Breve história dos meus privilégios
Uma ação de graças pelos privilégios recebidos (Reflexões sobre a Prisão Classe.)
Só podemos admitir nossos privilégios quando damos um passo atrás, desnaturalizamos nossas vidas, saímos do centro do universo que ocupamos em nossa imaginação egocêntrica e passamos a nos enxergar em relação às outras pessoas que estão girando conosco pelo espaço na superfície dessa bola de pedra e água.
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Eu (nascido em 1974) cursei o ensino fundamental no Colégio Santo Agostinho (um dos melhores da cidade), o médio na Escola Americana do Rio de Janeiro (na época, a mais cara do Brasil) e, depois, História no IFCS/UFRJ (turma de 1999) porque meu pai cresceu em Botafogo, fez o ensino médio no Colégio Andrews (tradicionalíssimo) e se formou bacharel em Economia (turma de 1970) pela mesma UFRJ.
Meu pai (1946-2018) estudou na UFRJ porque meu avô estudou Engenharia no Instituto Eletrotécnico de Itajubá, atual Universidade Federal de Itajubá (turma de 1938) e trabalhou durante muitos anos para a CHESF (Companhia Hidro-Elétrica do São Francisco), inclusive nas obras do Complexo Hidrelétrico de Paulo Afonso.
Meu avô (1909-1989) foi engenheiro civil porque meu bisavô (1876-1965) saiu do Mato Grosso (onde seu pai, veterano do Paraguai, estava servindo desde a guerra) pra estudar no Colégio Militar do Rio de Janeiro, onde teve a honra de ser comandante-aluno de 1897 , formou-se engenheiro militar, participou do episódio dos 18 do Forte de Copacabana e reformou-se tenente-coronel.
Em 1888, com 12 anos de idade, meu bisavô estudava na capital do Império, em um dos melhores colégios públicos do país, com bolsa integral, soldo e emprego garantido após a formatura.
Se, ao invés disso, nesse mesmo ano, ele tivesse sido libertado (leia-se posto pra fora de casa) com a roupa do corpo, analfabeto e despreparado, sem conhecer pai e mãe, desprovido de qualquer poupança ou bens, teriam seus filhos e netos e bisnetos estudado nas melhores escolas e universidades do país e feito parte da elite brasileira?
Sem esse capital socioeconômico e cultural acumulado pelo meu bisavô em 1888 (para não irmos mais longe), onde teria ido parar a cadeia de acontecimentos que desembocou na minha vida? Estaria eu, nesse momento, sadio e medindo 1,80m, proprietário de apartamento em Copacabana e publicando livros?
Dentre minhas realizações, quantas são exclusivamente por mérito meu e quantas são consequência direta da vida privilegiada que eu e meus antepassados levamos?
Que tipo de dívida eu, pessoalmente, tenho com as pessoas que não tiveram tanta sorte?
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Afinal, se eu e meus antepassados somos privilegiados, então é porque existem pessoas que não são.
E por que não são? É porque não estudaram tanto ou trabalharam tão duro quanto eu ou meu pai?
Por que o faxineiro do banco trabalha o dia inteiro, assim como meu pai, o gerente do banco, mas leva pra casa só uma fração do salário? Será que o filho do faxineiro, que estudou em escola pública e trabalha desde os doze anos, vai ter a mesma chance que eu de entrar em uma universidade federal?
Que privilégios meu pai teve que o faxineiro não teve? Que privilégios eu tive que o filho do faxineiro não teve?
Qual é a origem histórica dessa assimetria socioeconômica tão gigantesca?
Faz sentido falar em meritocracia em uma sociedade tão desigual?
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Ação de graças pelos privilégios recebidos
O Brasil e os Estados Unidos são duas sociedades muito parecidas em sua desigualdade, racismo, outrofobia.
Uma diferença, entretanto, é que as pessoas ricas norte-americanas praticam muito mais filantropia do que as brasileiras.
Outra diferença é que o feriado mais importante dos Estados Unidos, quase desconhecido no Brasil, é o dia de ação de graças, quando (teoricamente) as pessoas refletem sobre as muitas graças recebidas.
Talvez exista uma relação.
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Sou grato por ter nascido homem. (Em uma sociedade machista, onde mulheres ganham uma fração do salário dos homens pelo mesmo trabalho, são vítimas de violência de gênero, possuem menos direitos perante a lei e representam apenas uma pequena parcela da elite corporativa.)
Sou grato por ter nascido cis. (Em uma sociedade transfóbica, onde as pessoas trans são invisibilizadas e silenciadas, encontram enormes obstáculos para realizar tratamentos e procedimentos médicos de acordo com suas necessidades, e sofrem violência e intimidação até para seus nomes de escolha na carteira de identidade.)
Sou grato por ter nascido branco. (Em uma sociedade racista, onde as pessoas negras são consistentemente assassinadas em números alarmantes, formam maioria da população carcerária mas a minoria da população universitária, encontram dificuldades para conseguir empregos e alugar apartamentos, e têm até mesmo seu cabelo chamado de "ruim".)
Sou grato por ter nascido heterossexual. (Em uma sociedade homofóbica, onde as pessoas homossexuais têm menos direitos perante a lei, como casar ou servir nas forças armadas, são consistentemente assassinadas em números também alarmantes, sofrem todo tipo de preconceito, rejeição e bullying desde a infância, inclusive e principalmente das próprias famílias que deveriam amá-los, muitas partindo para o suicídio como última alternativa.)
Sou grato por ter nascido com o corpo sem deficiências. (Em uma sociedade capacitista, onde as pessoas com deficiências são consistentemente ignoradas e invisibilizadas e mesmo as poucas leis que tentam lhes facilitar a vida acabam ignoradas, e são impossibilitadas fazer coisas que deveriam ser simples, como entrar em prédios públicos e subir em ônibus, usar um computador ou votar.)
Sou grato por ter nascido em um país democrático, próspero e estável. (Em um mundo convulsionado, repleto de guerras civis e genocídios, onde a maioria dos habitantes vive em imensa pobreza, sem acesso a inovações tecnológicas, serviços públicos, universidades e hospitais, eleições regulares e nem mesmo às proteções mais básicas do Estado de direito.)
Sou grato por ter nascido na classe alta urbana. (Em um país desigual, onde as pessoas dessa classe alta — especialmente quando são homens brancos cis e héteros — têm acesso desproporcional a todas as benesses e regalias que esse Estado pode oferecer, e as outras cidadãs muitas vezes vivem vidas instáveis que lembram bastante a das cidadãs dos países convulsionados e pobres.)
Sou grato por meu pai e minha mãe descenderem de uma longa linha de pessoas privilegiadas como eu, bem-alimentadas e sem doenças congênitas ou genéticas. (Em um país onde a fome e a desnutrição são disseminadas e já foram mais, onde doenças infantis medievais e perfeitamente evitáveis ainda causam mortes e mutilações, onde a desnutrição na infância limita o desenvolvimento físico e intelectual para toda a vida.)
Sou grato por ter nascido de um pai e de uma mãe que quiseram e planejaram juntos me ter. (Em um país onde muitas pessoas não têm acesso nem à educação sexual nem a controle de natalidade, onde a maior instituição religiosa luta para mantê-las na ignorância, onde a opção do aborto é proibida às mulheres que não têm dinheiro para pagar uma clínica clandestina.)
Sou grato por meu pai ter ficado. (Em uma sociedade onde um número tristemente grande de homens não participa em nada da criação dos filhos e filhas que geraram.)
Sou grato por ter crescido em um seguro e tranquilo bairro classe alta. (Em uma sociedade onde muitos bairros são fatais para quem mora neles, seja por terem sido abandonados pelo Estado e tomados por bandidos que se comportam como senhores feudais, seja por serem invadidos pelo Estado com a mesma truculência com a qual invadiriam um país inimigo, tratando todas as pessoas-cidadãs como bandidas e matando a torto e a direito.)
Sou grato por ter estudado nas melhores escolas particulares da minha cidade. (Em uma sociedade onde as escolas públicas, abandonadas pela elite cujas crianças não estudam mais nelas, formam um número assustador de analfabetas funcionais.)
Sou grato por não ter tido que trabalhar durante a minha infância e adolescência. (Em uma sociedade onde muitas crianças, além de estudar em escolas que não lhes formam, ainda precisam ajudar suas famílias com o seu próprio trabalho desde muito cedo, algumas vezes até mesmo voltando-se ao crime.)
Sou grato por ter crescido em um tranquilo ambiente familiar sem violência doméstica. (Em uma sociedade onde a violência doméstica, contra crianças e particularmente contra a mulher, é uma doença endêmica, gerando traumas psicológicos e físicos e até a morte, e naturalizando a violência doméstica para as futuras gerações.)
Sou grato por ter estudado em algumas das melhores universidades públicas do país e do mundo. (Em uma sociedade desigual e injusta, onde praticamente só as crianças da elite conseguem entrar nas melhores universidades gratuitas, pois tiveram dinheiro para frequentar escolas particulares, não precisar trabalhar e dispor do ócio de apenas estudar.)
Sou grato por ter tido a oportunidade de estudar fora do meu país. (Onde pela primeira vez pude contemplar minha sociedade com distância crítica e percebi que nossa outrofobia, nosso racismo, nossa desigualdade, nossa injustiça, nossa homofobia, nosso machismo, não eram a única maneira de organizar uma sociedade, que havia outros jeitos, outros caminhos.)
Mais do que tudo, sou profundamente grato por ter tido acesso a mestras e professoras, amigas e militantes, escritoras e estudiosas que me abriram os olhos quanto aos imensos privilégios que sempre desfrutei e ainda desfruto; que estimularam minha generosidade e minha empatia, minha militância e minha consciência; que me mostraram esses outros jeitos e outros caminhos.
Senão, eu poderia estar como a maioria das pessoas com quem cresci: sentadas no topo de uma formidável montanha de privilégios, sem nunca perceber sua condição de privilegiadas, reclamando de quem tenta chamar a atenção para seus privilégios, e obsessivamente tentando acumular mais e mais privilégios.
A maior graça pela qual sou grato é a de tentar conscientemente não ser mais assim.
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A ilusão da meritocracia
Nenhuma dessas graças que recebi foi mérito meu. Não posso me orgulhar de nenhuma delas.
A meritocracia é uma mentira. Não existe, nunca existiu, não poderia existir.
Se eu não tivesse recebido qualquer uma dessas graças, minha vida teria sido outra. Quem sabe, nem começasse. Quem sabe, acabasse muito mais cedo. Teria eu conseguido publicar romances ou fazer pós-graduação? Não ser estuprado, encarcerado, linchado? Quem sabe?
Essas graças, cada uma delas, sem exceção, são privilégios.
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Muitas vezes, quando digo que o Brasil não é um país meritocrático, alguém menciona alguma mítica pessoa-negra-favelada-trabalhadora cujo sucesso pessoal significaria obviamente que o racismo está resolvido e que as cotas raciais não são necessárias.
Sim, uma pessoa favelada brilhante, competente e talentosa, se vencer todas as armadilhas da vida, pode teoricamente conseguir cursar uma universidade federal, abrir uma empresa, ficar rica – mas só se não errar nunca, se nunca cair em tentação, se nunca for morta de bala perdida ou torturada pela polícia, e tiver muita, muita sorte. É possível.
Já o manto de privilégios que cobre as pessoas privilegiadas é tão espesso que não existem erros tão grandes, nem preguiça nem inépcia tão profundas, que lhes faça percorrer o caminho inverso. Sempre se dará um jeito. Podem ser assistentes administrativas do escritório do padrinho, balconistas da padaria da tia, sócia das amigas de infância que montaram empresa: “fica tranquilo, compadre, ele não é nenhum gênio, mas família é família, não?
Outro enorme privilégio que nós, pessoas privilegiadas, raramente enxergamos, é o fato de quase todas as nossas pessoas amigas e familiares também serem privilegiadas, o que nos abre portas e nos concede oportunidades totalmente fora do alcance das pessoas marginalizadas.
Pois um dos grandes empecilhos para o progresso pessoal e profissional de uma pessoa que nasceu em uma favela é o simples fato de que quase todas as pessoas do seu círculo familiar e de amizades provavelmente também nasceram em favelas e estão subempregadas.
(Um estudo do IPEA revelou que, para as pessoas pobres, por mais escolarizadas que sejam, existe um teto socioeconômico do qual não conseguem passar, justamente por estarem fora das redes de contato e apadrinhamento das classes privilegiadas.)
Em um país injusto e desigual como o nosso, não é preciso ter lancha de quarenta pés ou ilha particular pra ser uma pessoa privilegiada. Se você está aqui, lendo esse texto, e não lavando chão em troca de um salário mínimo, provavelmente é uma pessoa privilegiada também.
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O curso das Prisões
O meu curso para 2023 está sendo o Curso das Prisões.
Em abril, nosso tema é a Prisão Classe.
Nossa aula expositiva acontece na quarta, 26 de abril. Antes disso, estamos debatendo sobre Classe nas nossas conversas livres, no Zoom e no Whatsapp.
Sim, ainda dá tempo de participar.Mais detalhes aqui.
Vem com a gente?
Adorei seu texto, me colocou contra a parede dos privilégios por menores que sejam.
Gostaria muito que algumas pessoas tivesse a coragem de ler e assinar em baixo.
Só de ver o quanto de privilégios eu tive, tenho e nunca tinha visto por esse lado, agora esse texto me coloca em outro patamar de entendimento, eu sabia que era detentor de alguns deles, mas nunca por outro prisma que não o do esforço. Amei
Você disse tudo tão bem e de um modo que eu jamais teria capacidade para tal. Gostaria da sua autorização para divulgar o seu texto, posso?