Cutucando a ferida da existência: Solenóide, de Cărtărescu, um romance cósmico
Minha aula avulsa de março de 2025, sobre "Solenóide", de Mircea Cărtărescu, é HOJE: domingo, 16 de março, 16h, só para mecenas. Venha!
Mircea Cărtărescu, nascido em 1956, é a eterna aposta da Romênia para o Nobel de Literatura. O autor tornou-se conhecido em 1977, ao ler seu poema “A queda”, ainda inédito no Brasil, em um sarau literário. Nas décadas de 1970 e 1980, estabeleceu sua reputação como poeta e, desde a queda do Muro e do fim da censura, como prosador em contos, romances, crônicas. No Brasil, a Mundaréu lançou Nostalgia, em 2018, e, agora, em 2024, o enciclopédico romance Solenoide.
(Essa é uma resenha escrita para o caderno Ilustrada da Folha de São Paulo. Essa aqui é a versão maior. Na Folha, saiu uma versão resumida. Por favor, cliquem no link, vão, lá, prestigiem. Se forem assinantes, comentem. Faz a maior diferença. E eu agradeço. Quero muito saber o que pensaram, sintam-se à vontade para comentar. :) Todas minhas resenhas para a Folha. // Clicando nos links de livros e comprando qualquer coisa na Amazon – não necessariamente o item que você clicou – eu ganho uma comissão e te agradeço demais por apoiar o meu trabalho. // Todo mês, eu dou uma aula avulsa de literatura para minhas mecenas. Solenoide, de Mircea Cărtărescu, foi a nossa leitura da aula de março, abaixo, no YouTube.)
Nesse livro, Cărtărescu cria um espelho distorcido de si mesmo, ao imaginar uma realidade alternativa onde seu poema “A queda”, responsável pelo início de sua fama, foi terrivelmente mal recebido. (O poema realmente existe e pode ser encontrado em sua antologia Poesia essencial, lançada na Romênia em 2015 e na Espanha em 2021. Fica a sugestão para a editora Mundaréu.)
É na distorção deste momento crucial da vida do próprio Cărtărescu que nasce o narrador sem-nome de Solenoide. Ao invés de ovacionado, ele é rechaçado por seus pares e desiste para sempre da carreira literária, tornando-se professor do ensino médio. A partir daí, esse alter-ego fracassado se compara constantemente ao que sabemos ser a realidade de Cărtărescu e a despreza:
“Se meu poema... tivesse sido bem recebido... hoje talvez eu tivesse dez livros com meu nome na capa... [mas] teria esquecido que um livro, para significar algo, deve indicar uma direção.”
Para ele, a literatura é “um museu de portas ilusórias” e se consola: pelo menos, “não estou enganando ninguém ao pintar portas que jamais se abrirão.” Nunca houve na literatura um livro tão antiliterário e que, justamente por isso, ilustra tão bem as potencialidades ainda inexploradas do romance enquanto gênero literário:
“Cabe a um livro exigir uma resposta. ... Li milhares de livros, mas não encontrei um que fosse paisagem e não um mapa. Cada página é achatada, diferente da vida em si. ... Nenhum livro tem sentido se não for um Evangelho. O condenado à morte poderia ter as paredes cobertas de prateleiras repletas de livros... mas ele precisa é de um plano de fuga.”
Em Solenoide, esse protesto contra a morte é tudo menos abstrato ou metafórico. Um crítico chamou Solenoide de “romance policial surrealista”, e talvez até seja. Mas tanto as vítimas quanto os detetives, e até mesmo os curiosos populares, somos nós mesmos. O mistério é: por que nascemos condenados a morrer? Em protesto, um grupo militante faz piquetes em locais associados à morte, como cemitérios e morgues, lançando palavras de ordem como “Abaixo a morte”, “NÃO à extinção definitiva” ou um singelo “Socorro”. O piquete termina apenas quando uma estátua gigantesca, simbolizando a Danação, ganha vida e esmaga o líder do grupo com seus pezões descalços. A cena se desenvolve sem nenhuma ironia, com toda seriedade e horror: a giganta levava “grudados na sola do pé as tripas e o cérebro esmagado. Toda a sala cheirava a medo e fezes.”
Todo grande romance é cósmico – eles partem da especificidade das situações cotidianas e, a partir delas, abraçam a totalidade da existência –mas cada um parte de um cotidiano diferente. A primeira coisa que surpreende em Solenoide é sua fisicalidade. Ele começa com a frase “Peguei piolho de novo” e, em poucas linhas, já acompanhamos esse Augusto-dos-Anjos-romeno futucar seu próprio corpo de todas as maneiras possíveis, descrevendo seus tecidos, mucosas, e fluidos em uma linguagem precusa e científica possível, desde tirar com a tesoura um inchaço duro da lateral do dedão do pé (“por algum tempo ... manco de leve”) até puxar fios de barbante do próprio umbigo, que os “abortava com vagar”.
Ao lado dos horrores de nossa corporalidade tão individual e úmida, o romance também se serve de um vocabulário lovecraftiano para descrever os horrores cósmicos da morte e da dissolução. Com uma importante diferença: em Lovecraft, os horrores são distantes e incompreensíveis – afinal, o que há de tão terrível em Ctulhu dormindo na cidade perdida de R'lyeh? – mas, em Solenoide, são concretos e próximos: a podridão dentro de nós mesmas, nossa dor, nossa morte.
Os episódios se sucedem, cada vez mais diversos, bizarros e evocadores. Em sua infância, o narrador é enviado para passar dois anos em uma clínica de saúde para jovens enfermos: aqui estamos em mistura de O senhor das moscas, de Golding com A montanha mágica, de Mann. Mais tarde, em uma versão invertida de A metamorfose, de Kafka, o humano se transforma em ácaro e prontamente, em uma paródia dos Evangelhos, se encarrega de trazer a Boa Nova aos seus pares artrópodes: que eles não podem vê-La, mas estão no corpo de uma gigantesca Pessoa que as ama e lhes oferece seu corpo em sacrifício e alimento.
Em uma entrevista recente, Cărtărescu descreve Solenoide como “metafísico” e “ético”, “um livro vertical, dirigido aos céus”, que ousa articular respostas para algumas das mais antigas e importantes questões da humanidade: De onde vem o Mal? Por que nascemos condenados à morte? E, no fim, em uma época onde o cinismo se transformou na nova ortodoxia, Cărtărescu tem a ousadia maior de terminar o romance em uma nota positiva e esperançosa que remete à figura do Bodisatva budista: que a redenção deve ser para todos; que não temos a permissão de nos salvar até que todas as pessoas estejam salvas.
A dificuldade de resenhar Solenoide é que simplesmente listar episódios isolados do seu enredo – muitas vezes grotescos como um barbante de umbigo – não consegue transmitir o sentido de maravilha desse livro cuja própria leitura parece uma experiência religiosa. Os episódios precisam de seu contexto dentro das 800 páginas desse romance para serem significativos. No fim das contas, o leitor só pode contar com a palavra do resenhista de que, sim, a viagem vale a pena. Seria desonesto prometer que, no fim, tudo faz sentido, mas não seria exagero afirmar que é uma leitura revolucionária, impactante, transformadora.
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