Romanceiro velho, uma introdução
A nossa tão brasileira literatura de cordel é mais antiga que o próprio Brasil.
A nossa literatura de cordel tem origens na poesia de romanceiro da Península Ibérica, tanto na Espanha quanto em Portugal. Esse Romanceiro velho será nossa leitura na segunda aula do curso Grande Conversa Espanhola: do El Cid ao Dom Quixote, a invenção da literatura moderna. (O curso está saindo com desconto só na primeira semana de vendas, até 23fev. Compre aqui.)
Os “romances” eram poesias narrativas curtas, que contavam historinhas, com começo, meio e fim, e “romanceiros” são as antologias de romances, sobre um mesmo tema ou sobre temas afins. (Na primeira aula, lemos uma seleção do Romanceiro do Cid, quer dizer, de romances cujo El Cid é o protagonista.) Não seria exagero dizer que são as manifestações mais genuínas, valiosas, poderosas, vigorosas, vivas, transcendentes, da literatura medieval ibérica — não somente espanhola.
Uma teoria para a formação desses romances é justamente a fragmentação dos grandes poemas épicos orais, como o Poema do meu Cid: os trechos mais populares, que acabavam sendo os mais repetidos, os mais recitados, os mais memorizados, também acabavam se descolando do poema épico original e se transformando em um romance individual.
Aliás, uma das característica marcantes (e mais contemporâneas) dos romances é justamente seu caráter fragmentário: eles são um pedaço de uma ação, onde o contexto original quase sempre se perdeu. Quem são as personagens? O que está acontecendo? Não sabemos.
Longe da ideia que temos da literatura medieval em geral, quase sempre religiosa, moralizante e didática, os romances são abertos, instigantes, modernos, exigem a participação ativa do público, seja ouvinte ou leitor. Ao mesmo tempo em que registram e exemplificam a vigorosa literatura popular oral medieval, em seu fragmentarismo estilístico e em sua abertura de sentido, os romances também abrem caminho para as incertezas do racionalismo renascentista e da literatura contemporânea. No século XX, o Romanceiro Cigano, de Garcia Llorca, e o Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meirelles, provam a vitalidade e atualidade do gênero.
Os romances não eram só fragmentários, mas também dialógicos. Em uma época onde o teatro havia praticamente desaparecido, e sobrevivia apenas em autos religiosos de função didática e doutrinal, os romances mantinham viva uma tradição de diálogos dinâmicos, memorizados e cantados em público, provavelmente em duetos ou em grupos. A tradição dialógica do romanceiro velho certamente será um dos muitos rios que vão desembocar e possibilitar não apenas a obra de Gil Vicente, em Portugal (nossa leitura da aula 6 do curso Introdução à Grande Conversa), mas também o brilhante Celestina (aula 4), todo o teatro do Século de Ouro (nossas leituras das aulas 9, 11 e 12) e o Dom Quixote (que encerra as duas últimas aulas do nosso curso).
Ler o romanceiro medieval ibérico é tomar contato com uma faceta central de nossa própria cultura popular. Quando surge a imprensa, no século XV, os romances começam a ser impressos em folhas soltas de papel (sobras das primeiras gráficas) e são expostos para vender, por quase nada, pendurados em cordas— ou seja, são literalmente os nossos cordéis. “Literatura de cordel” é como chamamos os romances criados e cantados no Brasil, com temas brasileiros. “Romanceiro velho” é como chamamos a literatura de cordel criada na Península Ibérica da Idade Média, com temas hispânicos e medievais. (Os romances criados a partir de finais do século XVI já são chamados de Romanceiro Novo.)
Para quem não lê espanhol, o Romanceiro português, compilado por Almeida Garrett no século XIX, recolhe várias versões lusitanas dos mesmos romances hispânicos do Romanceiro velho, muitas das quais nos soarão familiares, pois são as cantigas que nos cantavam nossas avós.
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Leituras
Seleção de poesias dos livros:
—> Romancero y lírica tradicional [Penguin, ed. María Teresa Barbadillo de la Fuente.] (kindle)
Poesía medieval [Penguin, ed. Victor Lara] (kindle)
Como ler
Se possível, comprem os dois livros da Penguin (são acessíveis, baratos, com boas notas, disponíveis em ebook), mas todos os romances estão na internet (esse é a melhor coleção): mais perto da aula, farei uma lista dos indispensáveis. Em português, Garrett é uma excelente coletânea do romanceiro luso e Prado traduz os romances hispânicos mais importantes. O único áudiolivro é da LibriVox e a qualidade é irregular: no YouTube é fácil encontrar gravações de cada romance individual.
Espanhol
—> Romancero [Editorial Crítica, ed. Paloma Diaz-Mas.] (pdf)
Romancero [ed. Menéndez Pidal.] (pdf)
Romancero viejo (pdf)
Romancero viejo (site)
El romancero viejo, no Instituto Cervantes (site)
El romancero viejo, na Wikisource (site)
Português
—> Romanceiro, de Almeida Garrett (kindle, pdf)
Romances viejos do Romancero Español: análise e tradução, de Elsa Liliana Tironi de Souza Prado [Dissertação de mestrado defendida na UFMG em 2016 com vários dos romances mais importantes traduzidos] (pdf)
Antologia do cordel brasileiro [Global, ed. Marco Haurélio.]
Inglês
The Spanish ballad in English, de Shasta Bryant [vários romances traduzidos] (pdf)
Spanish classic ballads [vários romances traduzidos] (site)
Audiolivro
Apoio
Cavalaria em Cordel, de Jerusa Pires Ferreira [Edusp.]
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a segunda aula, Cordel, do meu curso Grande Conversa Espanhola: do El Cid ao Dom Quixote, a invenção da literatura moderna. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Para comprar o curso, clique aqui.