Por um patriotismo das vítimas, das derrotadas, das esquecidas
"Não há nenhum documento de civilização que não seja ao mesmo tempo um documento de barbárie." (Reflexões sobre a Prisão Patriotismo.)
É fácil celebrar os vencedores da História do Brasil, os homens poderosos que construíram o país onde vivemos hoje. Mas por que não celebrar suas vítimas? Por que não celebrar quem foi morta, atropelada, deixada de lado na estrada pelo projeto de Brasil que acabou vencendo?
(A próxima aula do Curso das Prisões, Prisão Patriotismo, acontece HOJE, 31 de maio de 2023, às 19h. Todas as aulas ficam gravadas. Ao entrar no curso, você tem acesso total às aulas anteriores. Mas vou te contar: o legal mesmo são as conversas livres… que não ficam gravadas! Compre aqui.)
Patriotismo e história
O mundo em que vivemos não é o único que poderia ter sido. A História tende a apagar a própria História: de tanto ser repetida e estudada pelas novas gerações, ela se transforma em predestinação e nos apresenta o mundo de forma naturalizada, como se tudo tivesse acontecido exatamente como tinha de acontecer. O castigo pela derrota é a exclusão retroativa da existência. Quem esteve a um triz da vitória total desaparece como se nunca houvesse nem mesmo competido. Os "laterais possíveis" desaparecem.*
Mas o mundo foi construído para ser do jeito que é hoje. Ele poderia facilmente ter sido construído de maneira diferente. E pode, ainda hoje, ser desconstruído e reconstruído.
Para isso, entretanto, precisamos conhecer as pessoas coadjuvantes, as derrotadas, as esquecidas da História. Os grupos jacobinos que não conseguiram tomar o poder durante a Revolução Francesa. Os grupos anarquistas que não conseguiram fazer frente aos bolcheviques. As rebeliões regionais que não conseguiram separar o Brasil durante a Regência. Os franceses protestantes que não conseguiram fazer da Baía de Guanabara um novo lar para exercerem sua religião.
Talvez suas causas fossem até erradas. Talvez estivessem mesmo na contramão da História. Com certeza, fracassaram de forma espetacular em seus objetivos. Mas vale a pena falar nelas nem que apenas para sempre lembrar que nada estava predestinado.**
[*A observação sobre "os laterais possíveis" da História está em "Violência Simbólica e Lutas Políticas", nas Meditações Pascalianas, de Pierre Bourdieu.]
[**O chamado para recuperar os perdedores da História está na introdução do maravilhoso A Formação da Classe Operária Inglesa, de E. P. Thompson.]
O patriotismo é o culto aos vencedores
A História, disciplina criada para validar e dar arcabouço ideológico aos jovens estados nacionais do século XIX, já nasceu do lado dos vencedores. Não existe patriotismo possível sem uma História Nacional renovando-o e naturalizando-o de geração em geração. Os atuais grupos dominantes são herdeiros dos antigos conquistadores. O discurso patriótico que canta as vitórias nacionais passadas sempre beneficia os atuais poderosos. Todos os vencedores, de todos os tempos, participam da mesma procissão triunfante, na qual os dominantes de hoje pisam e passam por cima das massas derrotadas, confirmando, ilustrando e validando sua superioridade, e trazendo nas mãos seu botim de guerra: a cultura. Os pretensos tesouros culturais da humanidade. Por isso, não pode existir nenhuma obra de arte que não seja ao mesmo tempo um inventário e um testamento de barbárie. Que não esteja ensopada de sangue. Que não seja cúmplice dos poderosos. O desafio é utilizar nossa boa, velha e ensanguentada História nacional para promover um novo tipo de patriotismo, um patriotismo que subverta e quebre a continuidade histórica da narrativa dos vencedores, que recupere as tradições revolucionárias dos vencidos, que exponha a mentira da naturalização do mundo, que nos convide a todas a recriar esse mundo de acordo com desejos e aspirações mais igualitários e mais humanos.
O Davi, de Michelângelo, não é inocente dos crimes dos financistas florentinos. “Dom Casmurro” não é inocente dos crimes da escravidão. Nós não somos inocentes da Marielle.
O patriotismo é um documento da barbárie
A subseção anterior é uma paráfrase das "Teses sobre o conceito de história" de Walter Benjamin, escritor brilhante cuja morte ilustra dolorosamente a Prisão Patriotismo. Com a ascensão do nazismo, todas as pessoas judias alemãs como Benjamin tiveram sua cidadania revogada: seu próprio país se voltou contra elas. Se Benjamin não podia ser cidadão nem de sua própria pátria, então, de onde? Tentando chegar ao Novo Mundo, ele sai de Paris na véspera da ocupação e foge para a Espanha, então sob o comando do ditador fascista Franco. Na fronteira, as autoridades espanholas negam passagem ao grupo. Para Benjamin, aquilo significava repatriamento à Alemanha — mas como ser repatriado ao país que se negava a ser sua pátria? Desesperado, longe de casa, sem poder seguir adiante, sem ter para onde voltar, sozinho em quarto de hotel em um país estrangeiro, Benjamin comete suicídio. No dia seguinte, as autoridades franquistas autorizaram o grupo a passar. Sua lápide, na cidade de Portbou, na costa da Catalunha, cita sua famosa frase:
"Não há nenhum documento de civilização que não seja ao mesmo tempo um documento de barbárie."
A pátria é uma desmemória coletiva
A essência de uma pátria é a memória coletiva de suas integrantes.*
Uma das principais diferenças entre pessoas uruguaias e brasileiras é que todas as uruguaias sabem quem foi Artigas (feroz inimigo do Brasil, maior herói nacional, "Jefe de los Orientales", "Protector de los Pueblos Libres", etc) e aqui, quase ninguém. Por outro lado, aqui sabemos quem foi Tiradentes e lá, não.
Um exemplo: a batalha de Tacuarembó, em 1820, foi a última e mais decisiva do conflito que chamamos de “Guerra contra Artigas” — um nome interessantemente personalista, como se o Brasil estivesse lutando só contra um homem e não contra o desejo de independência de todo um povo. A derrota dos uruguaios em Tacuarembó sepultou seu sonho de autonomia por dez anos, selou o domínio luso-brasileiro do país e foi a última batalha de Artigas, que se retirou para o Paraguai e nunca mais voltou para a sua terra. O comandante português que derrotou decisivamente o maior herói uruguaio foi José Maria Rita de Castelo Branco, Conde da Figueira. Mas, do ponto de vista luso-brasileiro, essa batalha é tão insignificante que a página da Wikipédia em português dedicada a ele nem mesmo menciona sua vitória.
Talvez ainda mais importante, a essência de uma pátria é a desmemória coletiva do seu povo, um gesto ativo de esquecimento de um saber compartilhado.
As pessoas uruguaias são as que esqueceram a guerra civil fratricida que passou para a História com o sugestivo nome de Guerra Grande, entre 1836 e 1852, deixando o país enfraquecido e destruído (e, aliás, novamente dominado pelo Brasil) enquanto as brasileiras são as que esqueceram que o seu país matou quase todos os homens adultos do Paraguai e ocupou o país por onze anos, um período no qual, entre muitas coisas, foi legalizada a poligamia. (Não é por acaso que, se você buscar na internet sobre os crimes do Brasil no Paraguai, a imensa maioria das fontes estará em espanhol.)
Ignorar é bem diferente de esquecer. Ignorar é não possuir um conhecimento, e muitas vezes reflete apenas as prioridades do nosso olhar. A pessoa brasileira média ignora a história da Nigéria simplesmente porque nunca voltou os olhos para ela, nunca a considerou digna de interesse. O Brasil esteve profundamente envolvido na Guerra Grande uruguaia e pode-se argumentar que foi inclusive o seu maior vencedor e beneficiário. Mas ela já se perdeu completamente no nosso imaginário nacional. Não é nem mencionada nas salas de aula e nos livros didáticos. A pessoa brasileira média não esqueceu essa Guerra: ela nunca soube que ela existiu.
Já esquecer presume um conhecimento prévio que foi ativamente esquecido, colocado de lado, enterrado. A escravidão, o massacre das pessoas indígenas e a Guerra do Paraguai, para citar apenas três exemplos, são coisas que praticamente qualquer pessoa brasileira sabe, nem que apenas esfumadamente. Sabemos que nossos antepassados brancos mataram quase todas as nossas antepassadas indígenas. Sabemos que nossos antepassados brancos escravizaram quase todas as nossas antepassadas negras. Sabemos que nosso país ganhou uma guerra contra o Paraguai e que fizemos coisas terríveis por lá. Às vezes, não sabemos mais nenhum outro detalhe. Mas sabemos o suficiente para saber que precisamos ativamente esquecer o que sabemos todos os dias.
Sempre que uma pessoa brasileira branca cruza com uma pessoa negra na rua, ou vai opinar contra as cotas raciais, ela precisa esquecer ativamente a escravidão. Sempre que uma pessoa brasileira urbana lê uma matéria jornalística sobre Belo Monte, ela precisa ativamente esquecer o massacre dos indígenas. Sempre que falamos no caráter pacífico do povo brasileiro, precisamos ativamente esquecer a Guerra do Paraguai. E não só essa guerra, aliás, mas todos os outros massacres e violências dos quais já tomamos conhecimento, de Canudos a Carandiru, enfiando-os todos em um hiperlotado porão de horrores da memória nacional, sempre torcendo para o porão não explodir em nossa cara.
O homem que nunca esquecia nada, Funes, o Memorioso** (por acaso, uruguaio), nos ensina que para lembrar todos os detalhes de um dia é preciso perder um outro dia inteiro recordando-o. Um custo alto demais. A questão, portanto, é outra: como a História é a arte de esquecer algumas coisas e lembrar outras, então o que queremos lembrar e o que queremos esquecer? Qual é o nosso patriotismo?
[*A citação sobre a desmemória coletiva das nações é do historiador francês Ernst Renan e está mencionada no primeiro e, depois, desenvolvida no décimo capítulo de Comunidades Imaginadas, de Benedict Anderson, o melhor livro que conheço sobre nacionalismo e patriotismo. Muitas das ideias desse meu texto vêm de Anderson, apesar de ele ter uma visão bem mais positiva desses fenômenos do que eu.]
[**Conto do escritor portenho Jorge Luis Borges (1899-1986), disponível em seu livro Ficções (1944). Na história, o personagem Funes é uruguaio.]
Por um patriotismo das vítimas, das derrotadas, das esquecidas
É fácil celebrar os vencedores da História do Brasil, os homens poderosos que construíram o país onde vivemos hoje. Mas por que não celebrar suas vítimas? Por que não celebrar quem foi morta, atropelada, deixada de lado na estrada pelo projeto de Brasil que acabou vencendo? Por que não celebrar quem era monarquista durante república e republicana durante a monarquia? O anarquismo foi derrotado na Revolução Russa, na Guerra Civil Espanhola, na Hungria, nas barricadas de Paris, em maio de 1968. Apesar disso, talvez por saber que as derrotas ensinam mais do que as vitórias, são elas que as pessoas anarquistas comemoram, são essas histórias que as inspiram. Talvez essas pessoas, mortas e derrotadas há tanto tempo, ainda tenham lições valiosas a ensinar às anti-consumistas da sociedade de consumo, ou às militantes LGBT da sociedade heteronormativa.
Durante a década mais movimentada e mais esquecida de nossa História, entre os reinados de Pedro I e II, a falta de um governante central com legitimidade inquestionável fez explodirem diversos conflitos regionais antes recalcados. O Brasil, como hoje o conhecemos, quase se desfez. Só no Pará, a repressão à Cabanagem fez 20 mil vítimas. (Para efeitos de comparação, a população de Belém no início da rebelião era de 12 mil.) Talvez vivêssemos hoje em diversas repúblicas sul-americanas lusófonas. Teria sido melhor? Teria sido pior? Quem sabe. Depende para quem. Sempre depende pra quem.
Mas os vencedores — como sempre fazem, como sempre esteve predestinado que aconteceria — venceram. Seu legado (nosso legado) é esse Brasil uno, grande e poderoso que derramaram tanto sangue para construir em nosso nome. Graças a esses vencedores, durante todo o século XIX, desfrutamos de poder militar suficiente para roubarmos território de todas as repúblicas vizinhas. Algumas vezes, usamos de força bruta. Em outras, usamos intimidação e diplomacia para ratificar os territórios que os bandeirantes já haviam roubado por meio de força bruta nos séculos anteriores. Hoje, o Brasil tem mais que o dobro do tamanho que deveria ter de acordo com o Tratado de Tordesilhas. (Por trás de todo território, há sempre no mínimo um ato fundacional de violência.)
Quem sabe, se não fossem por esses bandeirantes, por esses militares, por esses diplomatas, por todos esses vencedores que exploraram, mataram, roubaram em meu nome, eu não teria a variedade de opções profissionais que meu colega salvadorenho não tem. Quem sabe.
Mas sou ingrato. Não quero celebrar quem construiu esse país pujante que tantas escolhas me deu. Meu patriotismo não é o patriotismo de Borba Gato, do Duque de Caxias, do Visconde do Rio Branco. Quero celebrar as vítimas desse projeto nacional. Quero celebrar quem morreu em meu nome. Meu patriotismo é o patriotismo de Eduardo Angelim, de Zumbi dos Palmares, de Chico Mendes. Dos bolivianos do Acre e dos paraguaios do Guairá. Dos parakanã de Belo Monte e dos tamoios da Guanabara. Minha pátria é a pátria dos cabanos e dos canudenses, dos quilombolas e dos favelados.
Conclusões
Nas primeiras duas Prisões, Verdade e Religião, consideramos questões epistemológicas: o que é a verdade? Como chegar a ela? Como as ideologias influenciam nossa percepção da realidade? Nas duas Prisões seguintes, Classe e Patriotismo, viramos essa mirada já problematizadora para nós mesmas: quem somos nós? Qual é a nossa essência? Ela existe? Pode ser apreendida? O que nossas muitas identidades, de classe ou de nacionalidade, nos escondem? Se somos seres gregários que não podem evitar de se congregar em grupos (se temos alguma essência, é essa), como fazer para não perpetuarmos desigualdades e opressões? Como existir coletivamente sem xenofobia contra outros grupos?
Na Prisão Respeito, em seguida, falaremos sobre poder e obediência e, também, como não poderia deixar de ser, sobre rebeldia e resistência. Em nossa sociedade, existe uma Autoridade que não só exige ser obedecida e respeitada, como também vende a obediência e o respeito a ela como as maiores e mais importantes virtudes morais. Além disso, ela também nos impõe um certo modelo de vida bem-sucedida (conseguir um diploma, ter um emprego fixo em tempo integral, casar com o sexo oposto em uma relação monogâmica, constituir família, comprar imóvel, etc) que nos impede de enxergar outras possibilidades, outros caminhos, outros modelos.
O primeiro passo para enfrentarmos essa Autoridade, entretanto, é nos dar conta que, na verdade, ela não emana das grandes instituições repressoras, do Estado ou da Igreja, mas sim que existe e reside, é praticada e exercida, por nós mesmas contra nós mesmas, infinitamente vigiando e punindo umas às outras. A Prisão Respeito é para deixarmos de trabalhar para a polícia secreta dessa ditadora.
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Série “As Prisões”
Aqui estão os textos já reescritos, revisados e finalizados em 2023:
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Não tem como escrever esses textos e dar essas aulas sem consumir uma enormidade de livros. Sou membro de três bibliotecas, baixo pirata tudo o que encontro e, ainda assim, acabo precisando comprar muitos livros importados.
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E muito, muito obrigado.
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O curso das Prisões
Em 2023, estou dando o Curso das Prisões.
Em maio, estamos conversando sobre a Prisão Patriotismo. Nossa aula expositiva acontece HOJE, quarta, 31 de maio de 2023. Antes disso, nas nossas conversas livres, no Zoom e no Whatsapp, estamos discutindo coisas como: Quais são nossas crenças fundantes? Existe ideologia melhor que outra?
Sim, ainda dá tempo de participar. Mais detalhes aqui.
Vem com a gente?