Quando privilégios colidem
O privilégio não é uma hierarquia bidimensional: é um contínuo multidimensional. (Reflexões sobre a Prisão Classe.)
O que é privilégio? Quem tem? Quem não tem? Quem tem… mais? O que acontece quando privilégios colidem?
(A próxima aula do Curso das Prisões, Prisão Patriotismo, acontece na quarta, 31 de maio de 2023, às 19h. Todas as aulas ficam gravadas. Ao entrar no curso, você tem acesso total às aulas anteriores. Mas vou te contar: o legal mesmo são as conversas livres… que não ficam gravadas! Compre aqui.)
* * *
O que é o privilégio
Você, pessoa lendo esse texto, talvez não tenha tido os mesmos privilégios que eu, mas provavelmente também é uma pessoa privilegiada. Para começar, em um mundo desigual e injusto como o nosso, você já é uma pessoa privilegiada só por estar viva (outras menos privilegiadas morreram de doenças infantis facilmente evitáveis), ociosa (outras menos privilegiadas trabalham e estudam, ou trabalham vários empregos, e ainda cuidam das crianças e da casa, e não têm oportunidade alguma de ler textinhos na internet) e capaz de entender textos complexos como esse que está lendo agora (outras menos privilegiadas, a maioria das pessoas brasileiras, são analfabetas funcionais).
Uma possível definição de privilégio: uma faceta do nosso dia a dia que nos parece naturalizada e normativa, sobre a qual nunca pensamos porque sempre contamos com ela, mas que faz uma falta aguda e pronunciada às pessoas que não dispõem dessa vantagem. Por exemplo, uma mulher heterossexual não conta com várias “vantagens” masculinas que, para nós homens, são tão naturais que nunca nem pensamos nelas, como falar sem ser interrompida em uma reunião de negócios ou ter a temperatura do ambiente de trabalho sempre regulada para o seu conforto pessoal. Por outro lado, do ponto de vista de pessoas homossexuais, essa mesma mulher dispõe de vários privilégios com os quais elas apenas sonham, como tomar decisões médicas em nome da pessoa com quem está casada ou até mesmo simplesmente passear de mãos dadas com ela pelas ruas, sem medo de ridicularização ou violência.
O lugar onde o privilégio se revela mais claramente é no espaço público. No Brasil de hoje, quem pode caminhar pelas ruas feliz e despreocupado? Só mesmo homens brancos heterossexuais não portadores de deficiência.
Mulheres andam pelo espaço público como gazelas circulando entre leopardos, sempre na defensiva, com chave entre os dedos, andando rápido, sem poder sorrir ou fazer contato visual, ou se arriscam a ser alvo de atenções indesejadas. (Já disse uma amiga: “Adoraria poder andar tranquila como você anda, Alex, mas se ando pela rua devagar e passeando, sorrindo e fazendo contato visual, em poucos minutos algum homem pensa que estou flertando com ele e começa a me seguir”.)
Pessoas negras precisam tomar cuidado especial em como se vestem e como se movem, e a polícia não cansa de pedir que se identifiquem. (Uma vez, eu e um amigo negro perdemos um ônibus, que parou logo adiante, e eu sugeri corrermos para pegá-lo, e meu amigo suspirou: “Alex, um homem negro, de short e camiseta, não pode correr no meio da rua em Ipanema.”)
Pessoas homossexuais precisam falar, se mover, agir de modo diferente do que lhes seria natural, ou também arriscam a vida. (Conheço mais de um casal homossexual cuja relação acabou, ou foi seriamente abalada, por discutirem se seria seguro ou não se abraçar, se beijar, ou somente dar as mãos, nessa ou naquela vizinhança.)
Os exemplos poderiam se multiplicar ao infinito, incluindo pessoas trans, idosas, cadeirantes, etc etc. Como alguém pode se sentir cidadã plena de sua cidade e dona do seu destino se não consegue caminhar nem alguns poucos quarteirões em seu próprio bairro sem ser assediada? Sem que a polícia lhe obrigue repetidas vezes a provar que pode estar ali? Sem ter que tomar decisões estratégicas a respeito de dar ou não as mãos com a pessoa que ama?
Outra possível definição de privilégio: quanto mais livremente você dispõe do espaço público, mais privilegiado você é. Privilégio é andar pelo espaço público como se ele tivesse sido feito para você, para seu conforto.
Mais do que tudo, privilégio é ter escolhas. Ser privilegiado é poder escolher se hoje você quer andar rápido ou devagar, sorrindo ou não, fazendo contato visual ou não, correndo atrás do ônibus ou não, de mãos dadas com a pessoa que ama ou não. Ninguém pode fazer tudo o que quer. Mas, quanto mais privilegiados somos, mais escolhas temos a nossa disposição.
* * *
O privilégio é um contínuo multidimensional
Em uma hierarquia, sempre sabemos quem está por cima. Um capitão-de-mar-e-guerra está sempre abaixo de um almirante. Nunca há dúvidas. Quando há dois capitães, o mais antigo está sempre acima do mais novo. Ponto. O sistema foi pensado para que nunca exista espaço para dúvida.
Não existe “hierarquia de privilégios” justamente porque o privilégio é muito mais complexo do que as simples duas dimensões de uma mera hierarquia: o privilégio é um contínuo multidimensional.
Em 2014, depois de sofrer repetidas cantadas de um porteiro inconveniente, uma estudante de classe alta de Copacabana, bairro nobre do Rio de Janeiro, finalmente partiu para o contra-ataque. “Sou moradora do Posto 6!”, retrucou ela, entre vários outros marcadores de classe: enfatizou que ele era porteiro, ameaçou falar com o síndico, disse que iria perder o emprego, etc. A interação foi filmada por uma repórter de O Globo: o homem, pobre, parece estar usando seu privilégio masculino para compensar sua subalternidade social; já a moça, em resposta, ativa seus privilégios de classe para se defender da ofensa sofrida pelo crime de ser mulher no espaço público. A escritora Juliana Cunha (minha amiga querida!) resumiu assim o episódio: ele disse “tenho pinto” e ela respondeu “moro na Francisco Sá”.
Se não faz sentido debater quem está errado (pois obviamente é o assediador), o episódio pode gerar outras conversas: o que acontece quando privilégios entram em confronto? Em nossa sociedade patriarcal e capitalista, vale mais ser homem ou ser classe alta? Quem é o mais privilegiado nesse cenário? Dá pra saber? Faz sentido tentar ranquear privilégios?*
O contínuo multidimensional de privilégios de uma sociedade complexa como a nossa é tão complexo quanto ela. Cada uma de nós existe em um ponto diferente, fluido e mutável, desse mesmo contínuo de privilégios. Ninguém tem direito de se instituir em tribunal dos privilégios alheios, determinando quem é privilegiada ou não, mas sempre podemos refletir sobre os nossos próprios: afinal, onde nós achamos que estamos nesse contínuo de privilégios?
[*Juliana conta essa história no texto “Um pinto contra Francisco Sá”, que saiu no blog do Instituto Moreira Salles no dia 5 de junho de 2014.]
* * *
Visualizar privilégios*
Nossa sociedade não se organizou sozinha, nem caiu pronta do céu: foi organizada por muitos homens (ênfase em homens), ao longo de muitos séculos, e obedece, em larga medida, aos interesses de quem a organizou — interesses muitas vezes conflitantes e contraditórios, pois a sociedade é fruto não de uma conspiração a portas fechadas, mas de um longo processo social e político. No caso do Brasil, nossa sociedade foi engendrada por uma elite machista, classista, hierarquizada, racista, paternalista, hipócrita e autoritária, e continuamos funcionando de acordo com esse paradigma outrofóbico até hoje, mesmo que sob o verniz da democracia e do Estado de Direito. Então, se todas as pessoas brasileiras magicamente deixarem de ser outrofóbicas mas as estruturas e instituições permanecerem inalteradas, essa nossa hipotética sociedade sem machistas e sem racistas continuará intrinsecamente machista e racista, e marcada pela mais profunda outrofobia, pela mais crônica desigualdade racial e de gênero. O baralho que herdamos já está viciado para beneficiar sempre um tipo específico de jogador. Não basta que os jogadores beneficiados simplesmente não trapaceiem — pois, mesmo assim, vão continuar magicamente ganhando todas as partidas. É necessário trocar de baralho.
Quando percebemos e afirmamos nossa condição de pessoas privilegiadas, não estamos nos gabando. Pelo contrário, reconhecemos nossos privilégios porque só assim podemos abrir mão de alguns deles em prol de quem têm menos ou compensar as pessoas desprivilegiadas por tudo que recebemos em excesso. Sermos pessoas privilegiadas não faz de nós as vilãs, as monstras, as inimigas. Não significa que somos culpadas pelos crimes da nossa sociedade outrofóbica. Mas significa que, como beneficiárias desses crimes, temos a responsabilidade de nos tornar parte da solução e não do problema.
Nunca teremos tido outras vidas que não as nossas. Um homem jamais saberá como é a sensação de ter um encontro romântico, às vezes até com um conhecido, às vezes dentro da própria casa, e temer ser estuprado. Uma pessoa heterossexual jamais saberá como é a sensação de descobrir em si mesma os primeiros desejos sexuais e perceber que são por pessoas do mesmo sexo. Uma pessoa branca jamais saberá como é a sensação de ser constantemente parada pela polícia e tratada como criminosa só por causa da cor da sua pele. Não podemos estalar os dedos e nos transformar no que não somos.
Mas não precisamos ser mulheres para lutar contra o machismo, nem pessoas negras para lutar contra o racismo. Não é necessário sofrer algo na pele para ter empatia por quem sofre. É possível transcendermos nossa outrofobia, nossa criação, nosso passado, nossa classe social, nosso gênero, nossos preconceitos. Podemos ser maiores que nossas caixinhas.
Se não somos culpadas por nossos privilégios, se eles são resultados de ações tomadas muito antes de nascermos, então, nada poderia ser mais autocentrado do que a infinita masturbação mental de passar horas e horas girando em torno de nossos próprios Eus, remoendo nossas falas e atos, nos martirizando de culpa por privilégios que não criamos. Mas, se culpa é paralisante, falar de responsabilidade é energizante. O que podemos efetivamente fazer?
O primeiro passo é aprendermos a ouvir.
Não é que sejamos ignorantes porque não conhecíamos nossos privilégios: é que nossos privilégios, por definição, são tudo aquilo que ignoramos e que nossa própria experiência de vida nos ensinou a naturalizar e a normalizar. Privilégio masculino é tudo aquilo que um homem não vê justamente por ser homem, mas que está visivelmente ausente e dolorosamente palpável na vida das pessoas que não são. Privilégio heterossexual é tudo aquilo que uma pessoa hétero não vê justamente por ser hétero, mas que está visivelmente ausente e dolorosamente palpável na vida das pessoas que não são. E assim por diante.
Se o privilégio é invisível por definição, a única maneira de percebê-lo é se abrindo para as experiências e relatos das pessoas que o enxergam, das pessoas que sentem a dor da sua ausência. Por isso, quando uma outra pessoa estiver relatando preconceitos que nunca sofremos e nunca sofreremos, a única reação aceitável é ouvir e acolher. Quando uma mulher relata a um homem como é opressor levar cantadas de rua, não cabe a ele minimizar algo que ela sente que a oprime, uma experiência que ele nunca viveu nem viverá: “Ah, que besteira, eu me sentiria lisonjeado!” Quando um homem negro relata a uma pessoa branca como é opressor sempre ser interpelado pela polícia, não cabe a ela minimizar algo que ele sente que o oprime, uma experiência que ela nunca viveu nem viverá: “Ah, que besteira, você vê racismo em tudo!”. (Em ambos os casos, a opressão não é necessariamente receber uma cantada ou ser parado em uma blitz, mas a experiência de passar por isso continuamente ao longo de toda uma vida.) Se queremos visualizar nossos privilégios, devemos começar nos abrindo às experiências das pessoas que não os têm: ouvindo e abraçando, aceitando e acolhendo, sem interpelar nem minimizar.
[*“Visualizar o privilégio” é a 13ª prática do meu livro Atenção. Essa subseção parafraseia alguns trechos.]
* * *
Me ajuda a comprar livros?
Gosta dos meus textos e das minhas aulas sobre literatura? Então, preciso da sua ajuda.
Não tem como escrever esses textos e dar essas aulas sem consumir uma enormidade de livros. Sou membro de três bibliotecas, baixo pirata tudo o que encontro e, ainda assim, acabo precisando comprar muitos livros importados.
Se você tiver um dinheirinho sobrando e se meus textos de literatura abriram seus olhos para novas obras e novas autoras... você me ajudaria a escrever novos textos?
Para depositar alguns dólares ou euros nos meus cartões-presentes da Amazon EUA ou Espanha, basta visitar os links abaixo, escolher o valor e enviar para eu@alexcastro.com.br:
Espanha: amazon.es/cheques-regalo
E muito, muito obrigado.
* * *
O curso das Prisões
Em 2023, estou dando o Curso das Prisões.
Em abril, nosso tema foi a Prisão Classe. (Esse texto faz parte das reflexões surgidas em nossas conversas.)
Em maio, estamos conversando sobre a Prisão Patriotismo. Nossa aula expositiva acontece na quarta, 31 de maio de 2023. Antes disso, estamos debatendo sobre Classe e Patriotismo nas nossas conversas livres, no Zoom e no Whatsapp.
Sim, ainda dá tempo de participar. Mais detalhes aqui.
Vem com a gente?
Oi, Alex, tudo bem?
Eu gosto muito dos seus textos, pois me fazem refletir e, em certas ocasiões, até discutir alguns temas com um amigo-professor que tenho.
Existem outros redatores que você possa me indicar para que eu acompanhe suas reflexões?
Obrigado.
Adoro seus textos em geral mas os que vem escrevendo sobre privilégio tem sido fantásticos! Abraços, Alex! Ianina