Não existe somente um ciúme. Quando uma pessoa diz que sente ciúme e a outra responde “eu também”... podem estar falando de emoções vastamente diferentes.
Então, em relacionamentos não-monogâmicos, quando o ciúme se torna um problema, a primeira conversa a se ter é:
“De qual ciúme estamos falando?”
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1. Medo de rejeição
Meu ciúme, por exemplo, pode ser medo de rejeição (1), como se o mero fato da pessoa-com-quem-estou querer sair com outra já significasse uma perda pra mim. Mas será mesmo que essa possível conexão entre duas outras pessoas tem a ver comigo? Uma das premissas da não-monogamia é justamente que minha parceira ter interesse ou sair ou transar com outras pessoas não significa que perdi nada, ou que fui rejeitado. Muitas vezes, esse medo de rejeição é somente um resquício (que pode ser forte) de sentimentos que a monogamia nos condicionou a sentir.
2. Medo de abandono
Indo mais além, nessa mesma linha, pode ser um medo de abandono (2): se minha parceira está saindo com outra pessoa, é porque estou a ponto de perdê-la, logo ela já não vai mais querer nada comigo, nosso relacionamento terminará, e ficarei sozinho, solteiro, abandonado. É possível? Sim, sempre é. A outra pessoa, afinal de contas, é livre. Mas uma das belezas da não-monogamia é justamente que nossa parceira pode se interessar por outra pessoa sem que isso signifique, necessariamente, que o relacionamento está em crise ou perigando terminar. Por isso, como tantos tipos de ciúme, o medo de abandono também pode ser um resquício de condicionamentos monogâmicos dos quais ainda não conseguimos nos livrar.
3. Medo de inadequação
No extremo dessa tendência, o ciúme pode nascer de uma baixa auto-estima e se transformar em um medo de inadequação (3). É uma certeza insana e insistente de que minha parceira só está comigo porque ainda não sabe o quão todo errado eu sou, mas, se sair com mais e mais pessoas, será matematicamente impossível que não descubra em breve. Afinal, naquele canto da minha mente onde sempre são quatro da manhã, todo mundo é muito melhor que eu em quase tudo. Esse ciúme é uma mistura dos dois primeiros, pois une o medo da rejeição ao medo do abandono, como se minha parceira gostasse também de outra pessoa não porque elas duas têm uma conexão humana própria, mas sim porque eu sou feio, chato, bobo! Quando me pego olhando para esse abismo, e antes que ele me olhe de volta, procuro me lembrar que minha parceira é uma pessoa incrível. (Todas as minhas parceiras foram pessoas incríveis.) Se ela viu qualidades em mim que justificassem se relacionar publicamente comigo, tão errado assim eu não devo ser. Posso não confiar no meu discernimento, mas confio no dela. E dou um passinho atrás, para longe da borda.
4. Medo de ficar de fora
O ciúme também pode ser uma variação de FOMO (do inglês fear of missing out), ou seja, medo de ficar de fora (4), uma irritação comparativa ao pensar que minha parceira está se divertindo mais do que eu. Muitas pessoas, começando na não-monogamia, às vezes já superaram os condicionamentos monogâmicos acima, mas ainda caem presa de condicionamentos capitalistas como esse, um certo pensamento competitivo de contabilizar quem saiu com mais gente, quem foi a mais festas, etc. Um bom relacionamento, porém, é uma cooperativa igualitária, não uma bolsa de valores onde alguns títulos sobem e outros descem. Sim, se minha parceira saiu com uma pessoa, posso passar a noite mandando quantos “oi, sumida” forem necessários até arrumar uma companhia noturna, mas também posso aproveitar para ler um livro ou cozinhar, sair com amigas ou dormir. A vida não é uma competição – muito menos com a pessoa que eu amo e escolhi me relacionar.
5. Inveja
Nessa mesma linha, o ciúme pode ser uma simples inveja (5): não tenho necessariamente nada contra o que minha parceira está fazendo com outra pessoa, exceto pelo fato de que gostaria de estar fazendo isso com ela também, seja ir à praia ou maratonar uma série, cozinhar juntos ou fazer o frango assado. De todos os ciúmes, esse é o mais fácil de resolver, às vezes com uma simples conversa. Aqui, a competitividade e a comparação podem até ser saudáveis: “não me incomodo de você ir à praia com ela, se combinarmos que vamos nós sempre à praia na sequência”, etc.
6. Medo de vergonha pública
Por fim, o ciúme pode ser um medo de vergonha pública (6). De todos os medos, certamente esse é o mais real: somos macaquinhas gregárias, vivemos em comunidade e dependemos de nossa reputação entre nossos pares: gostemos ou não, o comportamento das pessoas-que-estão-conosco sempre reflete, em alguma medida, em nós. Além disso, mulheres sempre pagam um preço maior por qualquer transgressão social. Nem todas as pessoas têm o privilégio de serem artistas para quem a não-monogamia pode se converter em bandeira pública. Aqui cabem conversas práticas sobre não só quem pode ser vista em público fazendo o quê com quem, mas também quais podem ser as consequências reais e concretas que podem resultar disso.
Qual ciúme é o meu ciúme?
De qualquer modo, o ciúme é sempre uma manifestação de alguma questão nossa (medo ou insegurança, inveja ou vergonha?) que estamos projetando na outra pessoa. Por isso, de novo e sempre, uma maneira potencial de resolver quaisquer problemas de ciúme, seja o nosso ou da outra pessoa, é a pergunta salvadora: “Exatamente o que está me/te incomodando?” A resposta necessariamente ajuda a definir de qual ciúme estamos falando e, daí em diante, possíveis soluções podem ser conversadas e propostas, rejeitadas ou acordadas.
Sentir ciúme não é errado, porque nenhuma emoção é errada. Só o que pode ser errado é usarmos nossas emoções para atormentarmos umas às outras. Já abrir nossas emoções para as pessoas que escolheram viver a vida conosco é chamá-las para resolvermos juntas as emoções que estão nos atormentando.
Texto inspirado em Ética do amor livre, o melhor livro sobre não-monogamia que já li.
Como lidar com o ciúme
De vez em quando, algumas pessoas me dizem:
— Adoraria viver relacionamentos não-monogâmicos, só que tenho muito, muito ciúme. Como lidar?
Mas não existe nada de errado com o ciúme. É uma emoção como outra qualquer. A questão é o que fazemos com ele. Vamos lidar com o nosso ciúme nós mesmas, como pessoas adultas e dotadas de autocontrole, ou vamos usá-lo para atormentar, controlar, violentar as pessoas com quem estamos nos relacionando?
— O que você faz quando sente muita, muita vontade de dar um tapa num colega de trabalho que foi cretino com você?
— Nada, né?
— Pois bem. A resposta é essa. Não tem atalho. Não tem simpatia onde você possa dar três pulinhos e a raiva ou o ciúme vão sumir. Se você acha que é errado dar tapas em colegas de trabalho ou submeter a pessoa-que-está-com-você aos seus ataques de ciúmes, a única solução é simplesmente não fazer.
E cabe nos perguntarmos: de onde veio esse ciúme obsessivo que nos habita? Será que já nascemos pessoas naturalmente ciumentas? Ou será que esse ciúme é construído por toda uma cultura que nos ensina desde crianças a sermos possessivas, acumuladoras, egoístas?
O que construíram dentro de nós também pode ser desconstruído por nós.
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Série “As Prisões”
Aqui estão os textos já reescritos, revisados e finalizados em 2023:
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O curso das Prisões
Em 2023, estou dando o Curso das Prisões.
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