Prisão Crescimentismo
Se você acredita em crescimento infinito em um planeta finito, você deve ser uma pessoa louca. Ou uma economista. (Reflexões sobre a Prisão Autossuficiência)
Se você acredita em crescimento infinito em um planeta finito, você deve ser uma pessoa louca. Ou uma economista.
(O tema do Curso das Prisões para o mês de agosto foi a Prisão Autossuficiência. Nossa aula aconteceu na quarta, 30 de agosto, sempre às 19h, e, como todas as aulas, está gravada. Ao entrar no curso, você tem acesso total às aulas anteriores. Esse textinho aqui é um adendo. Compre o curso completo.)
Passamos milênios devotando todas nossas energias para a simples tarefa de sobreviver, arranjar comida, nos proteger dos elementos. Então, com nossa engenhosidade, conseguir domar esses inimigos e tivemos, em algumas partes do mundo, uns duzentos anos de folga. Foram boas férias: tirando um holocausto aqui e outro genocídio ali, inventamos os direitos humanos, abolimos a escravidão, fundamos a ONU. Mas acabou. Temos que voltar ao trabalho, ao mesmo trabalho de sempre: precisamos desviar nossas energias criativas de inventar novos apps para inventar maneiras de não morrer.
O que chamo de "as prisões" são aqueles conceitos tão hegemônicos, tão poderosos, tão unânimes, que se impõem a nós como únicas opções e nos cegam à possíveis alternativas. A monogamia é uma prisão não porque ela seja ruim ou desaconselhável, feia, chata e boba, mas porque ela se apresenta como sendo a única opção concebível de organizar nossos relacionamentos, consignando todas as outras alternativas à imoralidade, à falta de sentimentos, ao fracasso: "relacionamento aberto não funciona, é coisa de quem não ama de verdade". A felicidade é uma prisão não porque seja ruim ou desaconselhável, feia, chata e boba, mas porque se apresenta como sendo a única opção de fim último para a qual aspirarmos, consignando todas as outras alternativas à condição de suas coadjuvantes e dependentes: "não é que o seu fim último seja ser virtuosa, mas você quer ser virtuosa para ser feliz, logo o seu fim último é ser feliz". Etc.
Dentro dessa definição, capitalismo e comunismo, enquanto sistemas econômicos, não podem ser considerados "prisões", pois mesmo a mais ferrenha defensora de um reconhecia a existência e os argumentos do outro, embora negasse sua validade. Já o Crescimento claramente é uma prisão: nossas líderes, à esquerda e à direita, em todo mundo, discutem como crescer melhor, como crescer mais sustentavelmente, como retomar o crescimento, mas ninguém questiona o crescimento, ninguém vê nenhuma alternativa a ele. Como um sapo de charuto na boca, não temos opção a não ser inchar até explodirmos.
Lula contra Bolsonaro, capitalismo contra comunismo, Estados Unidos e China, são todas danças das cadeiras no convés do Titanic. Quando nosso maior risco de colapso civilizacional era o nuclear, pelo menos, havia um consenso: as líderes soviéticas e norte-americanas tinham, como uma de suas prioridades, evitar um holocausto atômico. Agora, nem isso. No país mais poderoso do mundo, de quem dependemos para liderar esse processo, metade do establishment político nega peremptoriamente o risco que estamos correndo.
As cientistas já soaram o alerta desde a década de 1970: o tempo está acabando. Segundo algumas, já acabou. Mas suas descobertas vão contra fundamentos muito arraigados da economia política e da política econômica: dogmas difíceis de questionar, preconceitos difíceis de desconstruir. Deveríamos estar ativamente resolvendo o problema, mas a Prisão Crescimentismo é tão forte, tão envolvente, que nem conseguimos alcançar um consenso sobre a existência do problema, muito menos sobre qual seria a melhor solução. Falta planejamento econômico, falta liderança política.
Antes, nosso problema de sobrevivência era individual. Depois, passou a ser a sobrevivência de nossos pequenos grupos nômades: clãs, famílias, tribos. Mais tarde, nos assentamos para plantar batatas e começamos a nos preocupar com a sobrevivência de nossos grupos cada vez maiores: cidades, estados, nações. Hoje, gigantescos grupos de pessoas que não se conhecem, nem poderiam se conhecer, conseguem se unir sob um rótulo nacional para lutar por sua sobrevivência contra outros grupos unidos sob outros rótulos nacionais. Hoje, nosso desafio é dar o último passo: encontrar uma solução planetária para sobrevivermos juntas. Infelizmente, até hoje, nossa espécie nunca conseguiu alcançar nenhum consenso. Talvez não seja possível. Talvez ainda estejamos discutindo o aquecimento global quando as águas nos engolirem.
A luta não é para salvar nem o planeta nem a espécie. O planeta não corre nenhum perigo: pelo contrário, estará muito melhor sem nós. Nossa espécie não corre nenhum perigo: nos mais apocalípticos dos cenários, sempre vão haver pequenos grupos isolados de pessoas humanas se virando para sobreviver nos bolsões afastados do mundo. Nossos genes egoístas vão dar seu jeito de sobreviver e, em algumas centenas de milhares de anos, talvez evoluam em novas e diferentes espécies. A luta é para salvar nossa civilização: a língua portuguesa e o funk, a Mona Lisa e o jogo de damas, a Crítica da razão pura e Seinfeld, o YouTube e Shakespeare.
Na verdade, nossa civilização já está condenada: ela é, literalmente e matematicamente, insustentável — uma palavra forte cuja força se perdeu pelo excesso de uso. Se é insustentável que nossa civilização continue existindo, então, nossas escolhas são duas. Ou seguimos crescendo até o colapso e, então, cada sociedade se transformará em uma versão diferente de Mad Max. Ou tomamos controle desse processo, freamos o consumo, buscamos alternativas para o crescimento, contraímos nossas economias de maneira ordenada e planejada, e vamos criar, juntas, a próxima, novíssima, possível civilização humana.
A luta é para evitar que nossas bisnetas, vivendo em cavernas e se alimentando de raízes, limpem o cu com a última página do último exemplar de Dom Casmurro.
Sobre decrescimentismo, recomendo Pequeno tratado do decrescimento sereno (2007), de Serge Latouche; Democracia econômica. Alternativas de gestão social (2013), de Ladislau Dowbor; Deep economy: the wealth of communities and the durable future (2007) de Bill Mckibben; Prosperity without growth: economics for a finite planet (2009), de Tim Jackson; Beyond growth. The economics of sustainable development (1996), de Herman E. Daly.
O grande clássico da área é Small is beautiful. Economics as if people mattered (1973), de E. F. Schumacher.
O pensador atual inescapável é Nicholas Georgescu-Roegen, seja em suas próprias obras, como a coletânea O decrescimento. Entropia. Ecologia. Economia (2008), ou em obras que expliquem suas ideias, como A natureza como limite da economia. A contribuição de Nicholas Georgescu-Roegen (2010), de Andrei Cechin.
Por fim, pode ser interessante ler sobre esses mesmos assuntos, mas a partir de uma perspectiva budista. Recomendo Buddhist economics. An enlightened approach to the dismal science (2017), de Clair Brown; Buddhist economics: a middle way for the market place (1996), de Prayudh Payutto, e toda a obra de David R. Loy, especialmente A Buddhist history of the West: studies in lack (2002), The great awakening: a Buddhist social theory (2003), Money, sex, war, karma: notes for a Buddhist revolution (2008) e A new Buddhist path: enlightenment, evolution, and ethics in the modern world (2015).]
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Série “As Prisões”
Aqui estão os textos já reescritos, revisados e finalizados em 2023:
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O curso das Prisões
Em 2023, estou dando o Curso das Prisões.
Em outubro, estamos conversando sobre a Prisão Liberdade. Nossa aula acontece na quinta, 26 de outubro, sempre às 19h. Enquanto isso, estamos conversando sobre esses temas em nosso grupo de Whatsapp. E, sim!, ainda dá tempo de participar. Mais detalhes aqui.
Vem com a gente?
Que texto! Que texto!
Maravilhoso.