Só tecido morto não dói
Melhor andar feliz por um mundo belo e seguro e, de vez em quando, levar uns tombos... do que viver sempre em um ambiente feio e hostil, cercado por canalhas.
Levamos todas porrada da vida.
Ninguém é sempre campeão. Não somos semideuses.
Atrás de toda pessoa feliz (disse Tchecov, nesse conto) deveria existir um homem com um martelo – para lhe golpear periodicamente a cabeça.
Só porque a vida mais cedo ou mais tarde mostra suas garras.
Só para lembrar que existem pessoas infelizes no mundo.
Só pra lembrar que elas também amanhã estarão infelizes.
Só porque ninguém é tão egoísta e autocentrada quanto alguém autenticamente feliz.
* * *
Um belo dia, chega a porrada.
Sofremos a traição e saboreamos a desilusão.
E é o fim de tudo: nunca mais confiaremos em ninguém, estamos fechadas pro amor.
Sentamos na sarjeta e choramos. Choramos nossa miséria, nossa feiúra, nossa desesperança.
Tão autocentradas, coitadas de nós, quanto durante o auge da felicidade…
* * *
Um dia, a dor também passa.
Porque, afinal, apesar da dor e do horror, uma das mais importantes leis da física é a seguinte:
“Lavou, tá novo.”
A dor e o prazer, a alegria e a tristeza: como diria o cobrador, é tudo passageiro.
Não há mal que tanto dure, nem bem que tanto perdure.
* * *
Mas existe um fascínio inegável pela sarjeta.
Por andar se arrastando.
Por fazer um espetáculo de nossa tristeza.
Por jurar, copo de chope na mão, que o amor, ah!, esse nunca mais!
São como aqueles cachorros que você tenta acariciar… e eles estremecem de medo, se encolhem de horror, afastam a cabeça, se colocam fora da possibilidade do soco.
Você percebe na hora: alguém um dia cobriu aquele cachorro de porrada.
Ele apanhou.
Ele sofreu.
E nunca mais esqueceu.
* * *
Diz o budismo que toda emoção é dor.
Que não existe emoção puramente prazerosa que não vá, em algum momento, se converter em dor.
O carinho que sente pela namorada será inversamente proporcional à sua dor por perdê-la…. e perdê-la você vai, seja porque ela cansou de você, morreu ou o sol explodiu.
De qualquer modo, tudo é impermanente:
O bom e o mau. A dor de dente e o gozo. Eu e a Via Láctea.
Ainda assim, até fazermos nossos votos de monge budista, é preciso colocar a cara a tapa. Se arriscar. Tentar amar de novo.
Mesmo sabendo que vamos sofrer. Mesmo sabendo que vai doer.
Porque sempre dói.
O hamburguer do McDonald’s não apodrece porque não é comida. A maçã que você morde fica marrom porque ela está viva.
Só tecido morto não dói.
* * *
Tenho um conhecido cuja autodescrição do Twitter é “pairando sobre um mundo hostil”.
Fico triste por ele. Ninguém merece viver num mundo hostil.
Mesmo se o mundo for hostil de verdade.
Especialmente se o mundo for hostil de verdade.
* * *
Penso sempre em uma pintora que foi estuprada três vezes ao longo de sua vida. Quando perguntaram como se recuperou e o que fez para voltar a ter relações saudáveis com homens, ela respondeu:
“Em um dado momento, temos que escolher quem permitimos que nos influencie. Eu poderia me permitir ser influenciada pelos três homens que me fuderam contra a vontade, ou podia escolher ser influenciada por Van Gogh. Escolhi Van Gogh.”
* * *
Tomei lá minha farta dose de porradas em 2011 e 2012. Quando achei que não tinha como ficar pior, ficou. Quando achei que tinha me livrado dos malucos, apareceram piores.
Mas me recuso a ser o cachorro que se encolhe diante da possibilidade do soco – ou da carícia.
Sei que vou levar outros socos, e sei também que vou receber outras carícias. Provavelmente, como quase sempre acontece, dadas pelas mesmas pessoas.
É melhor andar feliz e despreocupado por um mundo belo e seguro e, de vez em quando, levar uns tombos pelo caminho (eu sei me levantar!) do que viver sempre em um ambiente feio e hostil, cercado por cretinos e canalhas.
Desfiz minhas barreiras. Abaixei meus escudos. Me expus à dor e ao amor.
Sejam gentis.
(Texto antigo, sempre atual, escrito em 2012. Fiz meus votos budistas em 2017, aliás. E continua doendo.)
* * *
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