Um dia, você terá morrido ontem
E a vida vai continuar igual, pessoas cozinhando, gozando, nascendo.
Um dia, você terá morrido ontem. Seu corpo ainda vai estar (provavelmente) inteiro e sólido. As pessoas que te amam ainda vão estar chorando. E, por toda volta, a vida vai continuar igual, em tecnicolor e dolby surround, pessoas compondo músicas, pessoas gozando, pessoas nascendo.
Um dia, você terá morrido dez anos atrás. As pessoas que te amaram (se lembrarem da data) vão pensar em você e dizer: “Gente, quem diria, faz dez anos! Como pode ela nem ter visto Fulana ser eleita, nunca nem ter ouvido falar disso ou daquilo! O tempo passa!” E aí vão voltar a cuidar da vida e vão parar de pensar em você.
Um dia, você terá morrido cinquenta anos atrás e a maioria das suas contemporâneas terá morrido. Você viverá apenas na memória de pessoas que te conheceram quando eram crianças, com quem você teve aquela relação distante velha-jovem, que têm uma memória esfumada de você.
Um dia, você terá morrido cem anos atrás e a última pessoa que te conheceu pessoalmente vai morrer e a memória viva da sua existência vai sumir da Terra. Não restará ninguém vivo que conheceu o seu cheiro.
Um dia, você terá morrido duzentos anos atrás e a última pessoa que soube da sua existência, que ouviu alguma história sua, que sabe o seu nome, vai morrer e a memória da sua existência vai desaparecer completamente da Terra.
Um dia, você terá morrido quinze mil anos atrás e a última prova concreta da sua existência vai sumir (sua certidão de nascimento, uma matéria de jornal que te menciona, etc) e nenhuma historiadora ou arqueóloga conseguiria nem mesmo comprovar empiricamente que você um dia existiu.
Um dia, você terá morrido cem mil anos atrás e a língua que você fala vai desaparecer e as pessoas que vivem, transam, trabalham no espaço físico onde você um dia viveu não conseguiriam nem mesmo se comunicar com você, entender suas palavras, ler sua certidão de nascimento — se ela ainda existisse.
Um dia, você terá morrido meio milhão de anos atrás e o próprio espaço humano onde você um dia existiu, sua cidade querida, as esquinas que você amou, vão desaparecer, destruídas em um acidente natural, submergidas pelas águas, bombardeadas em uma guerra.
Um dia, você terá morrido meio bilhão de anos atrás e, pelo próprio movimento geológico do planeta, os continentes vão se unir, novas montanhas vão surgir, rios mudarão de curso, e o próprio espaço físico onde você um dia existiu se transformará em um lugar completamente alienígena e irreconhecível para você.
Um dia, você terá morrido cinco bilhões de anos atrás e o sol vai se expandir, engolir a Terra e tudo, tudo o que você conheceu vai desaparecer em uma bola flamejante de gás e plasma.
Um dia, você terá morrido uma eternidade literalmente incontável de anos atrás, porque não haverá mais ninguém para contar o tempo, que continuará passando e passando, enquanto as estrelas se apagam uma por uma, até voltarmos à escuridão primordial antes do Big Bang.
Bom dia.
* * *
Alguns links
“A última pergunta”, um conto de Isaac Asimov, em quadrinhos. (em português)
“Ozymandias”, poema de Percy Bysshe Shelley, no Zen Pencils. (em inglês)
A 16ª prática do meu livro Atenção. é “Reconhecer a morte”.
* * *
Eu preciso de você
Não que faça nenhuma grande diferença, no esquema cósmico do universo, mas se meus textos tiveram impacto em você, se minhas palavras te ajudaram em momentos difíceis, se usa meus argumentos para repensar atitudes, se minhas ideias adicionaram valor à sua vida, por favor, considere fazer uma contribuição do tamanho desse valor.
Assim, você estará me dando a possibilidade de criar novos textos, produzir novos argumentos, inventar novas ideias. :)
O pós-pandemia está sendo particularmente difícil para minhas finanças. Como não tenho renda, nem emprego, nem pai rico, economizo tudo o que ganho e vou tirando da poupança aos poucos. Agora, em 2022, pela primeira em 10 anos, estou zerado, sem dívidas mas sem economias, vivendo mês a mês, dando aqui o meu jeito.
Ninguém tem nada a ver com isso, claro: você não me deve nada. Todos os meus textos são oferecidos de graça. Ninguém precisa pagar para usufruir dos frutos do meu trabalho.
Mas se você quiser e puder, agora seria a hora perfeita.
Essa aqui é a minha página de mecenato.
O que mais ajuda é fazer uma assinatura regular, de qualquer valor, pelo PagSeguro, me garantindo assim uma quantia mínima mensal com a qual posso contar.
(Se 5% dos assinantes dessa newsletter fizessem uma assinatura mensal de R$10, por exemplo, já pagaria meu aluguel.)
Na prática, por óbvio, eu sempre posso arrumar um emprego e parar de mendigar de dinheiro na internet.
Mas, se eu tivesse feito isso antes, talvez nunca tivesse escrito aquele texto (sabe aquele texto?) que tanto impactou sua vida.
Você me diz: valeu a pena?
Um beijo do Alex
Estou apaixonado neste texto. Parabéns! 🤍
Phodastico!!👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼