Prisão Autossuficiência
Texto completo e revisado. É desejável sermos tão autossuficientes? É possível? O que se perde nessa busca por uma impossível, indesejável autossuficiência?
Um dos motivos que nos leva a querer trabalhar tanto para juntar tanto dinheiro é uma busca desesperada pela pretensa segurança da autossuficiência. Afinal, ninguém quer depender dos outros, não é? Como posso ser livre se não sou independente?
Nossa ânsia por autossuficiência não é acidental: apesar de sermos uma espécie gregária, apesar de nosso maior superpoder ser nossa capacidade única de nos unirmos para trabalharmos juntas em prol de objetivos comuns, o capitalismo nunca para de nos vender a autossuficiência como uma das qualidades mais importantes da vida.
Não é difícil de entender o porquê. Quem está bem inserida em sua comunidade, quem dispõe de uma extensa rede de apoio, pode resolver seus problemas comunitariamente – eu pinto sua parede, você me leva no aeroporto. Entretanto, se somos autossuficientes, ou seja, se estamos isoladas, todos os serviços precisam ser comprados, do Uber ao Marido de Aluguel.
Como parte da ideologia capitalista, a sociedade nos vende um ideal de autossuficiência individual que, além de impossível e indesejável, nos impede de enxergar a interdependência de todos os seres. Somos intensamente gregárias: não temos como não nos importar com a opinião das pessoas à nossa volta, não temos como não ser influenciadas e pautadas por elas. Mas temos sim como escolher quem serão essas pessoas que estarão a nossa volta.
(Essa é a versão final completa da Prisão Autossuficiência. Como parte do Curso das Prisões e para futura publicação pela Editora Rocco, estou revisando e reescrevendo todos os textos da série As Prisões. A Prisão Autossuficiência é a sétima, depois das Prisões Verdade, Religião, Classe, Patriotismo, Respeito e Trabalho. As inscrições para o curso estão abertas.)
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Introdução
O inferno são as outras pessoas*, dizem por aí, mas raramente acrescentam que elas também são o paraíso e o purgatório: são as outras pessoas que roubam nosso coração e que roubam nosso carro, que validam nosso diploma e que invalidam nossas opiniões, que estupram nossa filha e que operam nosso câncer. Não há como fugir dos suplícios e delícias de compartilhar uma pedra rodopiante com sete bilhões de outras pessoas tão únicas e tão egocêntricas quanto nós — egoístas ao ponto de se importarem mais com elas mesmas do que conosco!** Ao mesmo tempo, nenhum outro animal passa tantos anos tão completamente dependente quanto nós: para todos os fins e efeitos, por causa de nossos enormes crânios, nascemos de parto prematuro e demoramos quase duas décadas para conseguir atuar plenamente como pessoas adultas.
Então, depois de uma infância de extrema dependência e nenhuma autonomia, nos sentindo sempre oprimidas e vigiadas pelas outras pessoas, poucos anseios são tão fortes quanto o de não precisar depender de ninguém. Por todos os lados, nas salas de cinema e nas salas de aula, nas bocas de amigas e nas bocas de parentes, a mensagem é sempre a mesma: assim como a liberdade e a felicidade, a autossuficiência é daqueles valores unânimes, auto-evidentes, inquestionáveis em nossa sociedade. ("É evidente que é melhor não depender dos outros!", "É óbvio que devemos sempre querer ser o mais independentes possível!", etc.)
Levado ao extremo, entretanto, esse anseio por autossuficiência pode se tornar uma ânsia, uma sofreguidão, uma avidez, que acaba por corroer nossos relacionamentos, minar nossas comunidades, destruir nosso planeta. A autossuficiência se torna uma prisão quando, por ser tão auto-evidente e inquestionável, deixamos de perceber que existem alternativas mais coletivas, mais comunitárias, menos egoístas para organizarmos nossas vidas, nossas economias, nossos amores. A autossuficiência também se torna uma prisão quando, por sermos tão constantemente oprimidas pelas outras pessoas, almejamos um modelo impraticável de autossuficiência emocional: queremos ser a mítica pessoa que não se importa com a opinião de ninguém, quando poderíamos facilmente escolher nos rodear por pessoas cujas opiniões nos importam.
É desejável sermos tão autossuficientes? Aliás, é possível? E o que se perde nessa busca por uma impossível, indesejável autossuficiência?
[*A frase “o inferno são os outros” é do personagem Joseph — que, irresistível mencionar, é um canalha carioca — na peça Entre quatro paredes (1944), de Jean-Paul Sartre, às vezes encenada no Brasil com o título original Huis clos. Não é, de modo algum, uma citação pessoal de Sartre. Joseph não estava sendo metafórico: a peça acontece no inferno, onde três pessoas estão presas em um quarto e são, literalmente, a tortura eterna umas das outras.]
[**Quem disse que “egoísta é a pessoa que se importa mais com ela mesmo do que comigo” foi Ambrose Bierce, o escritor que melhor soube morrer, em seu delicioso Dicionário do Diabo (1906). Um dia, se eu tiver coragem, morro como ele.]
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Pessoas que não ligam para a opinião de ninguém
Talvez seja um dos piores elogios que recebo:
— Ai, Alex, um dia quero ser assim que nem você, não ligar para a opinião de ninguém!
Uma pessoa que não liga para a opinião de ninguém é uma sociopata, imersa em seus próprios problemas e necessidades, cega e surda a todas as pessoas à sua volta: eu não sou assim — espero! — e não acho desejável que ninguém seja. Não temos a escolha de não nos importarmos com a opinião das outras pessoas, mas temos a escolha de nos importarmos com a opinião de quais pessoas.
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Existem outras tribos
A evolução nos fez animais gregários. Se havia de fato pessoas que não ligavam para a opinião de ninguém, elas ou foram expulsas de suas tribos ou saíram por vontade própria, e morreram sozinhas, no meio do mato, sem deixar descendentes — e, provavelmente, muito, muito felizes. Somos todas descendentes das pessoas que ficaram na tribo, que aceitaram suas regras quase sempre opressoras, que ajudavam umas às outras mesmo quando não tinham vontade, que morriam de medo de não estar adequadas à normalidade vigente, que sacrificavam sua individualidade para pertencer ao grupo.*
Por isso, uma das tarefas mais difíceis na vida de qualquer pessoa é ir contra as expectativas do seu grupo. Nunca será fácil anunciar para nossa família heteronormativa que somos gays, ou para nossa família de médicas que vamos cursar geografia. Se já é difícil sair publicamente de um grupo de amigas de infância no Whatsapp, o que dirá então de sair publicamente de uma igreja, abandonar uma graduação, terminar um relacionamento, assumir a homossexualidade, fazer transição de gênero!
Dizer “não” às pessoas que nos cercam, às pessoas que nos viram crescer, às pessoas que rezam, estudam, transam conosco, vai contra os nossos mais profundos e arraigados instintos gregários, instintos selecionados por um milhão de anos de evolução, instintos responsáveis por nos tornar a espécie dominante desse planeta. Não é fácil negar esses instintos, mas é possível. E, se não quisermos ser escravas das expectativas do nosso grupo, é necessário.
Hoje em dia, a opção não é mais ou aceitarmos as regras da nossa tribo ou morrermos sozinhas no mato: existem outras tribos.
[*O livro Teoria da classe ociosa (1899), do economista norte-americano Thorstein Veblen, sobre as dinâmicas sociais que fazem com que nos importemos tanto com a opinião das outras pessoas, foi uma das grandes inspirações para "As Prisões" e é um dos meus livros favoritos de todos os tempos, uma análise perceptiva e subversiva, quase sempre dolorosamente engraçada, do mundo em que ainda vivemos até hoje. Um trecho: “Somente indivíduos de temperamento aberrante podem continuar mantendo sua autoestima diante da desaprovação de seus pares. Exceções aparentes a essa regra são as pessoas de fortes convicções religiosas. Mas essas exceções aparentes na verdade não são exceções, pois essas pessoas geralmente dependem da aprovação putativa de alguma testemunha sobrenatural dos seus atos.”]
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Quem são meus ícones?
Há muitos anos, eu odiava sair de casa todo dia de manhã, de barba feita e fantasiado de executivo, para trabalhar o dia inteiro vendendo minha energia vital para realizar os projetos de outras pessoas. Mas pensava:
− O errado deve ser eu. Afinal, todo mundo faz isso. Se essas pessoas conseguem, também consigo.
E lá ia eu me torturar mais um pouco. Um dia, uma pequena mudança de foco fez toda a diferença. Em vez de olhar para as pessoas que já tinham se acostumado a tolerar as torturas que ainda me atormentavam, desviei minha mirada para as pessoas que viviam vidas diferentes, mais livres, mais abertas, mais bonitas, e pensei:
− Se elas conseguem, eu também consigo!
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Um rápido pedido de ajuda. Só posso escrever esses textos com a ajuda material das pessoas que os leem e os valorizam. Mais especificamente, só posso escrever esses textos depois de ler muitos livros caros e importados! Se você mora no exterior e a taxa de câmbio é favorável, uma das maiores ajudas que pode me dar é depositando uns trocados nos meus cartões-presente da Amazon. Basta visitar os links abaixo, escolher o valor e enviar para eu@alexcastro.com.br: Espanha <amazon.es/cheques-regalo> ou EUA <amazon.com/gift-cards>. E muito muito obrigado! E de volta ao texto.
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Não existe lugar onde possamos fazer o que quisermos
Quando trabalhei em uma empresa de investimentos, o código de vestuário me oprimia: a chefa olhava feio até para barba por fazer. Finalmente, larguei tudo e fui fazer doutorado em literatura, pensando que lá poderia me vestir como quisesse. Mas não era verdade.
O moço que ia de terno, gravata, sobretudo e pasta 007 (uma roupa perfeitamente adequada à minha empresa anterior!) era visto como um esquisitão. Um sujeito que um dia apareceu com uma camisa Lacoste foi zoado por uns seis meses. A moça que às vezes usava salto alto, cor-de-rosa e estampas de oncinha ganhou o apelido nada elogioso de Barbie. Tanto a empresa de investimentos quanto o doutorado em literatura tinham códigos de vestuário severos, cuja infração acarretava penas sociais imediatas. Com uma crucial diferença: o código de vestuário da empresa de investimentos me oprimia todos os dias; o código de vestuário do doutorado em literatura nunca me incomodou.
Esse mítico lugar “onde podemos fazer o que quisermos” simplesmente não existe. É uma fábula que contamos para nós mesmas, para tornar mais toleráveis os lugares cujas regras nos oprimem. Mas não precisamos nem tolerar os lugares que nos oprimem com suas regras, nem nos perder em uma busca vã pelo paraíso mítico da liberdade total sem regra alguma: podemos buscar lugares onde as regras não nos oprimam.
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Nem todas as pessoas vão nos amar
Existem poucas atitudes mais vaidosas do que autorizar a própria biografia. São sempre pessoas públicas que já enfrentaram escândalos, ataques e polêmicas, e que parecem pensar: “Ah, Beltrana me odiava porque não me conhecia; Fulana fez campanha pra me destruir porque não entendeu minha mensagem.” Afinal, ninguém que realmente as conheça, ninguém que realmente as entenda, poderia odiá-las, confrontá-las, atacá-las. Só essa certeza tão vaidosa justifica autorizar uma biografia e entregar todos seus arquivos ao escrutínio de uma outra pessoa.
A vaidade é acreditar que se a biógrafa ler todas as cartas, consultar todos os documentos, falar com todas as amigas, então, será impossível não amar a biografada. A vaidade é não perceber que ninguém está ou esteve ou estará a altura dessa presunção, que ninguém é ou foi ou será amada por todas.
As pessoas que não nos entendem, e que talvez nos odeiem, não é porque não nos conhecem direito ou porque não ouviram com cuidado nossa mensagem, e nem mesmo porque são canalhas ou mal-intencionadas. Mas sim porque são outras pessoas, que fizeram outras escolhas, que tem outras prioridades, que viveram outras vidas.
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Viver de aparências
Em meus eventos, sempre que falo da Prisão Autossuficiência, algumas participantes começam a criticar pessoas pretensamente fúteis, que vivem de aparências, que só se preocupam com status sociais e símbolos de prestígio, e assim por diante:
— Por exemplo, Alex, tenho um amigo que você não acredita. Mora com os pais, nunca viaja, não faz nada, mas tem um carro de meio milhão que usa pra se exibir. Não é ridículo?
Sinceramente... não. Quem somos nós para julgar o que outra pessoa faz com seu próprio dinheiro, ou seja, com sua própria vida? Quase sempre, chamamos de fútil qualquer pessoa que tenha prioridades que não são as nossas. Além disso, falar de “aparências” como se fosse pouca coisa, como se fosse algo desimportante, como se não fosse uma questão de vida ou morte, é completamente não entender como funciona essa nossa espécie tão gregária.
Pra começar, talvez para essa pessoa ter esse carro seja sua própria recompensa. Vai ver ela trabalhou a vida toda, economizou, não viajou, não saiu da casa dos pais, etc, justamente para poder comprar esse carro. Quem tem autoridade moral pra dizer que gastar meio milhão num carro é melhor ou pior que comprar um apartamento ou um veleiro, que investir e viver de renda ou torrar tudo e viajar o mundo?
Por outro lado, pode ser que, para ela, ter esse carro seja uma etapa necessária para conseguir outros objetivos. Nos círculos internacionais dos altos negócios, existem muitas conversas, muitos clubes, muitas reuniões onde você só entra se tiver (ou se acharem que você tem) um carro de meio milhão.
Meu pai, em diferentes momentos da vida, já teve carros caríssimos por esses dois motivos. Já o vi mandar fazer ternos de vinte mil e alugar carros de meio milhão só para fazer uma boa primeira impressão em uma única reunião de onde planejava sair com cinco milhões. E, vou te contar, saía.
Uma vez, eu quis montar uma barraquinha na rua e vender limonada na rua, como tinha visto nos filmes estadunidenses, e meu pai sentou comigo e explicou:
— Alex, entenda o seguinte. Papai ganha a vida investindo o dinheiro de pessoas muito ricas. E elas só me dão esse dinheiro porque acham que eu também sou muito rico. Se alguém vê o meu filho varão na rua vendendo suco e pensa, por um segundo, que talvez eu esteja falido, e conta isso pra outra e pra outra pessoa, no dia seguinte todo mundo sacou o dinheiro que têm comigo e aí a gente faliu mesmo, e vai vir o moço da Receita Federal levar todos os seus livros.*
Naturalmente, eu, menino inconformista e rebelde, fiquei possesso e demorei décadas para dar razão ao meu pai. Eu nunca viveria a vida que ele escolheu viver e fugi para longe desse mundo assim que tive autonomia para tanto, mas errado ele não estava. E até mesmo eu, que sou pobre de marré-de-si mas cresci nesse mundo e sou fluente em códigos, continuo sabendo me fingir de rico para entrar em lugares onde já não tenho mais renda para estar, o que me rende negócios, contatos, oportunidades que eu infelizmente não existem cá fora.
Sim, dinheiro é sim um tipo de liberdade, mas, por óbvio, só se servir para fazermos o que quisermos com ele. Se for pra outra pessoa escolher como devo gastar meu meio milhão (assim e assado pode, assado e assim não pode) aí não faz sentido.
O principal exercício das Prisões é deixarmos nós mesmas de ser a polícia secreta do mundo, incansavelmente vigiando umas às outras e determinando como as pessoas devem se comportar. As pessoas que se interessam pelas Prisões tendem a ser o tipo de gente que acha que o ideal de vida é não se preocupar com as opiniões das outras, que viver de aparência é uma vida menor ou inferior.
Infelizmente, não está aberta a nenhuma de nós, quer queiramos quer não, a opção de não viver de aparências. Somos uma espécie resolutamente gregária: a opinião dos outros macaquinhos sobre nós é literalmente uma questão de vida e morte, tanto na Pré-História quanto hoje. Não faltam exemplos de pessoas que morreram porque pareciam perigosas ou disponíveis aos olhos de Fulano ou Beltrano — essa é a triste motivação de muitas mortes por racismo ou feminicídio.
A aparência é mais importante que a essência porque simplesmente não existe essência. A aparência é tudo que temos. Nosso sucesso, nossa felicidade, nossa liberdade, até mesmo nossa vida, depende muito mais de como somos percebidas pelos macaquinhos a nossa volta — ou seja, da nossa aparência — do que de nossa pretensa “essência”. Nossa essência, se é que existe, se manifesta através das máscaras que escolhemos vestir a cada diferente interação social.
Uma possível definição da Prisão Autossuficiência: a ilusão de que é possível ou desejável não viver de aparências, ou seja, viver sem se importar com as opiniões dos outros macaquinhos sobre nós. Está presa na Prisão Autossuficiência quem está tão preocupada em ficar livre desse olhar do Outro que não enxerga que estamos todas necessariamente conectadas e que esse olhar do Outro é não só necessário como desejável. Não é à toa que um dos piores castigos que temos, em qualquer sociedade humana, é excluir a pessoa do olhar de qualquer outra, seja expulsando-a da tribo ou sentenciando-a à uma cela solitária. Nada pode ser pior.
[*Sim, juro de pés juntos que esse era o bicho papão da minha infância: o moço da Receita Federal que iria levar todos os bens da família, inclusive meus livros.]
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Cultivar a excentricidade
A filha de uma de minhas melhores amigas iria fazer aniversário e, por isso, perguntei a outra amiga:
— Não entendo nada de criança. Tem problema se eu der um vale-presente?
E a amiga colocou uma mão carinhosa em meu ombro e respondeu:
— Imagina, Alex. Vindo de você, não tem problema nenhum!
Mas esqueci de dar o vale-presente.
Ser artista é sofrer em público para o benefício das outras pessoas e se abrir ao seu julgamento — às vezes impiedoso, muitas vezes surpreendentemente generoso. Se perguntamos a uma turma de jardim de infância quem é artista, todos os braços se levantam. Ao longo dos anos, os braços vão minguando. Lá pela sexta série, as autodeclaradas artistas são apenas uma ou duas, levantando o braço de maneira bem hesitante, olhando em volta, temendo o julgamento de seus pares, não querendo nunca se tornar as esquisitas da turma.*
Mas ocupar esse lugar da pessoa excêntrica e fora-do-padrão pode ser salvador: ele nos permite transgredir as regras com uma liberdade que teria custado caro às outras pessoas. Cultivar uma reputação de excentricidade foi uma das melhores coisas que fiz por mim mesmo. Na adolescência, o peso das regras de conformidade social da minha escola teria me esmagado. Ser excêntrico, ser artista, ser esquisitão, salvou minha vida e minha sanidade. Continua salvando até hoje.
[*Quem ia de sala de aula em sala de aula perguntando quem eram as artistas era Gordon Mackenzie, citado por Tom Kelley no artigo: “Everyone was an artist in kindergarden”, publicado na revista The Atlantic, 28 de junho de 2014.]
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Quem desejamos atrair?
Ao invés de me modificar pra atrair gente que não gosta da pessoa que me construí para ser, sempre preferi me expor — e, então, receber e amar as pessoas que se atraíssem pela minha construção.
Na escola, eu me oferecia para fazer massagens nos pezinhos das minhas amigas, elogiava quando apareciam com a unha pintada, demonstrava reparar. Sim, algumas não gostavam da atenção – e eu, naturalmente, por respeito e por cautela, nunca mais fazia comentários do gênero. Algumas deviam me chamar de mil nomes pelas costas – mas e daí?
O importante é que algumas outras se aproximavam, curiosas, instigadas, fascinadas, puxando assunto: “Nunca vi menino achar pé bonito”, “Gosto tanto de carinho na solinha”, “Ninguém reparou na minha tornozeleira nova, acredita?”, “Como é que você fez massagem no pé da Lívia e ainda não fez no meu?”, etc. E assim começaram praticamente todas as experiências sexuais da minha adolescência.
Mas outras pessoas preocupadas tentavam me alertar:
— Alex, vale mesmo a pena pagar de maluco pra todas as meninas da escola só pra beijar o pé de três ou quatro?
E eu respondia:
— Claro. Tem quinhentas meninas na nossa escola. Se todas se interessassem por mim, seria um pesadelo! Eu não teria tempo de fazer mais nada. Melhor eu me mostrar como eu sou e atrair só aquelas poucas que ficam atiçadas e curiosas, que têm as mesmas taras, que gostam tanto de ter seus pés lambidos como eu gosto de lambê-los.
Eu não quero todas as mulheres do mundo: quero apenas, dentre as que me querem, aquelas que eu também quero de volta. Muita gente me acha esquisito? Essa é a ideia: sou esquisito mesmo. Afinal, em um mundo tão canalha, a maior esquisitice seria não ser esquisito. E, naturalmente, eu sou muito mais que uma pessoa que gosta de pés e qualquer mulher é muito mais do que um par de pés, ou um par de qualquer coisa, mas essa era apenas a primeira fagulha de interesse que dava ignição à paquera.
Nada pode ser mais libertador do que se livrar da ilusão de que existe algo que possamos fazer para sermos amadas e desejadas por todas as pessoas. Ser rejeitado pelas pessoas certas só faz bem: me poupa o trabalho de ativamente espantá-las. Eu me revelo justamente para descobrir quem vai bailar comigo e quem vai se encostar na parede.
Vale a pena afastar mil bois pra atrair uma única leoa.
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Procurando por filé mignon na peixaria
Uma pessoa amiga, depois da separação, entrou na fase de querer transar com uma pessoa diferente por noite. Mas, depois de algumas semanas, ela me confidenciou:
— Só tem gente canalha nessa cidade!
E eu respondi:
— Olha, é uma questão de números. Nada contra transar com uma pessoa diferente por noite, mas o rigor do seu processo seletivo vai ter que ser necessariamente baixo.
— Porra, Alex, toda noite, saio com as amigas, dançamos, nos divertimos, eu encontro caras, às vezes levo um pra casa na hora da xepa, mas tudo cachorro!
— Nada contra pessoas que saem para dançar e transam com as pessoas que conhecem na pista de dança, mas parece, pelo que você mesma diz, que não são esses caras que você quer. Só que o mundo está cheio de gente. Quem gosta de pessoas esportistas, pode paquerar na academia, na praia. Quem gosta de pessoas leitoras, na biblioteca, na livraria. Senão, é como ir todo dia na mesma peixaria, pedir sempre filé mignon e depois reclamar que não tem filé mignon nessa cidade!
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Não existe gosto unânime
Quando uma pessoa diz que se não se depilar (ou qualquer outra coisa) não conseguirá atrair ninguém, ela está confirmando uma ideia muito perigosa: que as pessoas são homogêneas em seus gostos e que existem expectativas tão unânimes que quem não as preencham vão purgar uma solteirice eterna.
Só que não é verdade.
Se quisermos uma pessoa diferente por noite, aí sim talvez seja uma boa tática seguir o gosto médio. Mas não é isso que a maioria de nós quer.
Em média, a pessoa brasileira têm doze parceiras sexuais ao longo da vida*, um número razoavelmente pequeno, que podemos selecionar com cuidado, cautela, carinho. Doze pessoas incríveis, doze pessoas tesudas, doze pessoas com quem vale a pena compartilhar nossa intimidade, ainda mais ao longo de toda uma vida, essas pessoas nós conseguimos encontrar em qualquer cidadezinha. Sem precisar nos moldar ao pretenso gosto homogêneo de uma maioria que nem mesmo existe. Sem precisar fazer nada que não queremos fazer.
[*A pesquisa que diz que as pessoas brasileiras, em média, transam com doze pessoas ao longo da vida foi realizada pelo Instituto Tendencias Digitales em 2010, sob encomenda do Grupo Diários America (GDA), do qual faz parte o jornal O Globo, e publicada no site da BBC Brasil em 12 de novembro de 2010. A metodologia da pesquisa é toda furada, mas o número verdadeiro deve ser próximo.]
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As vantagens estratégicas de não depilar
A indústria da depilação ganha a vida nos convencendo que todas as pessoas gostam de pessoas depiladas... Mas por que acreditamos tão facilmente em quem diz que somos fedidas e logo depois tenta nos vender sabonete?
De acordo com minhas amigas que não depilam, não depilar tem uma grande vantagem estratégica na hora da paquera. Quando um homem dá em cima delas, ele nem sabe ainda, mas já passou em um disputadíssimo vestibular: ele provou que não é o tipo de cara que jamais daria em cima de uma mulher só porque ela tem a perna e as axilas peludas.
Talvez mais importante, também evita decepções futuras. Se fossem depiladas, talvez acabassem saindo com caras que só toleram mulheres depiladas e aí, algumas semanas depois, quando eles soltassem algum comentário ofensivo contra mulheres não-depiladas (“olha só, parece uma macaca, essas mulheres não têm respeito próprio, não?”), elas ficariam revoltadas de ter perdido tempo com gente tão babaca. Mantendo-se cuidadosamente não-depiladas, elas nunca correm esse risco.
Não precisar gastar dinheiro nem passar dor é bônus.
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A única maneira de descobrir quem gosta de cabelo azul
Se quero pintar o cabelo de azul, mas não pinto, por medo de que ninguém vai se interessar por mim se tiver o cabelo azul, então posso acabar saindo, namorando, casando, vivendo uma vida inteira com uma outra pessoa que também gostaria de ter pintado o cabelo de azul, e ficaremos lá, as duas, na cama, de madrugada, olhando uma para a outra e pensando:
— Pôxa, e se eu tivesse pintado o cabelo de azul, hein? Será que não encontraria alguém legal que me amaria pelos meus cabelos azuis?
Pintar o cabelo de azul, para quem quer pintar o cabelo de azul, já é uma recompensa por si só. Mas, além disso, também traz uma outra vantagem estratégica: ter cabelo azul é a única maneira garantida de atrair pessoas que gostam de pessoas de cabelo azul.
Na roleta da vida, só temos nós mesmas para arriscar. Sim, arriscamos sofrer rejeições. Algumas pessoas de quem até gostávamos vão dizer:
— Cruzes, nunca levaria alguém de cabelo azul para conhecer vovó!
Mas também arriscamos o grande prêmio: ser a pessoa de cabelo azul que sempre quisemos ser e, ainda por cima, namorar uma pessoa incrível que adora nosso cabelo azul tanto quanto nós.
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Qual é o nosso público?
Qualquer produtor de televisão pode confirmar: um programa para a TV aberta, que precisa atingir um público de dezenas de milhões, é um produto bem diferente de um programa de TV a cabo, que será um sucesso absoluto se atingir poucos milhões.
Para o primeiro programa, é preciso continuamente aparar arestas (tem gente que se ofende com beijo gay?, então não pode ter beijo gay, etc) até que sobra um produto final razoavelmente homogêneo, pasteurizado, seguro, sem personalidade, que se anulou até não sobrar quase nada.
Já o segundo programa, por ter expectativas mais reduzidas, pode ousar mais, sabendo que cada ousadia tem seu custo-benefício (um beijo gay tem o custo de afastar o público homofóbico e o benefício de atrair o público LGBT e simpatizantes) até que sobra um produto final que certamente não agradará ao grande público, mas que agradará muitíssimo o público para o qual foi produzido.
O grande paradoxo do nosso comportamento sexual-amoroso é sermos um programa de TV a cabo que passa às quartas-feiras de madrugada, mas agirmos como se passássemos no horário nobre da TV aberta. Nossa ansiedade por ser amadas e nosso pânico de ficar sozinhas é tamanho que nos comportamos como se precisássemos atrair sete bilhões de pessoas, mas, na verdade, só precisamos atrair uma dúzia para ter uma vida inteira de relacionamentos plenos e satisfatórios.
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Desapegar de pessoas
Não faz muito tempo, eu acumulava pessoas. E dizia para mim mesmo:
— Todo mundo tem uma história.
Mas aí, frequentemente, alguém fazia um comentário outrofóbico, mesquinho, fofoqueiro, e eu se pegava fingindo rir, às vezes até fazendo comentários similares pra não se sentir deslocado, ao mesmo tempo em que tinha vergonha de mim mesmo e de minha carência. E pensava:
— O que estou fazendo aqui?
Então, comecei a desenvolver um trabalho constante de me desapegar de pessoas. Nada de brigar, riscar da agenda, trocar de mal: apenas um sutil afastar-se.
Um belo dia, anos depois, cercado de pessoas que admirava e que tinham tudo a ver comigo, percebi há quanto tempo não me fazia a velha pergunta “o que estou fazendo aqui?” Ultimamente, o que me pegava pensando era:
— Por que demorei tanto para estar aqui?
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Só sabe a força da correnteza quem rema contra ela
Quando estamos remando a favor da corrente, descendo o rio, sendo tudo aquilo que a sociedade espera de nós, a viagem é tranquila e agradável, o mundo parece livre e florido, a vida não exige esforço algum.
Às vezes, algumas amigas criadoras de caso reclamam da correnteza, denunciam que o rio é caudaloso e violento, mas nós nem entendemos direito o que querem dizer:
— Gente, o rio é tão tranquilo, tão gostoso de navegar, será que não são vocês que estão vendo coisas?
Um belo dia, entretanto, deixamos de ser uma ou mais daquelas coisas que a sociedade espera que sejamos. Pode ser um desvio pequeno ou grande, incidental ou ontológico, pode ser uma decisão de momento, pode ser revelarmos ao mundo aquilo que sempre fomos: abandonar celular ou abraçar o ateísmo, tornar-se feminista ou sair do armário. Agora, aquela mesma corrente de sempre não está mais nos levando para onde queremos ir: ela continua nos levando em direção a um emprego em tempo integral, mas queremos ser atrizes de teatro infantil. Para chegarmos ao nosso novo objetivo, para sermos quem queremos ser, teremos que remar contra a correnteza.
Nesse momento, quando enfiamos o remo na água para remar contra a corrente, é que percebemos tudo aquilo não percebíamos antes: que aquele rio que parecia tão agradável e tranquilo na verdade é forte, caudaloso, intolerante. Um rio que é tão violento quanto são violentas as margens estreitas que o limitam.*
Muitas vezes sou acusado de ficar “reafirmando” meu estilo de vida, como se estivesse me gabando, como se fosse inseguro, como se quisesse convencer as outras pessoas. Mas a correnteza é forte, inapelável, constante: ela está sempre nos levando rumo ao padrão que a sociedade exige de nós, tentando nos transformar em pais e mães de família, trabalhadoras, consumidoras, monogâmicas, heterossexuais, conservadoras, religiosas.
Ninguém é tão transgressora que não aceite grande parte dessas obrigatoriedades sociais: mesmo quando transgredimos algumas, acabamos aceitando a maioria das outras. Somos todas, em diferentes graus, transgressoras e conformistas. Mas basta querermos transgredir qualquer uma coisa e já teremos que remar contra a corrente.
Ser quem queremos ser é uma luta diária, um exercício sissifeano de remar contra a corrente durante toda nossa vida; de parar e descansar e ser arrastada para trás e então remar tudo de novo; de manter o olho cravado em nosso objetivo, seja ele qual for; de recusar todas as coações e cooptações e seduções que surgirem ao longo do trajeto; de articular sempre quem somos e quem desejamos ser; e, finalmente (e essa é a parte mais difícil), é um exercício de efetivamente sermos essa pessoa.
Quem está remando contra a corrente precisa se autoafirmar: é necessário articularmos sempre o nosso objetivo — justamente para não nos desviarmos dele.
[*A metáfora de Bertolt Brecht sobre a violência do rio pode ser encontrada, com ligeira diferença, no poema “Sobre a violência” (circa 1933-38), disponível no livro Poemas 1913-1956, publicado pela Editora 34.]
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Ser ou não ser autossuficientes?
Existe uma aparente contradição no cerne da nossa sociedade. Por um lado, somos coagidas a seguir um mesmo script massificado (monogamia, heterossexualidade, emprego integral, imóvel financiado, família de porta-retratos, etc) ou pagar as mais severas penas sociais (“o que vão pensar de você ... não vai conseguir namorada ... será demitida! etc etc ”). Por outro lado, a mesma sociedade que nos impõe sermos iguais a todo mundo também nos impele a buscar um nível de autossuficiência material que, segundo ela, seria não só possível (não é) como também desejável e imprescindível (não é, não é).
Assim como o Deus de Israel só inventou o livre-arbítrio para que as pessoas judias pudessem “livremente” escolhê-lo (e para punir quem não fizesse a escolha correta), nossa sociedade vende como possível e desejável e imprescindível um altíssimo nível de autossuficiência material, para que então, do alto dessa borbulhante liberdade, possamos livremente escolher comprar os mesmos tablets e ostentar os mesmos penteados, viajar para os mesmos parques e viver as mesmas vidas.*
Temos sempre plena liberdade de fazer as escolhas que já estavam pré-escolhidas para nós. E Deus nos ajude se escolhermos errado! Ou, como diz a propaganda, sem um pingo de ironia: “Seja rebelde. Use Converse.” (A Converse pertence à Nike, a marca de roupas mais valiosa do mundo, uma empresa de 60 mil funcionárias e faturamento anual de 30 bilhões de dólares.)
Então, aquilo que à princípio parecia contraditório na verdade não é: quanto mais compramos o script conformista, mais ansiamos pela única autossuficiência que ainda nos é acenada como possível, a material. Impedidas de escolher quaisquer outras coisas, pelo menos sempre podemos escolher ser o mais ricas possível — ou trabalhar até morrer nessa tentativa.
[*“O livro-arbítrio só foi inventado para que possamos ser punidos, para que possamos nos sentir culpados”, diz Nietszche em Crepúsculos dos ídolos (1888), na seção “Os quatro grandes erros”.]
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A importância do pau-de-selfie
Em junho de 2013, enquanto o Brasil ardia em protestos, passei uma semana no Inhotim, um parque-museu perto de Belo Horizonte. Algumas das interações humanas mais interessantes que travei começaram quando alguém me pediu para tirar uma foto sua ou de seu grupo. Três anos depois, em abril de 2016, enquanto o Brasil novamente ardia em protestos nas ruas, dessa vez pelo impeachment de Dilma, passei outra semana no Inhotim. Entre as duas visitas, em 2014, a revista norte-americana Time elegeu o pau-de-selfie como uma das invenções mais importantes do ano. Deve ser mesmo, pois em 2016, ele estava por todos os lados e, de fato, mudou tudo: ninguém mais me pedir para tirar fotos.
Por que alguém compraria um pau-de-selfie? Mesmo sem entrar no mérito de nossa relação cada vez mais compulsiva e cumulativa com a fotografia, me parece que comprar um pau-de-selfie tem as seguintes três desvantagens:
Desvantagem nº1: Você gasta dinheiro, se descapitaliza e fica um pouco mais longe de conseguir mandar seu emprego à merda. (Falei sobre isso na Prisão Trabalho.)
Desvantagem nº2: Você adquire um novo objeto, produzido com matérias-primas que tiveram que ser mineiradas, escavadas, beneficiadas, transformadas, transportadas; um novo objeto que teve que ser desenhado, moldado, pintado, polido, empacotado, promovido, vendido; um novo objeto que tem massa, volume e profundidade, e que, por isso, agora precisa ser carregado, guardado, estocado, espanado; um novo objeto que terá que ser transportado em sua próxima viagem ou em sua próxima mudança de casa, colocando mais pressão em você para comprar malas maiores, carros maiores, casas maiores. (Mais sobre isso abaixo.)
A primeira desvantagem afeta seus planos futuros e sua potencial independência financeira. A segunda desvantagem afeta a sobrevivência de todas nós, tentando manter a cabeça para fora d'água em um planeta de recursos finitos e nível do mar crescente. Ainda assim, a terceira desvantagem talvez seja a pior:
Desvantagem nº3: Você agora precisa interagir com as outras pessoas menos ainda.
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Das diferentes maneiras de trocar um pneu
Em uma conversa sobre autonomia e autossuficiência, estávamos listando algumas das habilidades básicas que toda pessoa autônoma e autossuficiente deveria ter. Um dos homens mencionou trocar pneu e criticou as mulheres de modo geral por não saberem fazer uma coisa tão simples e tão necessária. Em resposta, uma das mulheres do grupo perguntou:
— E você, qual é a sua técnica de trocar pneu?
O moço contou seu passo-a-passo: ligar pisca-alerta, parar o carro, colocar triângulo, etc. Depois que terminou, ela quis confirmar:
— E o resultado final desse seu método é ter o pneu trocado, certo?
— Certo.
— Muito bem. Você sabe trocar pneu. Seu método funciona. Parabéns. Eu só queria dizer que eu também sei trocar pneu e que o meu método, apesar de um pouco diferente, também funciona: o resultado final é rigorosamente o mesmo. Eu saio e faço sinal para os carros que estão passando (de preferência, levando famílias ou casais), até que um deles pára, salta um homem, a gente conversa por alguns minutos e, voalá, o pneu é trocado.
—Isso não é ser nem autônoma nem autossuficiente, oras. Você está literalmente dependendo de outra pessoa!
— Essa é a questão. Você também. Não tem como não depender de outras pessoas. Você depende das pessoas que tiveram a ideia de colocar o estepe no porta-malas; das pessoas que conservam as estradas; das pessoas que pagam os impostos que vão para a conservação das estradas; das pessoas que inventaram a aritmética e a roda. Para trocar um pneu é preciso antes criar o universo.* Seria impossível enumerar todas as pessoas de quem você depende para poder, sozinho, do alto da sua máscula autossuficiência, trocar um pneu por conta própria. A única diferença entre o seu método e o meu é que uma das pessoas de quem eu dependo está ali, fisicamente presente, trocando o meu pneu.
[*A primeira frase do primeiro episódio da série Cosmos (1980), escrita por Carl Sagan (1934-1996), Steven Soter e Ann Druyan, é “Para fazer uma torta de maçã do zero, é preciso antes criar o universo”. Cito essa frase na primeira prática de atenção, "Sustentar uma gratidão permanente", do meu livro Atenção.]
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A hiper-especialização da autossuficiência
Não faz muito tempo (geologicamente falando), éramos de fato muito mais autossuficientes: tínhamos que construir nossas próprias moradias, costurar nossas próprias roupas, fabricar nosso próprio sabão. Aí, pouco a pouco, a pessoa que fazia o melhor sabão começou a fazer mais e mais sabão, em vez de ficar batendo testa tentando costurar suas próprias roupas e furando o dedo. Por outro lado, a pessoa que costurava as melhores roupas adorou não precisar mais fazer sabão, porque ninguém merece aquele cheiro de cinza e gordura empesteando a casa. Já no mundo de hoje, sabemos fazer cada vez menos coisas (existem profissões que se resumem a poucos gestos mecânicos) e, em troca delas, recebemos um símbolo quantitativo convencionado, de valor intrínseco zero, mas que pode ser trocado pelos produtos e serviços criados e executados por outras pessoas tão hiper-especializadas quanto nós. Ironicamente, apesar de não conseguirmos prover por nós mesmas quase nenhuma de nossas necessidades mais básicas, nos consideramos pessoas muito independentes e muito autossuficientes... justamente por usarmos dinheiro para resolver nossas muitas incapacidades.
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Viver em sociedade é mais barato
Digamos que eu trabalho muitas horas por dia, chego em casa sempre a ponto de exaustão, mal tenho tempo de manter as velhas amizades (quem dirá fazer novas!), não conheço nenhuma das minhas vizinhas, mas recebo muitos milhares de reais por mês em troca de toda minha energia vital. Digamos então que preciso furar a parede para instalar uma estante. Meu estilo de vida me deixou em uma posição tão vulnerável e indefesa (não tenho habilidades, não tenho tempo, não tenho energia) que minha única ferramenta para resolver qualquer problema é jogar dinheiro nele até que desapareça debaixo de um montinho de notas de cem reais.
Por outro lado, digamos que eu trabalho menos e, por isso, tenho mais energia e mais tempo para aprender novas habilidades e cultivar novos relacionamentos. Eu saberia, por exemplo, que meu vizinho do 101 é um coronel da reserva, cheio de orgulho de sua caixa de ferramentas e cheio de carência depois da morte da esposa, que ficaria feliz de emprestar sua furadeira e, mais ainda, de vir ele mesmo instalar a estante para mim, em troca de um pouco de conexão humana ("e esse novo síndico, hein?"), de uma conversa sobre interesses compartilhados ("e essa Batalha do Riachuelo, hein?") ou mesmo de uma simples ajuda retribuída ("e eu precisando tanto de uma carona pro aeroporto amanhã..."). Ou seja, eu até ganharia menos dinheiro, mas, participando mais ativamente da minha comunidade imediata, também precisaria de menos dinheiro.
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Qual é o preço do dinheiro?*
O papel desagregador do dinheiro sobre as comunidades não é um defeito de percurso, é uma característica inerente do sistema: pode-se argumentar que o dinheiro foi inventado exatamente para isso.
A dívida teria surgido antes do dinheiro: você presenteava seu cunhado com três sacas de milho e ele te presenteava com vinte litros de leite; ele te ajudava a forrar seu telhado e você o ajudava a limpar seu terreno. O que vale mais? Sem dinheiro para transformar essas trocas em unidades simbólicas convencionadas, era impossível saber. (Justamente porque não dá para somar maçãs com laranjas!) Em comunidades pequenas, onde todo mundo se conhecia, essa cadeia infindável de dívidas e obrigações, favores e retribuições, era uma das mais importantes colas que dava coesão e unidade ao grupo.
Uma das piores coisas que uma pessoa poderia fazer seria retribuir um presente de dez ovos... com exatamente dez ovos. Porque dar um pouco menos significaria continuar devedor, dar um pouco mais significaria passar a ser credor, mas dar exatamente o mesmo significa fechar a conta, encerrar o negócio, cortar a conexão. Você não quer mais nada com aquela pessoa. Adeus.
Naturalmente, é essa uma das principais características do dinheiro: ele nos permite forrar o telhado e limpar o terreno, trocar o pneu e furar a parede, sem precisar pedir nada para ninguém, sem precisar cultivar nenhum relacionamento, sem precisar dever nenhum favor, sem precisar criar nenhuma conexão. Alguém cobra cem reais pelo serviço, pagamos exatamente cem reais pelo serviço e pronto. A situação foi resolvida sem que precisássemos aprender nenhum nome, demonstrar nenhum interesse, ter nenhum trabalho — a não ser, claro, o trabalho de vender nossa energia vital e os melhores anos de nossas vidas para empregadores e empregadoras que nos pagam nossos salários para também não precisar aprender nossos nomes.
Qual é o preço que pagamos por tamanha precisão em determinar os preços que pagamos? Qual é o preço do dinheiro?
[*A subseção “Qual é o preço do dinheiro?” depende de David Graeber, em seu sensacional Dívida: os primeiros cinco mil anos (2011), que ficou anos esgotado e acabou de sair em nova edição pela Zahar. Não posso recomendar nenhuma leitura mais enfaticamente.]
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Por uma economia mais comunitária*
Torna-se necessário criarmos comunidades mais fortes, mais integradas, mais resilientes, baseadas em uma interdependência mútua que seria um dos elementos mais agregadores de qualquer grupo social. Os exemplos são muitos: antes dos tratores, havia muitas tarefas agrícolas que eram realizadas em conjunto por toda a comunidade: hoje na fazenda de Fulano, amanhã na de Sicrana, todas as pessoas juntas, em mutirão. Com os tratores, surge a possibilidade de cada fazenda realizar internamente tudo o que precisava. Vizinhas que antes passavam boa parte do ano trabalhando lado a lado agora mal se veem.
Para cada pessoa recém-adulta, depois de tantos anos tão dependente, é sempre bom ser (ou, na medida do possível, se sentir) autossuficiente. Mas, depois de alguns anos usufruindo de tanta (falsa) autossuficiência, também é bom reconhecermos que vivemos sim em comunidade. Depender de outras pessoas, de nossas vizinhas e de nossas amigas, até mesmo de estranhos em um parque para tirarem nossas fotos, não é necessariamente um problema para ser resolvido. Pelo contrário, depender das outras pessoas pode ser até mesmo desejável.
Não é o caso de cairmos em uma nostalgia ludita por um pretenso Jardim do Éden onde as pessoas faziam tudo no braço e, por isso mesmo, paradoxalmente, eram ó-mas-tão-felizes. Naturalmente, se fossem tão felizes, não teriam corrido para comprar tratores e, assim, não precisar mais depender de mutirões comunitários. (Depender de outras pessoas é sempre muito, muito difícil.) A questão é outra: o que foi perdido durante esse processo?
Diante do inevitável colapso material de nossa civilização, como criar economias mais comunitárias e mais sustentáveis, menos dependentes de um crescimento infinito que nosso pobre planeta finito já não consegue mais dar conta? A Prisão Crescimentismo poderia ter sido uma prisão separada. Mas como ela é inseparável dessa nossa ânsia capitalista por autossuficiência material, essa discussão está aqui, mais abaixo.
[*A subseção “Por uma economia mais comunitária” depende de Bill Mckibben, em seu Deep economy: the wealth of communities and the durable future (2007). A história dos tratores, citada por Mckibben, vem de Changing works: visions of a lost agriculture, publicado em 2001 por Douglas Harper, uma história oral das mudanças acontecidas na agricultura do estado de Nova Iorque.]
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Prisão Crescimentismo
Se você acredita em crescimento infinito em um planeta finito, você deve ser uma pessoa louca. Ou uma economista.
Passamos milênios devotando todas nossas energias para a simples tarefa de sobreviver, arranjar comida, nos proteger dos elementos. Então, com nossa engenhosidade, conseguir domar esses inimigos e tivemos, em algumas partes do mundo, uns duzentos anos de folga. Foram boas férias: tirando um holocausto aqui e outro genocídio ali, inventamos os direitos humanos, abolimos a escravidão, fundamos a ONU. Mas acabou. Temos que voltar ao trabalho, ao mesmo trabalho de sempre: precisamos desviar nossas energias criativas de inventar novos apps para inventar maneiras de não morrer.
O que chamo de "as prisões" são aqueles conceitos tão hegemônicos, tão poderosos, tão unânimes, que se impõem a nós como únicas opções e nos cegam à possíveis alternativas. A monogamia é uma prisão não porque ela seja ruim ou desaconselhável, feia, chata e boba, mas porque ela se apresenta como sendo a única opção concebível de organizar nossos relacionamentos, consignando todas as outras alternativas à imoralidade, à falta de sentimentos, ao fracasso: "relacionamento aberto não funciona, é coisa de quem não ama de verdade". A felicidade é uma prisão não porque seja ruim ou desaconselhável, feia, chata e boba, mas porque se apresenta como sendo a única opção de fim último para a qual aspirarmos, consignando todas as outras alternativas à condição de suas coadjuvantes e dependentes: "não é que o seu fim último seja ser virtuosa, mas você quer ser virtuosa para ser feliz, logo o seu fim último é ser feliz". Etc.
Dentro dessa definição, capitalismo e comunismo, enquanto sistemas econômicos, não podem ser considerados "prisões", pois mesmo a mais ferrenha defensora de um reconhecia a existência e os argumentos do outro, embora negasse sua validade. Já o Crescimento claramente é uma prisão: nossas líderes, à esquerda e à direita, em todo mundo, discutem como crescer melhor, como crescer mais sustentavelmente, como retomar o crescimento, mas ninguém questiona o crescimento, ninguém vê nenhuma alternativa a ele. Como um sapo de charuto na boca, não temos opção a não ser inchar até explodirmos.
Lula contra Bolsonaro, capitalismo contra comunismo, Estados Unidos e China, são todas danças das cadeiras no convés do Titanic. Quando nosso maior risco de colapso civilizacional era o nuclear, pelo menos, havia um consenso: as líderes soviéticas e norte-americanas tinham, como uma de suas prioridades, evitar um holocausto atômico. Agora, nem isso. No país mais poderoso do mundo, de quem dependemos para liderar esse processo, metade do establishment político nega peremptoriamente o risco que estamos correndo.
As cientistas já soaram o alerta desde a década de 1970: o tempo está acabando. Segundo algumas, já acabou. Mas suas descobertas vão contra fundamentos muito arraigados da economia política e da política econômica: dogmas difíceis de questionar, preconceitos difíceis de desconstruir. Deveríamos estar ativamente resolvendo o problema, mas a Prisão Crescimentismo é tão forte, tão envolvente, que nem conseguimos alcançar um consenso sobre a existência do problema, muito menos sobre qual seria a melhor solução. Falta planejamento econômico, falta liderança política.
Antes, nosso problema de sobrevivência era individual. Depois, passou a ser a sobrevivência de nossos pequenos grupos nômades: clãs, famílias, tribos. Mais tarde, nos assentamos para plantar batatas e começamos a nos preocupar com a sobrevivência de nossos grupos cada vez maiores: cidades, estados, nações. Hoje, gigantescos grupos de pessoas que não se conhecem, nem poderiam se conhecer, conseguem se unir sob um rótulo nacional para lutar por sua sobrevivência contra outros grupos unidos sob outros rótulos nacionais. Hoje, nosso desafio é dar o último passo: encontrar uma solução planetária para sobrevivermos juntas. Infelizmente, até hoje, nossa espécie nunca conseguiu alcançar nenhum consenso. Talvez não seja possível. Talvez ainda estejamos discutindo o aquecimento global quando as águas nos engolirem.
A luta não é para salvar nem o planeta nem a espécie. O planeta não corre nenhum perigo: pelo contrário, estará muito melhor sem nós. Nossa espécie não corre nenhum perigo: nos mais apocalípticos dos cenários, sempre vão haver pequenos grupos isolados de pessoas humanas se virando para sobreviver nos bolsões afastados do mundo. Nossos genes egoístas vão dar seu jeito de sobreviver e, em algumas centenas de milhares de anos, talvez evoluam em novas e diferentes espécies. A luta é para salvar nossa civilização: a língua portuguesa e o funk, a Mona Lisa e o jogo de damas, a Crítica da razão pura e Seinfeld, o YouTube e Shakespeare.
Na verdade, nossa civilização já está condenada: ela é, literalmente e matematicamente, insustentável — uma palavra forte cuja força se perdeu pelo excesso de uso. Se é insustentável que nossa civilização continue existindo, então, nossas escolhas são duas. Ou seguimos crescendo até o colapso e, então, cada sociedade se transformará em uma versão diferente de Mad Max. Ou tomamos controle desse processo, freamos o consumo, buscamos alternativas para o crescimento, contraímos nossas economias de maneira ordenada e planejada, e vamos criar, juntas, a próxima, novíssima, possível civilização humana.
A luta é para evitar que nossas bisnetas, vivendo em cavernas e se alimentando de raízes, limpem o cu com a última página do último exemplar de Dom Casmurro.
[*Sobre decrescimentismo, recomendo Pequeno tratado do decrescimento sereno (2007), de Serge Latouche; Democracia econômica. Alternativas de gestão social (2013), de Ladislau Dowbor; Deep economy: the wealth of communities and the durable future (2007) de Bill Mckibben; Prosperity without growth: economics for a finite planet (2009), de Tim Jackson; Beyond growth. The economics of sustainable development (1996), de Herman E. Daly. O grande clássico da área é Small is beautiful. Economics as if people mattered (1973), de E. F. Schumacher. O pensador atual inescapável é Nicholas Georgescu-Roegen, seja em suas próprias obras, como a coletânea O decrescimento. Entropia. Ecologia. Economia (2008), ou em obras que expliquem suas ideias, como A natureza como limite da economia. A contribuição de Nicholas Georgescu-Roegen (2010), de Andrei Cechin. Por fim, pode ser interessante ler sobre esses mesmos assuntos, mas a partir de uma perspectiva budista. Recomendo Buddhist economics. An enlightened approach to the dismal science (2017), de Clair Brown; Buddhist economics: a middle way for the market place (1996), de Prayudh Payutto, e toda a obra de David R. Loy, especialmente A Buddhist history of the West: studies in lack (2002), The great awakening: a Buddhist social theory (2003), Money, sex, war, karma: notes for a Buddhist revolution (2008) e A new Buddhist path: enlightenment, evolution, and ethics in the modern world (2015).]
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Quais bens escolhemos valorizar?
Qual é o valor das coisas-sem-valor que destruímos para produzir as coisas-que-valorizamos? Será que vale a pena?
Toda produção é uma destruição.* Ao produzir um automóvel, quilos de metal, vidro, borracha, etc, deixam de existir, mas um novo objeto, o automóvel, passa a existir: vale a pena produzir um automóvel porque seu valor final (não apenas o preço) é visto como superior ao valor final da soma da matéria-prima que o compõe.
Mas não é só essa matéria que é destruída (ou seja, utilizada) para a produção do automóvel: o processo também utiliza capital natural, ou seja, nosso “estoque”, renovável ou não-renovável, de água, ar, florestas, minerais.** Em economia, externalidade é quando uma ação minha (digamos, fabricar um automóvel) gera efeitos externos que serão sentidos por terceiros que não participaram da minha ação (digamos, pessoas ficarem sem água potável porque a fabricação do meu automóvel poluiu um rio). Então, se utilizo uma tonelada de aço para produzir um automóvel, uma tonelada de aço foi destruída e um automóvel foi produzido. Assim, simplificando grosseiramente e fingindo que nada mais foi utilizado, se a tonelada de aço custava mil reais e o automóvel, trinta mil, gerei um valor de R$29 mil.
Mas digamos que, para fabricar um automóvel, eu preciso poluir um rio. Como um rio não tem valor, eu não gastei nada, fabriquei um automóvel que custa trinta mil e gerei um valor de trinta mil.
Algumas economistas gostam de dizer que toda a ciência econômica pode ser resumida a uma única frase: “incentivos funcionam”. Hoje, de acordo com a maneira que escolhemos organizar nossa sociedade, a indústria tem todo o incentivo do mundo para fabricar um automóvel utilizando o mínimo possível de aço, mas não tem nenhum incentivo para utilizar o mínimo possível de capital natural. Quando escolhemos valorizar o aço mas não um rio, o que estamos incentivando?***
Como um exercício conceitual, um grupo de economistas estimou que o valor total do capital natural do planeta estaria, por baixo, em torno de 54 trilhões de dólares — em comparação, a economia mundial movimenta anualmente cerca de 18 trilhões de dólares.****
De acordo com outros cálculos, se incorporássemos ao custo da gasolina todo o dano que a extração e o refino de petróleo fazem ao meio ambiente, o preço final do litro seria quatro vezes maior.
Naturalmente, esses números são discutíveis e outro grupo talvez encontrasse estimativas muito diferentes: o principal objetivo do exercício é chamar atenção para a necessidade de internalizarmos as externalidades.
Se fossem levados em conta os custos de utilização do capital natural do nosso planeta, as principais indústrias do mundo não seriam lucrativas: o custo real da gasolina (e de quase tudo mais que fabricamos) não apenas é muito mais alto do que pagamos hoje, mas também é muito mais alto do que podemos pagar.*****
Perceberíamos, talvez, que o gigantesco e permanente custo real de produzir certos objetos (quem sabe, a maioria) simplesmente não compensa o pequeno e efêmero benefício que tiramos deles.******
[*Quem diz que “toda produção é destruição” é o monge budista tailandês Prayudh Payutto, em Buddhist economics: a middle way for the market place, cap. 3.]
[**A relação entre os conceitos de capital natural, manufaturado, cultural e cultivado pode ser encontrada no artigo “Capital natural crítico: a operacionalização de um conceito” (2005) de Valdir Frigo Denardin e Mayra Taiza Sulzbach.]
[***Quem afirma que as principais indústrias do mundo não seriam lucrativas se fosse levado em conta o seu uso de capital natural é o relatório “Natural capital at risk: the top 100 externalities of business”, conduzido em 2013, pela empresa Trucost para o programa TEEB (The economics of ecosystems and biodiversity) da ONU. Vale a pena ressaltar: de acordo com o estudo, a segunda atividade econômica mais destrutiva para o capital natural mundial é criação de gado na América do Sul (A primeira são as usinas termoelétricas a carvão chinesas.)]
[****A estimativa do valor total do capital natural do planeta está no artigo “The value of the world’s ecosystem services and natural capital” (1997), escrito por Robert Costanza e outros.]
[*****A estimativa do custo real do litro da gasolina está em Deep economy: economics as if the world mattered (2007), de Bill Mckibben, cap. 1, onde o autor sugere que a estimativa veio de Costanza. De qualquer modo, o que importa para o argumento é que o custo real da gasolina é mais alto do que o preço que pagamos por ela.]
[******Outros artigos em português sobre capital natural: “Capital natural na perspectiva da economia” (2002), de Valdir Frigo Denardin e Mayra Taiza Sulzbach; “Valorando o capital natural e os serviços ecológicos de unidades de conservação” (2004), de Irina Mikhailova e Francisco Antônio Rodrigues Barbosa; “Capital natural, serviços ecossistêmicos e sistema econômico: rumo a uma ‘economia dos ecossistemas'” (2009), de Daniel Caixeta Andrade e Ademar Ribeiro Romeiro.]
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Quais atividades escolhemos valorizar?
Ao escolher valorizar algumas atividades e não outras, a sociedade está literalmente nos dizendo quais atividades têm valor e quais não tem valor algum.
O produto interno bruto (PIB) é a soma dos bens e serviços trocados em uma sociedade. Se as pessoas dessa sociedade escolhem gastar seu dinheiro com esses bens e serviços é porque consideram que eles têm valor. Logo, são bons. Logo, quanto mais deles, melhor. Daí ser considerado autoevidentemente positivo o PIB ser maior do que menor. Na teoria, de fato, o PIB não faz nenhum julgamento de valor, nunca diz que essa atividade é desejável e aquela, indesejável: ele apenas soma tudo e apresenta o valor final. Na prática, entretanto, uma série de decisões prévias sugere que o julgamento de valor já foi feito:
1. Quando escolhemos quantificar e valorizar algumas atividades e não outras (fabricar um revólver tem valor econômico; lavar a louça depois que minha mãe fez jantar, não.)
2. Quando escolhemos levar em conta no PIB essas atividades valoráveis e quantificáveis, e não outras (fabricar um revólver aumenta o PIB; lavar a louça depois que minha mãe fez jantar, não.)
3. Quando escolhemos calcular esses valores monetários como equivalentes (fabricar um revólver de mil reais ou fabricar uma bicicleta de mil reais ambos aumentam o PIB igualmente em mil reais cada.)
4. Quando escolhemos utilizar o PIB como a medida final mais importante para comparar economias. (o Brasil é o 9º país do mundo em PIB, mas é o 1º em homicídios, o 75º em desenvolvimento humano — IDH, e 120º em distribuição de renda — Gini).
Nós escolhemos nos organizar de acordo com um sistema que valoriza produzir armas, mas não cuidar de graça dos filhos da vizinha; que valoriza comprar um DVD de desenho animado de princesa, mas não contar para minha filha uma história que minha avó me contava; que valoriza tomar antidepressivos, mas não meditar no parque; que valoriza contratar uma empregada, mas não limpar a privada eu mesma; que valoriza comprar um novo fogão, mas não ouvir meu avô falando sobre a sua época enquanto conserta meu fogão antigo.
A decisão de organizar dessa maneira nossa sociedade, nossas trocas de serviços e nossas atividades produtivas, é uma escolha moral e cultural, que favorece algumas pessoas e desfavorece outras, e que traz consigo infinitas e imprevisíveis consequências éticas. Só o fato de nascermos em uma sociedade que tão obviamente escolhe valorizar algumas atividades e não outras já nos informa muito: não apenas sobre a escala de valores dessa sociedade, mas também, mais importante, sobre a escala de valores que essa sociedade espera que nós adotemos.*
[*A discussão sobre o PIB é um dos temas principais de Prosperity without growth: economics for a finite planet (2009), de Tim Jackson, especialmente caps. 1, 3 e 8.]
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A quem escolhemos responsabilizar?
O ser humano é naturalmente moral: ninguém quer ser a vilã do filme que está protagonizando em sua própria cabeça. Para que nossos incômodos sentimentos morais não atrapalhem nossa busca pelo lucro, para chafurdar na ganância e nunca sentir culpa, a melhor solução é diluir nossa responsabilidade.
É mais seguro ter um ataque cardíaco diante de uma única pessoa do que no meio de uma multidão. Uma pessoa sozinha diante de um cardíaco necessitado se sentirá na obrigação de ajudar, pois se não fizer nada, não haverá fuga possível de si mesma: ela sempre será a pessoa que deixou outra morrer. A responsabilidade é dela. Já no meio de uma multidão, a responsabilidade se dilui: cada uma daquelas pessoas pensa que as outras também poderiam ter ajudado e essa justificativa serve para aliviar a culpa. (na pior das hipóteses, sou tão ruim quanto todas elas.) Pior, como sempre julgamos as outras pessoas com muito mais severidade do que a nós mesmas, enquanto passamos por cima do cardíaco agonizante ainda nos daremos ao direito de nos indignar: “Ok, eu estava atrasada para a missa das sete, não podia mesmo ajudar, mas caramba, como é que pode nenhuma daquelas outras pessoas ter ajudado?! É o fim do mundo! Acabou a empatia!”*
Durante alguns anos, fui empresário. Em uma empresa pequena, tudo é pessoal: se minha funcionária me pede duzentos reais de aumento e eu nego, é porque quero esses duzentos reais para mim e para o meu sócio — nem que seja para que possamos escolher reinvestir esse dinheiro na empresa. Na prática, o meu “não” está dizendo:
— Eu te recuso esses duzentos reais (que ambos sabemos que representam 20% da sua renda e que fariam uma diferença significativa no seu conforto material e na sua qualidade de vida) porque quero mais cem reais no meu bolso (que você nem tem como saber quantos por cento da minha renda representam porque eu obviamente não compartilho essa informação!) mas que ambos sabemos que não farão nenhuma diferença no meu conforto material ou qualidade de vida.
Mas esse é um “não” muito difícil de dizer, justamente porque a minha funcionária e eu sabemos que tenho o poder de dizer “sim”. Então, eu, cobiçando aqueles cem reais (apesar de não me significarem nada), ansioso para que o malvado da história não fosse eu (naturalmente, a ansiedade é por saber que era) e incapaz de reconhecer (até para mim mesmo) a pequenez do que estava fazendo, só me restava passar adiante a responsabilidade pela mesquinharia:
— Olha, por mim, eu te daria esse aumento, eu juro. Aliás, se dependesse da minha vontade, você ganharia cinco mil! Eu te daria a minha última camisa! Palavra! Mas, infelizmente, ó, não posso. Você sabe que não sou o único sócio, né? Imagina, deus me livre!, se te dou esses duzentos! É capaz do meu sócio malvado brigar comigo, dar na minha cara, desfazer a sociedade, queimar minha vila, estuprar minha irmã, matar meu cachorro, o horror, o horror! Você entende, né?
Meu problema, enquanto empresário, poderia ter sido articulado da seguinte maneira: “Como fazer para que meus incômodos sentimentos morais não atrapalhassem minha busca pelo maior lucro?” E a única solução que me permitia, ao mesmo tempo, 1) manter intacta minha autoimagem de pessoa boa e generosa, e 2) embolsar os cem reais; era diluir a responsabilidade.
As empresas, ou seja, as pessoas jurídicas, foram inventadas (entre outras coisas) para limitar a responsabilidade das pessoas físicas que as compõem. Fala-se muito em empresas “Ltda”, abreviação de “limitada”, mas raramente menciona-se o substantivo ao qual o adjetivo “limitada” se refere: quem é limitada não é a empresa em si — pois, em princípio, uma empresa limitada não tem limites de tamanho, faturamento, número de funcionárias, etc — mas sim a responsabilidade das sócias. Seu nome técnico no Brasil, até o código civil de 2002, era “sociedade por quotas com responsabilidade limitada”.
O que significa exatamente falar em “responsabilidade era limitada”? Antes da responsabilidade ser limitada, se eu tinha uma empresa pessoa jurídica, e a empresa falisse deixando dívidas de, digamos, um milhão, eu respondia por essas dívidas com meu patrimônio pessoa física: tinha que vender tudo até pagar todos os credores ou até ficar sem nada. Naturalmente, esse risco limitava o número de pessoas capazes ou dispostas a abrir empresas.
O surgimento das empresas limitadas, ao diminuir o risco dos empresários, ajudou a turbinar o capitalismo que já vinha nascendo. Mas ainda faltava alguma coisa. Pois apesar de as sócias terem responsabilidade financeira limitada, elas ainda têm responsabilidade moral ilimitada: literalmente assinam embaixo dos atos de sua pessoa jurídica. Dou um exemplo. Há muitos anos, minha vizinha de porta era dona de uma lanchonete na esquina da nossa rua: o prédio inteiro se encontrava lá, do cafezinho matinal à cervejinha noturna, passando pelo almoço e pelo jantar. Um dia, bateu fiscalização: as violações de higiene eram tão criminosas que a vigilância sanitária interditou o restaurante. Nunca mais encontrei a vizinha: segundo o porteiro, ela só voltou ao prédio mais duas vezes, sempre de madrugada, e depois pediu para a mãe fazer sua mudança. Foi uma decisão sensata: algumas moradoras mais exaltadas planejavam agredi-la no elevador. E eu fico me lembrando: ela me servia aquele misto quente, com queijo podre e presunto vencido, sorrindo e olhando no meu olho. Claro que minha raiva era pessoal.
Para resolver a “pessoalidade” das sociedades limitadas, a solução foi a impessoalidade das sociedades anônimas, de capital aberto, cuja própria constituição justifica e possibilita, estimula e potencializa uma conduta corporativa amoral. Nesse tipo de empresa, 1) As pessoas executando as ações operacionais diárias (as executivas) não estão efetivamente no controle, libertando-se assim da responsabilidade moral pelas consequências dessas ações; e 2) As pessoas efetivamente no controle (as acionistas) estão afastadas das decisões operacionais diárias, adquirindo assim uma preciosa negação plausível sobre as ações cometidas em nome de seus dividendos. Em outras palavras, o que os olhos não veem, o coração não sente — e vice-versa.
Para a pessoa executiva, o único imperativo moral é o lucro das acionistas e, para defendê-lo, passariam por cima do cardíaco agonizante sem nenhuma dor na consciência. E, caso uma de suas vítimas lhe interpelasse, a executiva ainda se justificaria, cheia de sinceridade e com o coração sangrando:
— Se fosse por mim, eu não teria envenenado o rio que abastece de água a sua aldeia. Juro que não. Sou uma boa cristã, jamais faria isso. Mas, sabe como é, a multa por poluir o rio é oitenta vezes menor do que o custo de construir uma central de tratamento de água e eu tenho uma obrigação moral de fazer todo o possível, dentro da lei, para dar o máximo de retorno ao investimento das acionistas. Eu sei que você está sem água, sinto muito, mas veja o lado bom: graças a essa economia que fizemos, nossas trinta mil acionistas ganharam um bônus de quinhentos reais a mais esse ano!
E se o morador da aldeia sem água fosse procurar uma dessas trinta mil acionistas, ela provavelmente reagiria horrorizada, alegaria sincera ignorância e colocaria toda a culpa nas executivas sem coração… …mas continuaria embolsando os quinhentos reais.
Parece um exemplo absurdo e exagerado, mas não é. Henry Ford, longe de ser um santo altruísta, quando tentou abaixar os preços de seus automóveis para vender mais, foi processado por seus próprios acionistas: os lucros pertenceriam a eles e Ford não teria direito de “transferir” parte desse dinheiro aos consumidores na forma de descontos. Ford perdeu e o precedente estabelecido por sua derrota pauta a nossa vida até hoje: os executivos de uma empresa têm o dever legal de colocar os interesses dos acionistas acima de quaisquer outras considerações e, mais importante, não têm autoridade legal de servir quaisquer outros interesses, nem dos consumidores e nem mesmo do planeta.**
O capitalismo é uma ideologia de difusão de responsabilidade. Sempre houve empresas e negócios, mercados e mercadores, compra e venda, importação e exportação, mas, se existe um único fato que possibilita o surgimento do capitalismo como nós o conhecemos, foi a criação das empresas de responsabilidade limitada e, especialmente, das sociedades anônimas de capital aberto. Não por acaso, as primeiras foram as companhias inglesa e holandesa das Índias Ocidentais, criadas especificamente para conquistar e rapinar, matar e roubar, em nome de civilizados lordes e liberais mercadores, totalmente inocentes do sangue derramado em nome de seus dividendos. A revolução capitalista — que começa com a criação das Companhias das Índias (sécs. XVI e XVII) e se consolida com a revolução industrial (sécs. XVIII e XIX) — tornou socialmente aceitáveis práticas que, até a idade média, transformariam qualquer pessoa em pária social. O debate é se já podemos falar de capitalismo no começo desse processo, ou só quando ele está consolidado, ou em algum ponto do meio do caminho.***
A nova ideologia, ao mesmo tempo em que nos estimula a chafurdar em alguns de nossos instintos mais baixos, na avareza e na mesquinharia, também nos oferece a perfeita justificativa para dormirmos tranquilas à noite. Afinal de contas, a “mão invisível”**** cuidará para que a “destruição criativa”***** gerada por nossa cobiça e competitividade traga progresso material para todas as pessoas. (Em outras palavras, não é que sou um canalha ganancioso e insaciável: estou aquecendo a economia e gerando valor!)
[*Na Prisão Respeito, falei mais sobre esse bem-documentado fenômeno da difusão da responsabilidade. Os conceitos de “difusão de responsabilidade” e “apatia do espectador” foram desenvolvidos pelos psicólogos norte-americanos John Darley e Bibb Latané, no artigo “Bystander intervention in emergencies: diffusion of responsibility” (1968) enquanto estudavam o caso de Kitty Genovese, uma nova iorquina assassinada em 1964, aparentemente diante de dezenas de testemunhas — há controvérsias.]
[**A História de como foram inventadas as corporações limitadas e anônimas está em The corporation. The pathological pursuit of profit and power (2004), de Joel Bakan, especialmente os dois primeiros capítulos.]
[***A comparação entre as corporações atuais e das Companhias das Índias está não só no livro de Bakan, citado assim, mas também em Dívida: os primeiros 5.000 anos (2011), cap. 5, do antropólogo norte-americano David Graeber, no capítulo 11.]
[****A expressão “mão invisível” foi utilizada pela primeira vez na Teoria dos sentimentos morais (1759), de Adam Smith, e depois desenvolvida (mas não muito) em A riqueza das nações (1776). Adam Smith se considerava, antes de tudo, um filósofo moral e é nessa chave que A riqueza das nações deve ser lido, um livro muito mais interessante e matizado do que lhe dão crédito tanto entusiastas quanto detratores.]
[*****O conceito de “destruição criativa” foi elaborado pelo economista austríaco Joseph Schumpeter em 1942.]
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Nosso futuro por um iPhone
Como defendem quase todas as economistas, incentivos funcionam. De fato, quando consideramos os incentivos econômicos que nossa sociedade oferece, a atual situação do mundo deixa de ser surpreendente e se revela inevitável. Portanto:
Ao escolher não valorizar nosso capital natural (água, ar, florestas, minerais, etc);
Ao escolher valorizar os bens produzidos a partir desse capital natural;
Ao escolher utilizar o PIB como medida básica de riqueza;
Ao escolher calcular, para fins de PIB, o valor de um objeto manufaturado como um valor positivo;
Ao escolher não calcular, para fins do PIB, o valor do capital natural utilizado na produção desse objeto como um valor negativo;
Ao escolher organizar nossa atividade produtiva com base em empresas constituídas explicitamente para diluir a responsabilidade das pessoas que as compõem;
… era praticamente inevitável que destruiríamos nosso planeta produzindo objetos de consumo.
Existe uma lenda de que as habitantes originárias das Américas teriam trocado seu continente, suas matas e seus rios, por espelhinhos e bugigangas. Não é verdade: essas pessoas foram violentamente conquistadas. Quem está voluntariamente trocando suas matas e seus rios por espelhinhos e bugigangas, seu futuro por um iPhone, somos nós, a humanidade inteira, hoje, agora.
Não existem essas tais “leis econômicas” objetivas e amorais, tão científicas quanto a lei da gravidade ou a teoria da evolução. Existem pessoas, como eu e você, que escolhemos, todos os dias, valorizar algumas coisas em detrimento de outras. A decisão de organizar nossa sociedade de acordo com leis amorais é uma decisão moral. Ao escolher valorizar alguns bens e serviços e não outros, ao escolher responsabilizar algumas pessoas e não outras, ao escolher incentivar algumas atividades e não outras, estamos revelando nossa escala de valores e construindo um mundo à sua imagem e semelhança. Talvez afundemos com ele.
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Conclusões
A Prisão Autossuficiência começa falando de nossas origens evolutivas e termina expandindo o assunto para questões literalmente planetárias. Ambos os temas não existem em separado, pois é a nossa insegurança de macaquinhas gregárias extremamente carentes e conformistas que nos faz produzir tanto e consumir tanto. Mas não buscamos autossuficiência somente no consumo: o cinema, a igreja, nossas avós, tudo nos vende a ilusão de que um dia encontraremos essa outra super-pessoa que vai suprir todas as nossas demandas e que vai nos deixar autossuficientes em termos de sexo e companheirismo, amizade e romance. Está presa na Prisão Monogamia quem acredita nesse conto-do-vigário.
Todas nós, ao longo da infância e adolescência, construímos um grupo de amigos e amigos que, se somente não fizermos nada, serão nossa rede de apoio por toda a nossa vida. Abraçar a Prisão Monogamia, porém, é trocar essa rede de apoio por um único ponto de apoio. Simplesmente não vale a pena. Nós, macaquinhos gregários, não fomos feitos pra isso.
Mas são nossas próprias inseguranças de macaquinhas gregárias, cuidadosamente trabalhadas pelo capitalismo, que nos impulsiona a essa escolha mal-informada. Nada pode ser mais capitalista e individualista do que a família nuclear monogâmica, com pessoas fechadas em grupos cada vez menores, exclusivos, isolados — ou seja, autossuficientes. Falar em não-monogamia é destravar a possibilidade de criarmos novos tipos de relacionamento, inclusive não-sexuais. E não tem como falar de relações românticas ou sexuais, de monogamia ou não monogamia, sem encarar de frente o fato de que, em nossa sociedade misógina, toda relação homem-mulher é sempre assimétrica.
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Série “As Prisões”
Aqui estão os textos já reescritos, revisados e finalizados em 2023:
Monogamia (em breve)
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O Curso das Prisões
Um curso para nos libertar até mesmo da busca pela liberdade. O que está em jogo é nossa vida.
Curso em resumo
Curso de filosofia prática, com ênfase em liberdade pessoal e consciência política: como viver uma vida mais livre e significativa sem virar o rosto ao sofrimento do mundo. // As Prisões: Verdade, Religião, Classe, Patriotismo, Respeito, Trabalho, Autossuficiência, Monogamia, Liberdade, Felicidade, Empatia // Sem leituras, com muita conversa, debate, polêmica. // Um tema por mês, durante onze meses: uma conversa livre, no 1º domingo, para abrir o mês de conversas sobre o tema, e uma aula, na última quarta-feira, para fechar. Até 27 de dezembro de 2023. // Encontros e aulas ao vivo via Zoom; aulas gravadas via Facebook; grupo de discussão no Whatsapp. // R$88 mensais, no Apoia-se, por todos os meus cursos. Compre agora.
O que são As Prisões
As Prisões são as bolas de ferro mentais e emocionais que arrastamos pela vida: as ideias pré-concebidas, as tradições mal explicadas, os costumes sem sentido: Verdade, Religião, Classe, Patriotismo, Respeito, Trabalho, Autossuficiência, Monogamia, Liberdade, Felicidade, Empatia.
O que chamo de As Prisões são sempre prisões cognitivas: armadilhas mentais que construímos para nós mesmas, mentiras gigantescas que nunca questionamos, escolhas hegemônicas que ofuscam possíveis alternativas.
A Monogamia, por exemplo, é uma prisão não porque seja ruim ou desaconselhável em si, mas porque se apresenta como sendo a única opção concebível de organizar nossos relacionamentos, consignando todas as outras alternativas à imoralidade, à falta de sentimentos, ao fracasso: “relacionamento aberto não funciona, é coisa de quem não ama de verdade”.
A Felicidade é uma prisão não porque seja ruim ou desaconselhável em si, mas porque se apresenta como sendo a única opção de fim último para nossas vidas, consignando todas as outras alternativas à condição de suas coadjuvantes e dependentes: “não é que o seu fim último seja ser virtuosa, mas você quer ser virtuosa para ser feliz, logo o seu fim último é ser feliz”.
Quem está “presa” na Prisão Monogamia não é a pessoa que fez a escolha livre e consciente de viver relacionamentos monogâmicos, mas sim aquela que, por ignorar a opção de não fazer isso, por nunca ter percebido a verdadeira gama de diferentes alternativas que lhe estavam abertas, vive relacionamentos monogâmicos por default, como se essa fosse a única possibilidade concebível. Sua prisão (cognitiva) não é viver a Monogamia, mas ignorar a realidade que existe além dela.
Quem está “presa” na Prisão Felicidade não é a pessoa que fez a escolha livre e consciente de colocar sua própria felicidade individual como fim último de sua vida, mas sim aquela que, por ignorar a opção de não fazer isso, por nunca ter percebido a verdadeira gama de diferentes alternativas que lhe estavam abertas, busca sua própria felicidade por default, como se essa fosse a única possibilidade concebível. Sua prisão (cognitiva) não é buscar a Felicidade, mas ignorar a realidade que existe além dela.
Cada uma das Prisões, da Verdade à Empatia, do Trabalho à Felicidade, é sempre, antes de mais nada, uma prisão cognitiva, uma percepção incompleta da realidade. Por trás de todas as Prisões está sempre a mesma inimiga: a ignorância.
Funcionamento
Como toda Prisão é uma verdade tão inquestionável que nos impede de perceber outras alternativas, nossas aulas começam sempre por analisá-la e desconstruí-la, para entender como nos limitam, e podermos então enxergar as alternativas que ela esconde.
Cada mês será dedicado a uma Prisão.
No 1º domingo do mês, às 19h, damos início às discussões com uma conversa livre no Zoom. Não é uma aula expositiva, mas uma sessão de troca e de escutatória. Sem a interlocução de vocês, sem ouvir como essa prisão afetou as suas vidas, eu não teria nem como começar a pensar a aula. Aqui, tudo é prático, nada é teórico. O que está em jogo são nossas vidas.
Ao longo do mês, continuamos conversando sobre essa Prisão em nosso grupo do Whatsapp, trocando histórias e experiências. Para quem quiser, vou compartilhando as leituras que estou fazendo sobre o tema, mas nenhuma leitura é obrigatória, nem necessária para a compreensão da aula.
Na última quarta-feira do mês, às 19h, fechamos as discussões com uma aula, também pelo Zoom. Essa aula será expositiva, mas também teremos bastante espaço para debates e conversas.
Aulas gravadas indefinidamente
A gravação em vídeo das aulas expositivas fica disponível em um grupo fechado do Facebook. (É preciso se inscrever no Facebook para ter acesso ao grupo) Mas, juridicamente falando, como não posso garantir “indefinidamente”, garanto que as aulas estarão acessíveis às compradoras do curso, se não no Facebook em outro lugar, no mínimo até 31 de dezembro de 2027. As conversas livres, por serem mais pessoais, não ficam gravadas: são só para quem vier ao vivo. As aulas gravadas só estarão disponíveis para as mecenas do plano CURSOS enquanto durar o apoio. Você pode cancelar seu plano de mecenato a qualquer momento, mas aí perde acesso aos cursos.
Sem leituras
O Curso As Prisões não é um curso de leituras: nenhuma leitura é obrigatória ou recomendada. É um curso de conversas livres e de trocas de experiências, de escutatória e de debates, de reflexão sobre nossas vidas e sobre como viver.
Para cada Prisão, eu listo uma pequena bibliografia, para que vocês saibam quais livros eu utilizei na preparação da aula e para que possam correr atrás das leituras que mais lhes interessem.
Mas não precisa ler nada para participar das aulas, das conversas, das trocas, das discussões.
Sejam as primeiras leitoras do Livro das Prisões
O Livro das Prisões foi contratado pela Rocco em 2017 e eu ainda não consegui escrever. Um de meus objetivos para esse curso é, com a inestimável ajuda da interlocução de vocês, finalmente terminar o livro. Então, junto com a aula, também pretendo disponibilizar o texto dessa Prisão em sua versão final, já pronta para publicar. Todas as alunas do curso serão citadas nos agradecimentos do livro, pois ele certamente nunca teria sido escrito sem a participação de vocês. Já de antemão, agradeço.
Professor
Alex Castro é formado em História pela UFRJ com mestrado em Letras por Tulane University (Nova Orleans, EUA), onde também ensinou Literatura e Cultura Brasileira. Atualmente, é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ. Tem oito livros publicados, no Brasil e no exterior, entre eles A autobiografia do poeta-escravo (Hedra, 2015), Atenção. (Rocco, 2019) e Mentiras Reunidas (Oficina Raquel, 2023). Escreve para a Folha de São Paulo, Suplemento Pernambuco, Quatro Cinco Um, Rascunho.
Meus votos zen-budistas
Pratico zen budismo há dez anos. Todo dia, pela manhã, refaço meus votos: os quatro votos do Bodisatva e os três votos dos pacificadores zen.
Basicamente, eu me comprometo a ajudar as pessoas a 1) se libertarem, 2) enxergarem as ilusões que as limitam, 3) perceberem a realidade em sua plenitude e, assim, 4) agirem no mundo de acordo com essa percepção. E me proponho a fazer isso a partir de 1) uma posição de não-saber, me abrindo às novas situações sem certezas prévias, 2) estando presente de forma plena a cada interação humana, sem virar o rosto nem à dor nem à alegria, e 3) agindo amorosamente.
Esse curso é minha humilde tentativa de agir no mundo de acordo com meus votos. De ajudar as pessoas, minhas alunas e minhas leitoras, a enxergarem suas prisões, se libertarem delas, perceberem a realidade e agirem amorosamente no mundo, questionando suas certezas e nunca virando o rosto nem à dor nem à alegria das outras pessoas.
Dar esse curso, portanto, é minha prática religiosa. Se eu tiver algum sucesso em caminhar ao lado de vocês nesse percurso, minha vida terá sido uma vida bem vivida, e sou grato por tê-la vivido.
Os Quatro Votos do Bodisatva: As criações são inumeráveis, faço o voto de libertá-las; As ilusões são inexauríveis, faço o voto de transformá-las; A realidade é ilimitada, faço o voto de percebê-la; O caminho do despertar é insuperável, faço o voto de corporificá-lo.
Os três votos da Ordem dos Pacificadores Zen: Praticar o não saber, abrindo mão de certezas prévias; Estar presente na alegria e no sofrimento, não virando o rosto à dor alheia; Agir amorosamente, de acordo com essas duas posturas.
Compre
O Curso das Prisões é exclusivo para as mecenas dos planos CURSOS ou MIDAS do meu Apoia-se.
Para fazer o curso completo (11 aulas expositivas + 11 encontros livres + grupo no Facebook + grupo de Whatsapp):
R$88 mensais, via Apoia-se: comprando o plano Mecenas CURSOS (ou superior), você tem acesso a todos os meus cursos enquanto durar o seu apoio, além de ganhar muitas outras recompensas, como textos e aulas avulsas exclusivas. Como bônus, coloco seu nome na lista das mecenas. Você pode cancelar o seu plano a qualquer momento, mas aí perde acesso aos cursos. (O Apoia-se aceita todos os cartões de crédito e boleto).
Não são vendidas aulas individuais. Não existem outras formas de pagamento. Quem estiver no estrangeiro e não tiver cartão de crédito ou conta bancária brasileira, fale comigo: eu@alexcastro.com.br
Dúvidas
Somente por email: eu@alexcastro.com.br
Aulas em resumo
Links levam para a descrição de cada aula na ementa do curso.
Verdade (fevereiro)
Religião (março)
Classe (abril)
Patriotismo (maio)
Respeito (junho)
Trabalho (julho)
Autossuficiência (agosto)
Monogamia (setembro)
Liberdade (outubro)
Felicidade (novembro)
Empatia (dezembro)
As inscrições para o Curso das Prisões estão abertas: é só fazer o plano CURSOS no meu Apoia-se.