Quem pertence à classe alta?
O privilegiado é sempre um outro. (Reflexões sobre a Prisão Classe.)
Estamos algemadas à Prisão Classe quando simplesmente nos recusamos a encarar e reconhecer nossos privilégios de classe, mesmo quando eles estão em nossa cara, gritando e bufando.
Quando pergunto se as pessoas são ricas, elas ou dão respostas abstratas ("sou rico em oportunidades") ou negam ("olha, eu até ganho bem, mas não me considero rica porque não consigo comprar tudo o que eu quero.").
Ninguém acha que é rica, ou que é privilegiada, pois isso acarretaria obrigações sociais que queremos evitar, uma autoimagem da qual fugimos.
O privilegiado é sempre um Outro.
(A próxima aula do Curso das Prisões, Prisão Classe, acontece na quarta, 26 de abril de 2023, às 19h. Todas as aulas ficam gravadas. Ao entrar no curso, você tem acesso total às aulas anteriores. Mas vou te contar: o legal mesmo são as conversas livres… que não ficam gravadas! Compre aqui.)
Mais ainda, nenhum privilégio de classe é apenas um privilégio de classe. Pois a distinções de classe permeiam tudo nessa nossa sociedade tão desigual. As mulheres ganham menos que os homens. As pessoas negras ganham menos que as pessoas brancas. Todos os privilégios são, fundamentalmente, privilégios de classe, desfrutados com maior ou menor intensidade dependendo de nossa classe social.
Por isso, é tão engraçado quando algum negacionista do racismo, já sem argumentos, diz:
— Bem, mas isso não é uma questão racial, é uma questão econômica!
O que equivale a dizer: “Isso não é uma questão culinária, é uma questão gastronômica!”
O racismo e a misoginia também são questões econômicas. Também são questões de classe.
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Quem pertence à classe alta?
No Brasil, classe média é quem tem renda mensal per capita menor entre R$667 e R$3.755.
Só 6% de pessoas brasileiras ganham mais de R$3.755: essas pessoas, queiram ou não, esperneiem ou não, fazem parte da classe alta, da elite econômica do Brasil, o topo do topo da pirâmide. (A classe média engloba 47% da população; a classe baixa, com renda menor de R$667, outros 47%, e a classe alta, 6%.)
Por mais que isso interfira em nossa identidade de pessoa-sofredora-que-paga-impostos-escorchantes, etc, se estamos no topo da pirâmide econômica, se ganhamos mais do que 94% das nossas compatriotas, então, somos sim pessoas ricas. Somos sim pessoas privilegiadas.
E está na hora de começarmos a refletir sobre esses privilégios.
(Os dados são do Instituto Locomotiva, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) e da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), citados nessa matéria do G1, de 17 de abril de 2021: Classe média 'encolhe' na pandemia e já tem mesmo 'tamanho' da classe baixa.)
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Não tem como estar no top 5% e se achar na média
Em 2013, um relatório econômico da Secretária de Assuntos Estratégicos definiu classe média como tendo renda per capita acima de R$2.400 e gerou muita polêmica, ranger de dentes e rasgar de vestes. Já prevendo essa reação, o próprio relatório afirma:
"No Brasil, fazem parte dos 5% mais ricos todos aqueles em famílias com renda per capita acima de R$2.400 ao mês e muitos membros desse grupo se consideram parte da classe média. Seria impossível conceber qualquer divisão da população em três classes de renda (baixa, média e alta) em que os 5% mais ricos estivessem fora da classe alta. Para todos aqueles com essa opinião, qualquer definição coerente para a classe média sempre os excluiria e, por essa razão, seria percebida como empobrecida."
(O relatório se chamou Vozes da Nova Classe Média, Caderno 03 e foi lançado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) em abril de 2013.)
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Uma classe, por qualquer outro nome, seria igualmente privilegiada
Muitas de nós, quando descobrimos que de acordo com a classificação do governo não somos classe média, ficamos revoltadas.
Surpreendentemente, em vez de ficarmos revoltadas com nossos muitos privilégios, com a enorme quantidade de pessoas que vivem sem eles, com a gigantesca desigualdade em nosso país.... ficamos revoltadas com o governo ousar dizer que somos classe alta!
Mas a classificação do governo é apenas uma convenção e, no fim das contas, é irrelevante.
Talvez até achemos um absurdo o governo convencionar que a classe média só vai até a renda mensal per capita de R$3.755 e que nós, que ganhamos R$4 mil ("que não dá pra nada!!"), também deveríamos ser classe média.
Só que a nomenclatura é uma convenção arbitrária, como qualquer outra. O governo poderia nos chamar de "classe média", de "classe epaminondas" ou de "classe blé" e não faria diferença alguma.
Qualquer que seja o nome convencionado, uma pessoa com renda mensal de R$3.755 mil ganha mais do que 94% da população brasileira.
Essa é a definição de privilégio.
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O quão ricas realmente somos?
Por fim, só para irmos um pouco mais longe, quem ganha mais de R$9 mil mensais per capita faz parte do 1% de pessoas mais ricas... da humanidade.
A questão não é o quanto trabalhamos por nosso dinheiro, quantas obrigações financeiras temos, quanto dinheiro nos sobra depois de pagá-las, quantas coisas queremos consumir e não podemos.
A questão é que, se ganhamos mais de R$9 mil mensais, ganhamos melhor do que 99% das pessoas humanas que existem!
(A fonte é o site da ONG de altruísmo efetivo Giving what we can, onde eles explicam a metodogia.)
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Renda ou patrimônio
Estou falando aqui de renda, pois é um dado não só mais fácil de conseguir no nível macro, como também no micro, ou seja, a maioria das pessoas sabe a própria renda.
Mas a verdade é que renda, por si só, é um péssimo critério para medir privilégio, pois é um instantâneo do momento presente que às vezes não consegue captar as sutilezas da acumulação de capital.
Patrimônio é um indicador mais importante de desigualdade, pois, ao ser transmitido de uma geração a outra, acaba reproduzindo injustiças históricas ao longo do tempo.
Em 1988, por exemplo, a renda das pessoas negras norte-americanas de classe média era 75% de suas equivalentes brancas. Parece muito, e dá uma impressão de proximidade, de avanço, de “olha, estamos quase lá”, etc. Infelizmente, quando consideramos o patrimônio, a história é radicalmente diferente: o patrimônio das pessoas negras era 15% do das brancas.
(Os dados estão no primeiro capítulo de The Racial Contract, de Charles Mills, o melhor livro sobre racismo que já li.)
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Não adianta espernear
É inacreditável o quanto esperneamos, a quantidade de justificativas que arrumamos, os pelos em ovo que encontramos.... tudo para não olharmos no espelho e vermos ali pessoas privilegiadas. Pessoas que estão no topo da pirâmide econômica e social de nosso país. Pessoas que precisam antes abrir mão de privilégios do que continuar correndo atrás de adquirir novos.
O problema do Brasil não é existirem pessoas privilegiadas. Elas sempre existiram e sempre existirão.
O nosso problema é que nós, as pessoas privilegiadas, vivemos cercadas de miseráveis que fazem nossas unhas e lavam nosso chão por uma miséria... e ainda assim somos completamente incapazes de reconhecer nossos imensos privilégios.
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O privilegiado é sempre um outro
Nossa tendência de pessoas humanas é sempre normalizar e normatizar nossa situação: perceber nossa vida como “a vida normal e normativa”, e as vidas das pessoas mais pobres como “vidas pobres” e as vidas das pessoas ricas como “vidas ricas”.
Sempre existirão pessoas com mais e com menos privilégios que nós. A questão é outra: para quem estamos olhando?
Uma pessoa brasileira com renda mensal de R$4 mil pode escolher olhar para o 1% de pessoas brasileiras ainda mais privilegiadas que ela e aspirar possuir ainda mais privilégios.
Ou ela pode escolher se solidarizar com as 99% de pessoas brasileiras que têm muito, muito menos e tomar ação política para mudar essa realidade.
Estamos presas na Prisão Classe não simplesmente por sermos pessoas privilegiadas, mas por sermos pessoas privilegiadas que não enxergam e não reconhecem nossos imensos privilégios.
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No Brasil, quase nenhuma pessoa se admite “rica” ou “privilegiada”. Ambas as palavras, para todos os fins e efeitos, se tornaram praticamente xingamentos.
Há muitos anos, eu fui uma criança rica, crescendo entre outras crianças ricas, em uma das escolas mais caras do país.
Um dia, em uma lancha de quarenta pés em Búzios, eu disse alguma coisa que já nem lembro o que era, mas que incluía o reconhecimento explícito de que nós ali éramos pessoas ricas: “porque nós, os ricos, etc”, algo assim.
Bateu um silêncio constrangedor. Algumas pessoas olharam para o mar ao longe, outras passaram as pontas dos dedos por seus jacarés nas camisas pólo. Finalmente, um dos meninos tomou para si o ônus da resposta:
— Imagina, Alex! Eu e minha família não somos ricos!
Eu, criança bocuda, ainda sem entender direito o tamanho do tabu onde tinha esbarrado, insisti:
— Mas João Paulo! Acabamos de sair de sua casa de praia cinematográfica, com um deck envidraçado se estendendo até o meio do mar, e estamos agora na lancha que seu pai acabou de trocar ano passado, indo para um restaurante-ilha onde o almoço vai custar vários salários-mínimos. Óbvio que você é rico!
Como dizer que o rei não está nu quando ele está ali, balançando as bolas bem na sua cara?:
— Bem, Alex, veja, não somos ricos, meu pai trabalhou muito, mas é assalariado, um mero presidente de empresa multinacional, pode ser demitido a qualquer momento pelos acionistas! Ok, tudo bem, conseguimos economizar muito, temos um certo conforto, é verdade, mas não somos ricos.
Por fim, o abacaxi é fatalmente passado adiante:
— Rico, rico mesmo, é o Carlos Eduardo, que tem um iate de sessenta pés e a família é dona de sua própria ilha. Ele sim é rico, Alex. Não eu, pô!
Mais tarde, durante aquele mesmo almoço, o sofrido Carlos Eduardo também negou peremptoriamente sua condição de rico.
— Imagina! Minha família agora até está em uma situação confortável, fruto de muito trabalho apesar dos impostos escorchantes, mas rico mesmo, rico de verdade, é o Luis Felipe, do nono ano. Ele sim é rico!
Infelizmente, não lembro mais o que o Luis Felipe possuía para marcá-lo como rico.
Talvez Belize.
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O privilégio é um olhar
Todas as pessoas privilegiadas compartilham de diferentes graus da mesma cegueira.
Meus amigos de infância em Búzios não eram pessoas especialmente sem-noção: eles não se achavam ricos pelo mesmo motivo que todas as pessoas privilegiadas não se acham privilegiadas.
Porque quando crescemos rodeadas por algo – nesse caso, o privilégio – aquilo vira a regra contra a qual o mundo é comparado. Nossa vida é sempre a normal, a normativa: as outras vidas é que são menos ou mais alguma coisa.
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Nós, as pessoas privilegiadas, escolhemos olhar para as pessoas ricas e famosas, consumindo revistas de fofocas e programas de glamour, ao mesmo tempo em que escolhemos nunca olhar para as pessoas pobres e sofridas, evitando cruzar com elas nas ruas e nunca entrando nas comunidades onde moram.
Então, se evitamos as incômodas pessoas menos privilegiadas; se normatizamos nossas próprias vidas repletas de privilégios; e se olhamos com atenção somente para as pessoas com ainda mais privilégios que nós... o resultado final será nos tornarmos pessoas privilegiadas que simplesmente não conseguem enxergar seus próprios privilégios:
— Privilegiada? Eu? Claro que não. Só tenho uma jacuzzi! Privilegiado é o Luciano Huck, que tem cinco. Sério, eu vi no Vídeo Show!
Por outro lado, pessoas privilegiadas que frequentam comunidades carentes quase sempre se tornam mais e mais conscientes da imensidão de seus privilégios.
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O peixe não enxerga a água justamente por viver toda a sua vida rodeado por ela, e só percebe sua falta quando está se debatendo no convés do barco.
Nós também só percebemos a extensão de nossos privilégios – que sempre estiveram a nossa volta, por todos os lados, nunca questionados, nunca problematizados – quando somos confrontadas com sua ausência.
Mas não é preciso esperar que desigualdade do Brasil nos exploda na cara: podemos mudar a direção da nossa mirada hoje.
Podemos desnaturalizar tudo aquilo que nos parecia mais natural.
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O Curso das Prisões
O meu curso para 2023 está sendo o Curso das Prisões.
Em abril, nosso tema é a Prisão Classe.
Nossa aula expositiva acontece na quarta, 26 de abril. Antes disso, estamos debatendo sobre Classe nas nossas conversas livres, no Zoom e no Whatsapp.
Sim, ainda dá tempo de participar.Mais detalhes aqui.
Vem com a gente?
Perfeito seu texto. Perfeito e necessário. Obrigada!