Viver de aparências
Possível definição da Prisão Autossuficiência: a ilusão de que é possível ou desejável não viver de aparências (Reflexões sobre a Prisão Autossuficiência.)
Sempre que falo da Prisão Autossuficiência, algumas leitoras começam a criticar pessoas pretensamente fúteis, que vivem de aparências, que só se preocupam com status sociais e símbolos de prestígio, e assim por diante:
— Por exemplo, Alex, tenho um amigo que você não acredita. Mora com os pais, nunca viaja, não faz nada, mas tem um carro de meio milhão que usa pra se exibir. Não é ridículo?
Sinceramente... não.
(O tema do Curso das Prisões para o mês de agosto foi a Prisão Autossuficiência. Nossa aula aconteceu na quarta, 30 de agosto, sempre às 19h, e, como todas as aulas, está gravada. Ao entrar no curso, você tem acesso total às aulas anteriores. Esse textinho aqui é um adendo. Compre o curso completo.)
Quem somos nós para julgar o que outra pessoa faz com seu próprio dinheiro, ou seja, com sua própria vida? Quase sempre, chamamos de fútil qualquer pessoa que tenha prioridades que não são as nossas. Além disso, falar de “aparências” como se fosse pouca coisa, como se fosse algo desimportante, como se não fosse uma questão de vida ou morte, é completamente não entender como funciona essa nossa espécie tão gregária.
Pra começar, talvez para essa pessoa ter esse carro seja sua própria recompensa. Vai ver ela trabalhou a vida toda, economizou, não viajou, não saiu da casa dos pais, etc, justamente para poder comprar esse carro. Quem tem autoridade moral pra dizer que gastar meio milhão num carro é melhor ou pior que comprar um apartamento ou um veleiro, que investir e viver de renda ou torrar tudo e viajar o mundo?
Por outro lado, pode ser que, para ela, ter esse carro seja uma etapa necessária para conseguir outros objetivos. Nos círculos internacionais dos altos negócios, existem muitas conversas, muitos clubes, muitas reuniões onde você só entra se tiver (ou se acharem que você tem) um carro de meio milhão.
Meu pai, em diferentes momentos da vida, já teve carros caríssimos por esses dois motivos. Já o vi mandar fazer ternos de vinte mil e alugar carros de meio milhão só para fazer uma boa primeira impressão em uma única reunião de onde planejava sair com cinco milhões. E, vou te contar, saía.
Uma vez, eu quis montar uma barraquinha na rua e vender limonada na rua, como tinha visto nos filmes estadunidenses, e meu pai sentou comigo e explicou:
— Alex, entenda o seguinte. Papai ganha a vida investindo o dinheiro de pessoas muito ricas. E elas só me dão esse dinheiro porque acham que eu também sou muito rico. Se alguém vê o meu filho varão na rua vendendo suco e pensa, por um segundo, que talvez eu esteja falido, e conta isso pra outra e pra outra pessoa, no dia seguinte todo mundo sacou o dinheiro que têm comigo e aí a gente faliu mesmo, e vai vir o moço da Receita Federal levar todos os seus livros.*
Naturalmente, eu, menino inconformista e rebelde, fiquei possesso e demorei décadas para dar razão ao meu pai. Eu nunca viveria a vida que ele escolheu viver e fugi para longe desse mundo assim que tive autonomia para tanto, mas errado ele não estava. E até mesmo eu, que sou pobre de marré-de-si mas cresci nesse mundo e sou fluente em códigos, continuo sabendo me fingir de rico para entrar em lugares onde já não tenho mais renda para estar, o que me rende negócios, contatos, oportunidades que eu infelizmente não existem cá fora.
Como falei na Prisão Trabalho, dinheiro é sim um tipo de liberdade, mas, por óbvio, só se servir para fazermos o que quisermos com ele. Se for pra outra pessoa escolher como devo gastar meu meio milhão (assim e assado pode, assado e assim não pode) aí não faz sentido.
O principal exercício das Prisões é deixarmos nós mesmas de ser a polícia secreta do mundo, incansavelmente vigiando umas às outras e determinando como as pessoas devem se comportar. As pessoas que se interessam pelas Prisões tendem a ser o tipo de gente que acha que o ideal de vida é não se preocupar com as opiniões das outras, que viver de aparência é uma vida menor ou inferior.
Infelizmente, não está aberta a nenhuma de nós, quer queiramos quer não, a opção de não viver de aparências. Somos uma espécie resolutamente gregária: a opinião dos outros macaquinhos sobre nós é literalmente uma questão de vida e morte, tanto na Pré-História quanto hoje. Não faltam exemplos de pessoas que morreram porque pareciam perigosas ou disponíveis aos olhos de Fulano ou Beltrano — essa é a triste motivação de muitas mortes por racismo ou feminicídio.
A aparência é mais importante que a essência porque simplesmente não existe essência. A aparência é tudo que temos. Nosso sucesso, nossa felicidade, nossa liberdade, até mesmo nossa vida, depende muito mais de como somos percebidas pelos macaquinhos a nossa volta — ou seja, da nossa aparência — do que de nossa pretensa “essência”. Nossa essência, se é que existe, se manifesta através das máscaras que escolhemos vestir a cada diferente interação social.
Uma possível definição da Prisão Autossuficiência: a ilusão de que é possível ou desejável não viver de aparências, ou seja, viver sem se importar com as opiniões dos outros macaquinhos sobre nós. Está presa na Prisão Autossuficiência quem está tão preocupada em ficar livre desse olhar do Outro que não enxerga que estamos todas necessariamente conectadas e que esse olhar do Outro é não só necessário como desejável. Não é à toa que um dos piores castigos que temos, em qualquer sociedade humana, é excluir a pessoa do olhar de qualquer outra, seja expulsando-a da tribo ou sentenciando-a à uma cela solitária. Nada pode ser pior.
[*Sim, juro de pés juntos que esse era o bicho papão da minha infância: o moço da Receita Federal que iria levar todos os bens da família, inclusive meus livros.]
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Série “As Prisões”
Aqui estão os textos já reescritos, revisados e finalizados em 2023:
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O curso das Prisões
Em 2023, estou dando o Curso das Prisões.
Em setembro, estamos conversando sobre a Prisão Liberdade. Nossa aula acontece na quinta, 26 de outubro, sempre às 19h. Enquanto isso, estamos conversando sobre esses temas em nosso grupo de Whatsapp. E, sim!, ainda dá tempo de participar. Mais detalhes aqui.
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Sempre escrevendo de modo claro-conciso = =excelente, abraços..