Éramos pobres na pré-história?
Ou éramos ricas porque queríamos pouco? (Uma leitura de "A sociedade afluente original", de Marshall Sahlins, para o curso História do Mundo Enquanto Fofoca.)
Era o ser humano pré-histórico pobre? Ou somos nós que, hoje, enxergamos tudo pelas lentes da sociedade de consumo?
Terça que vem, 18 de janeiro, começa o meu curso História do Mundo Enquanto Fofoca. Aqui vai uma palhinha da 1ª aula, Pré-História: seu assunto, entre outros, será o nosso próprio olhar preconceituoso sobre nossos primeiros irmãos e irmãs.
(Está rolando um preço promocional só até o início do curso, dia 18, terça que vem!)
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O que é ser rica?
Se pessoa rica é quem pode comprar tudo o que quiser, existe duas maneiras de conseguir isso: a difícil (e não garantida) é trabalhar muito durante toda a vida, vender a alma ao mercado, passar boa parte do tempo realizando os objetivos de outras pessoas em troca de dinheiro, e assim por diante; a fácil (e garantida) é decidir se tornar o tipo de pessoa que não quer comprar quase nada. (Desenvolvo esses temas na Prisão Dinheiro e Prisão Trabalho.)
Na próxima terça-feira, 18 de janeiro, começa o meu curso História do Mundo Enquanto Fofoca. A primeira aula será sobre a pré-história e, embora o curso não tenha leituras obrigatórias, o texto recomendado para essa aula é A sociedade afluente original, de Marshall Sahlins. (Texto completo em português e em inglês.)
Essa palestra, dada em 1966, virou o campo de estudos da pré-história de cabeça pra baixo. Antes de Sahlins, as sociedades caçadoras e coletoras pré-históricas eram geralmente vistas pela historiografia e pela antropologia como pobres e miseráveis, formadas por pessoas que passavam tantas dificuldades que tiveram que abandonar seu estilo de vida nômade e começar a plantar comida para garantir sua subsistência — a dita “Revolução Neolítica”.
Sahlins defende o oposto: que, na verdade, essas sociedades eram mais ricas do que imaginamos, ou seja, que essas pessoas trabalhavam menos horas por dia para garantir sua subsistência e tinham mais horas de lazer, inclusive, do que nós mesmas. E ainda nos aponta o dedo: se nós, hoje, imaginamos essas pessoas como pobres e miseráveis é porque estamos projetando nela nossos próprios desejos consumistas.
Naturalmente, Sahlins não está dizendo que todos os seres humanos da pré-história (um período histórico gigantesco), ou que todas as sociedades caçadoras e coletoras (um número também gigantesco), eram assim, ou que eram todas da mesma maneira. Existem e existiram milhares de sociedades caçadoras e coletoras diferentes, cada uma com suas regras e práticas: dá para afirmar muito pouca coisa sobre elas como um todo.
O que Sahlins está falando é muito menos sobre essas sociedades em si, e muito mais sobre nós e o nosso olhar. Ele está nos ensinando, nós, pessoas vivas aqui e agora, a olharmos para as pessoas e sociedades do passado não através de nossas lentes preconceituosas, burguesas, capitalistas, mas para que tentemos julgar essas sociedades a partir de si mesmas, por seus próprios méritos.
Esse artigo (em inglês), “The Darker Side of the "Original Affluent Society”” faz diversas críticas ao Sahlins, mas chegando à mesma conclusão que eu:
“The original affluent society thesis then may be as much a commentary on our own society as it is a depiction of the life of hunter-gatherers. And that may be its powerful draw and lasting appeal.”
O novo livro do David Graeber (que foi orientando do Sahlins) e David Wengrow, The Dawn of Everything: A New History of Humanity, também faz críticas a esse texto de Sahlins, mas considero que basicamente concorda com ele, no sentido em que tudo que Graeber escreve também é para guiar nossa mirada ao passado, ou seja, para olharmos ao passado sem estarmos tão imersos em nós mesmas.
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“A Sociedade Afluente Original”, melhores trechos
Acontece que há dois caminhos possíveis para a afluência. As necessidades podem ser “facilmente satisfeitas”, quer por se produzir muito, quer por se desejar pouco. … Adotando a estratégia zen, um povo pode desfrutar de uma fartura material ímpar, com um baixo padrão de vida. … [Isso] ajuda a explicar parte de seus comportamentos econômicos mais curiosos: por exemplo, sua “prodigalidade”, a inclinação a consumir de uma vez todo o estoque existente, como se eles estivessem com a vida ganha, livres das obsessões do mercado com a escassez, as tendências econômicas dos caçadores talvez se baseiem com mais coerência na fartura do que as nossas.
Às atuais opiniões negativas sobre a economia dos caçadores-coletores, no entanto, não precisam ser imputadas ao etnocentrismo neolítico: o etnocentrismo burguês também serve. … As modernas sociedades capitalistas, mesmo que ricamente dotadas, dedicam-se à proposição da escassez. A insuficiência dos recursos econômicos é o princípio supremo dos povos mais ricos do mundo. … O sistema industrial e de mercado institui a escassez, de um modo completamente impar e num grau que não encontra equivalente em parte alguma. … A expressão “vida de trabalho árduo” foi-nos transmitida de um modo singular. A escassez é o juízo decretado por nossa economia, como é também o axioma de nossa ciência econômica: a aplicação de recursos escassos a fins alternativos no intuito de derivar o máximo de satisfação possível nas condições vigentes. E é exatamente por esse prisma angustiado que voltamos os olhos para os caçadores. … Depois de dotar o caçador de impulsos burgueses e de equipá-lo com instrumentos paleolíticos, julgamos sua situação de antemão desoladora.
Gusinde registrou a pouca inclinação dos yahgan para possuir mais de um exemplar dos utensílios comumente necessários como “uma indicação de autoconfiança”. … [A] movimentação é uma condição desse sucesso, mais movimento em alguns casos do que em outros, mas sempre o bastante para reduzir rapidamente as satisfações da posse. É verídico dizer-se do caçador que sua riqueza é um fardo. Em suas condições de vida, os bens podem tornar-se “dolorosamente opressivos” … e mais ainda quanto mais longo o tempo em que são carregados. … A mobilidade e a propriedade estão em contradição. … A portabilidade é um valor decisivo. … Artigos pequenos, de modo geral, são melhores do que os grandes. “[A] relativa facilidade de transporte do artigo” prevalece sobre sua escassez relativa ou seu custo de mão-de-obra. É que o “valor supremo” … “é a liberdade de movimento”. … Quanto menos possuem, maior é sua comodidade para viajar, e o que se estraga é vez por outra substituído.
O caçador … é um “homem não-econômico”. … [É] o avesso da caricatura padrão imortalizada na primeira página de qualquer livro de “princípios gerais de economia”. Suas necessidades são escassas e seus recursos (em relação a elas), abundantes. Por isso, ele é “comparativamente isento de pressões materiais”, não tem “nenhum sentimento de posse”, exibe um “sentimento de propriedade pouco desenvolvido”, é “completamente indiferente a qualquer posse material” e manifesta “desinteresse” pelo desenvolvimento de seu equipamento tecnológico.
Parece um erro dizer que as necessidades são “restritas”, os desejos são “coibidos”, ou mesmo que a ideia da riqueza é “limitada”. Essas formulações implicam de antemão um homem econômico … implicam a renúncia a uma aquisitividade que, a rigor, nunca se desenvolveu, e uma repressão de desejos que nunca foram expressos. O Homem Econômico é um constructo burguês …. Não é que os caçadores e coletores tenham refreado seus “impulsos” materialistas: simplesmente nunca os transformaram numa instituição.
Tendemos a pensar nos caçadores e coletores como pobres, porque eles não têm nada; por essa mesma razão, talvez mais valesse pensar neles como livres. Suas posses materiais extremamente limitadas livram-nos de todas as preocupações referentes às necessidades cotidianas e lhes permitem gozar a vida.
Curiosamente, os hadza, ensinados pela vida e não pela antropologia, rejeitam a revolução neolítica para preservar seu ócio. Embora cercados por lavradores, até recentemente recusavam-se a adotar a agricultura, principalmente sob a alegação de que isso implicaria muito trabalho árduo … “Por que haveríamos de plantar, se há tantas nozes de mongo-mongo no mundo?”
Sem dúvida os caçadores levantam acampamento por que os recursos alimentares nos arredores tornam-se escassos. Entretanto, ver nesse nomadismo uma simples fuga da fome apreende apenas metade da questão; ignora-se a possibilidade de que as expectativas das pessoas à respeito de campos mais verdejantes alhures geralmente não são frustradas. Por conseguinte, suas perambulações, em vez de angustiadas, assumem todas as características de uma saída para um piquenique à margem do Tâmisa.
A armazenagem seria “supérflua” porque, durante o ano inteiro e com generosidade quase ilimitada, o mar colocava toda sorte de animais à disposição do homem que caça e da mulher que coleta. As tempestades ou acidentes privam uma família dessas coisas por não mais de alguns dias. Em geral, ninguém precisa preocupar-se com o perigo da fome e, em quase toda parte, todos encontram abundância daquilo que necessitam. Sendo assim, por que haveria alguém de se preocupar com a comida para o futuro? … Sabiam que não precisavam temer o futuro e, portanto, não acumulavam víveres. Ano após ano, podiam antegozar, despreocupados, a chegada do dia seguinte. … O prejuízo potencial da armazenagem é exatamente comprometer a contradição entre riqueza e mobilidade. A armazenagem fixaria o acampamento numa área que não tardaria a ter seus recursos naturais alimentares esgotados. Assim, imobilizadas por seus estoques acumulados, as pessoas poderiam ficar em pior situação, quando comparada com uma pequena quantidade de caça e coleta que poderiam obter em outro lugar, onde a natureza houvesse feito, por assim dizer, uma considerável armazenagem por sua própria conta de víveres possivelmente mais apetecíveis por sua variedade e também pela quantidade maior do que os homens poderiam guardar. … Sua confiança econômica, nascida dos períodos ordinários em que as necessidades do povo inteiro são facilmente satisfeitas, torna-se uma condição permanente, fazendo-os atravessar com um sorriso períodos que seriam capazes de testar até mesmo a resistência da alma de um jesuíta. … Pressionados constantemente pela necessidade, mas podendo satisfazer facilmente suas necessidades através das viagens, em suas vidas não faltam animação nem prazer.
Quais são as verdadeiras deficiências da práxis dos caçadores-coletores? Não se trata da “baixa produtividade do trabalho” … mas a economia é seriamente afetada pela iminência da diminuição dos benefícios. … [U]m sucesso inicial parece apenas desenvolver a probabilidade de que novos esforços resultem em benefícios menores. Isso descreve a curva típica da obtenção de alimentos num determinado local. Em geral, um número modesto de pessoas reduz, mais cedo do que o esperado, os recursos alimentares disponíveis a uma distância conveniente do acampamento. A partir daí, elas só poderão permanecer nele se conseguirem absorver o aumento dos custos reais ou a redução dos benefícios reais: uma elevação do custo, se as pessoas optarem por fazer sua busca em locais cada vez mais distantes, ou uma diminuição dos benefícios, se ficarem satisfeitas vivendo com um suprimento menor ou com alimentos inferiores, mas ao alcance da mão. A solução, evidentemente, é ir para outro lugar. Daí a contingência primordial e decisiva da vida dos caçadores-coletores: ela requer o movimento para manter a produção em termos vantajosos.
A fabricação de instrumentos, roupas, utensílios ou adornos, por mais facilmente que seja executada, torna-se sem sentido quando esses passam a ser mais um fardo do que uma comodidade. Assim, tanto menor é a utilidade quanto menor é a portabilidade. Do mesmo modo, a construção de moradias substanciais torna-se absurda se elas logo precisarem ser abandonadas. Daí as condições muito ascéticas do bem-estar material do caçador: o interesse apenas pelo mínimo de equipamento (se tanto), a valorização das coisas menores em relação às maiores, o desinteresse em adquirir duas ou mais unidades da maioria dos produtos, e assim por diante. A pressão ecológica assume uma forma rara de concretude quando tem de ser carregada nas costas.
Nos pontos fracos da caça e da coleta residem também seus pontos fortes. A movimentação periódica e a contenção da riqueza e da população constituem, ao mesmo tempo, imperativos da prática econômica e adaptações criativas, O tipo de necessidade de que são feitas as virtudes. Exatamente nesse contexto, a riqueza torna-se possível. A mobilidade e a moderação colocam os objetivos dos caçadores ao alcance de seus recursos técnicos. Com isso, um modo de produção subdesenvolvido torna-se sumamente eficaz. A vida do caçador não é tão difícil quanto parece vista de fora.
Os caçadores e coletores, por força das circunstâncias, têm um padrão de vida objetivamente baixo. Mas, considerando-se isso como seu objetivo, e dados os seus meios adequados de produção, todas as necessidades materiais das pessoas costumam ser facilmente satisfeitas. A evolução da economia, portanto, passou por dois movimentos contraditórios: o enriquecimento e, ao mesmo tempo, o empobrecimento; a apropriação em relação à natureza e a expropriação em relação ao homem.
Os povos mais primitivos do mundo têm poucas posses, mas não são pobres. A pobreza não consiste em uma determinada quantidade reduzida de bens, nem é apenas uma relação entre meios e fins; acima de tudo, é uma relação entre pessoas. A pobreza é um status social. Como tal, é uma invenção da civilização. Cresceu com a civilização, imediatamente como uma distinção odiosa entre as classes e, o que é mais importante, como uma relação tributária, capaz de tornar os camponeses agricultores mais suscetíveis às catástrofes naturais do que qualquer acampamento hibernal de esquimós do Alasca.
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História do Mundo Enquanto Fofoca
Um panorama da história mundial, com foco no Ocidente, desde a pré-história até a Queda do Muro de Berlim. 12 aulas semanais, terças das 19h às 21h, entre 18 de janeiro e 12 de abril de 2022. Sem leituras obrigatórias.
(Está rolando um preço promocional só até o início do curso, dia 18, terça que vem!)