O racismo de Euclides da Cunha
Por que um livro tão racista quanto Os Sertões é tão canônico?
Personalizar o racismo de uma época em uns poucos racistas malvados nos impede de entender a História do nosso racismo estrutural. Ao criar o espantalho do racista individual, estamos desculpando o racismo estrutural de toda a sua época, todo seu contexto, todos seus contemporâneos.
Os Os sertões é canônico pois, se utilizando do instrumental racista da época (o único que havia), que afirmava a inviabilidade de uma nação mestiça como a nossa, consegue, apesar dele, apesar de si mesmo, articular uma esperança positiva de viabilidade para o Brasil.
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Introdução
O racismo que escorre pelas páginas de Os sertões não é o racismo de Euclides da Cunha: é o racismo unânime da época, articulado e validado praticamente pelas únicas teorias científicas que existiam, vindas do continente que (se pensava) tinha a exclusividade da civilização, da filosofia, da ciência.
Euclides usa essas teorias para pensar Canudos porque, literalmente, eram as únicas teorias que tinha à sua disposição.
Não tem como exagerar o fato de que, tirando meia dúzia de pessoas, todo mundo, na classe intelectual brasileira, concordava com as premissas e conclusões do racismo científico.
Então, ler Euclides como "um racista" não é nem que é injusto com ele (ele já morreu, não precisa de justiça, foda-se ele) mas é injusto com nós mesmas, pois estaremos falseando nossa própria compreensão da história do Brasil. Ou seja, quem perde não é ele, que não tem mais nada a perder: quem perde somos nós que estaremos deliberadamente pegando um homem para Espantalho (e, ao mesmo tempo, perdoando toda a sua época) e, assim, nos recusando a entender como funcionava o Brasil de 1900.
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Contexto intelectual de 1900
Em sua época, em seu contexto, Euclides era um progressista e foi uma das poucas figuras públicas de vulto a se manifestar em defesa dos canudenses e a denunciar o crime que foi sua destruição. Rui Barbosa, por exemplo, maior figura pública da época, famoso senador progressista, escreveu um discurso demolidor em defesa dos canudenses — que pode ser lido em suas Obras Completas — mas um discurso que, até hoje se especula a razão, ele iria fazer no plenário da Câmara e nunca fez. Provavelmente não havia clima para defender os canudenses.
O final do século XIX, auge da empolgação científica da Europa, foi marcado por busca sistemática por alguma teoria cientifica macro que explicasse a realidade, os fenômenos humanos, o desenvolvimento dos povos, a evolução das nações, etc, com a mesma precisão que as ciências naturais explicavam a natureza. Alguns dos frutos dessa época incluem desde o evolucionismo de Darwin e sua perversão, o darwinismo social; algumas que são levadas a sério por muita gente até hoje, como o materialismo histórico e a psicanálise; uma que está até hoje em nossa bandeira, o positivismo; e várias outras desacreditadas, como determinismo geográfico, frenologia, historicismo social.
A inteligência brasileira tinha passado os últimos quarenta anos antes de Os sertões consumindo essas teorias do racismo científico europeu em inglês, francês e alemão, sempre pregando, basicamente, que a mestiçagem produzia o pior da humanidade — ou seja, nós.
E as pessoas acreditavam nisso porque era isso o que havia para acreditar. Não havia teorias opostas que tivessem o mesmo nível de aceitação e credibilidade. Poucos foram os pensadores que não caíram em nenhum desses sistemas, como Manuel Bonfim e Joaquim Nabuco. São a exceção da exceção da exceção. Como exemplo, um trecho de Sílvio Romero, um de nossos maiores críticos literários:
"Povo que descendemos de um estragado e corrupto ramo da velha raça latina, a que juntara-se o concurso das velhas raças mais degradadas do globo, os negros da costa e os peles-vermelhas da América, nós ainda não nos distinguimos por uma só qualidade digna de apreço [. . .] O servilismo do negro, a preguiça do índio e o gênio tacanho e autoritário do português produziram uma nação informe, sem qualidades fecundas e originais."
Para nós, Euclides e Romero estão perversamente ultrapassados, mas, na época, estava trabalhando com as teorias de ponta, fazendo uma análise séria da cultura e da sociedade brasileira dispondo do instrumental mais moderno que dispunha — aliás, essa é parte da explicação do seu sucesso.
Era praticamente a primeira vez que um pensador brasileiro fazia um esforço sustentado de análise para aplicar essas teorias (que eram as únicas que havia!) à realidade nacional e, ainda por cima, oferecendo alguma esperança -- pequena, mas alguma — de que éramos viáveis enquanto povo, enquanto cultura, enquanto civilização.
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O que Os sertões oferece de novo, de diferente, de original?
De acordo com as melhores teorias científicas da época, provenientes da Europa e formando o substrato de Os sertões, o Brasil seria um país completamente inviável, formado pela mistura instável de raças doentes. Apesar disso, aqui estávamos nós, pessoas brasileiras, intelectuais, pensadoras, tentando construir uma nação. Como construir essa nação se as próprias teorias cientificas nas quais acreditávamos diziam que isso era impossível? Simples: ignorando, deslendo essa teoria.
O que Euclides oferece de novo, de diferente, de revolucionário em Os sertões é justamente abrir uma brecha no seu próprio edifício teórico racista, no próprio edifício teórico racista que lhe tinha sido entregue pronto, e articular um certo “senso de possibilidade” para a nação brasileira.
Antonio Cândido foi um dos primeiros a ver essa grande diferença entre Euclides da Cunha em sua leitura de Canudos e os teóricos europeus em quem se baseava:
“O homem euclideano é o homem guiado pelas forças telúricas, engolfado na vertigem das correntes coletivas, garroteado pelas determinações biopsíquicas: - e, no entanto, elevando-se para pelejar e compor a vida na confluências destas fatalidades. Semelhante visão não se confunde com o mecanismo de muitos deterministas do seu tempo ou anteriores a ele. Em Ratzel, ou em Buckle, não há tragédia: há jogo mútuo quase mecânico entre homem e meio.”
Muitos outros livros ofereceram uma narração dos fatos da Guerra de Canudos. Muitos outros livros ofereceram análises de Canudos com base nas teorias racistas-cientificistas então em voga. (Sem a validação desse vocabulário científico, o discurso não seria nem levado a sério. Essa, aliás, foi outra grande quebra só conquistada por Gilberto Freyre. Falo mais sobre isso aqui.)
O que Euclides ofereceu ao seu leitor, o que separou seu livro da massa, foi esperança. A esperança de uma transfiguração do sertanejo em cidadão. A esperança de salvar o projeto de nação do Brasil.
Tentando resumir mais um pouco: em uma época em que as teorias mais aceitas significavam que o Brasil era totalmente inviável, Euclides consegue, ao mesmo tempo, articular essas teorias, que eram as únicas que havia, e também articular um senso de possibilidade, uma certa ideia de Brasil que transcendia, que não era condenada à irrelevância por essas teorias.
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Referências: Revisitando o impasse euclidiano à luz do ensaio, de Alfredo Cesar Melo; O enigma de Os Sertões, de Regina de Abreu.
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No curso A Grande Conversa Brasileira, lemos Casa Grande & Senzala para a segunda aula, Escravistas & escravizados,e, agora, estamos lendo Os sertões para a próxima aula, a quinta, Civilizados & bárbaros, que acontece 5 de agosto.
Já os livros sobre os quais conversaremos na sétima aula, Loucas & grevistas, todo reproduzem, em maior ou menos grau — menos o de Pagu — a visão de mundo de Euclides da Cunha: O Cortiço, A Carne, Bom Crioulo, Eu e outros poemas, e O cemitério dos vivos.
O curso está bem legal, viu? Entrando agora, você assiste as quatro aulas passadas na gravação, participa das próximas seis ao vivo, e ainda conversa com a gente no grupo de Whatsapp.
Um beijo,
Alex