinema é o modo de fazer arte mais complexo que existe. Para uma cena ficar boa precisa:
1 - literatura (o roteiro tem que estar bom)
2 - atuação
3 - fotografia
4 - som (essa dá para dispensar, dublar, corrigir depois).
Depois entram mais artes:
5 - a edição (o modo de contar a história. Se dois editores diferetes pegam o mesmo material, saem dois filmes diferentes, quase)
6 - inclusão das músicas, trilha, canções originais, etc.
Mas qualquer item que ficar em excesso, fode. Um filme que se baseia muito em diálogo para "segurar", ferra tudo, vira teatro, vira novela.
Tem que equilibrar bem. E pra mim, a principal arte do cinema é a fotografia. Eu penso assim: lembra daquela época que a gente imprimia as fotos do filme? Viravam albuns? De viagem, de aniversário, etc? Você pegava um album daquele e ia virando. Dava alguns segundos para cada fotografia. Algumas você parava mais, outras, parava menos, mas via até o fim.
Então eu penso que se o filme tiver uma boa troca de fotografias, igual um album, as pessoas assistem até o fim com prazer.
Mas aí se o cara faz um filme de 10 minutos, dentro de uma sala, com duas pessoas conversando, somente. Tá baseado em diálogo e atuação. Ferrou, perde o interesse. Virou teatro filmado mesmo.
Portanto, na minha interpretação, na hora que equilibra todas as artes, é cinema. É o original. É o único jeito onde aquela história poderia ser contada. Batemos de ideia aí. Sou autodidata. Não fiz facul disso. E como disse, é recente mesmo!
Nossa, amei. Sua a lista é maravilhosa. Tem Harry e Sally que é um filme inteligente e engraçado, mas pouco lembrado. Injustamente, claro.