Poesia renascentista espanhola, uma introdução
Um aristocrata volta da guerra na Itália, começa a fazer poesias nas métricas italianas de Petrarca e muda a literatura espanhola para sempre. (Grande Conversa Espanhola)
No começo do século XVI, um aristocrata espanhol volta da guerra na Itália, começa a fazer poesias nas métricas italianas de Petrarca e muda a literatura espanhola para sempre.
Garcilaso de la Vega traz uma nova sensibilidade, musicalidade, temática, à poesia lírica espanhola, abandonando tudo aquilo que marcava a poesia espanhola medieval, seja o didatismo e a ênfase religiosa, quanto a musicalidade fácil das rimas tradicionais do romanceiro, e se abrindo a novos cenários e novos temas, mais pastorais, mais bucólicos, mais idealizados. Sua poesia é considerada o marco da Renascença na Espanha.
(As poesias renascentistas de Garcilaso de la Vega serão nossa leitura da sexta aula, Renascimento, do curso Grande Conversa Espanhola: do El Cid ao Dom Quixote, a invenção da literatura moderna. O curso começa na quarta agora, 4 de maio: são 14 aulas por apenas R$195. Compre aqui.)
Em 1492, os reis católicos Fernando e Isabela unificam a Espanha, ao mesmo tempo em que Colombo chega na América. A Espanha passa a ser não apenas o primeiro estado moderno da Europa mas também sua maior potência militar e imperial. Enquanto isso, os ventos históricos sopram para todos os lados: por um lado, uma das primeiras ações dos Reis Católicos é expulsar os judeus da Espanha. Por outro, um certo humanismo erasmista (inspirado nas obras de Erasmo de Roterdã), mais aberto a influências estrangeiras, mais liberal, mais reformista da Igreja, também sopra, possibilitando uma explosão criativa. Em 1517, Lutero prega suas teses da Igreja de Wittenberg e começa o longo processo histórico da Reforma. Indivíduos reformistas e críticos de muitos elementos da Igreja, como Erasmo, precisam escolher: vão se juntar a Lutero e aos novos protestantes, ou vão criticar a Igreja a partir de dentro? Erasmo escolhe a segunda opção, mantendo suas críticas à Igreja Católica, permanecendo católico, e polemizando com Lutero. Essa postura, possível somente ao longo da primeira metade do século XVI, possibilitará a primeira explosão criativa da literatura espanhola. Finalmente, o Concílio de Trento, em 1563, solidifica a posição ideológica política e teológica da Igreja Católica e dá início à Contrarreforma, a violenta e reacionária reação da igreja católica ao protestantismo. A Espanha imperial faz a escolha de se jogar com tudo na Contrarreforma e se coloca como a maior defensora do “verdadeiro” catolicismo: ao longo dos próximos cem anos, ela perderá seu poderio, seu império, sua influência na Europa em longas e infindáveis guerras religiosas.
Na poesia, esse primeiro período, englobando o século XVI de modo geral, se considera chamar “Renascentista”, mais aberto ao humanismo erasmista e ao petrarquismo italiano, mais focado no amor, seja o amor terreno ou o amor místico a Deus: seu maior representante, na poesia, é Garcilaso; na prosa, o autor do Lazarilho de Tormes (aula 7); o segundo período, englobando o século XVII de modo geral, mais defensivo e mais reacionário, mais erudito e mais pessimista, se convencionou chamar “Barroco”, e seus maiores representantes são o poeta Góngora (aula 10) e o dramaturgo Calderón de la Barca (aula 12).
Agora, esse novo homem renascentista (que Garcilaso representa) é aquele que coloca a si mesmo no centro do mundo: suas relações com Deus, com a natureza, com os outros homens, já não são mais as mesmas. Ele percebe que tem o poder de se construir ou de se destruir, mas, para isso, precisa se conhecer. Assim, uma das principais diferenças entre essa nova poesia renascentista que surge e a poesia medieval que ela suplanta é a sua interiorização, uma certa virada para o interior, um olhar do homem para dentro de si mesmo.
A medida em que o castelhano ia se firmando como a língua de expressão do povo espanhol (em oposição ao latim que começava a perder terreno como língua culta e literária) também se formava a ideia de que seria uma língua fraca, pobre, precária — em especial na comparação com os “gloriosos” feitos de armas dos espanhóis durante seu Século de Ouro. O toscano, por oposição, é que seria uma língua moderna culta, literária, erudita, contando com poetas do nível de Dante e Petrarca e sem dever nada ao latim. Então, ao longo do século XVI, na Espanha e também em Portugal (é uma das principais reclamações do narrador de Os Lusíadas), existe a consciência de que são nações em busca de poetas que lhes cantem como merecem. Na Espanha, é Garcilaso quem primeiro abandona as formas poéticas tradicionais (aula 2) e abraça a poesia italianizante petrarquista, combinando-a com a poesia pastoril latina de Virgílio. Torna-se assim o maior poeta do século, não por sua originalidade (que não será um valor literário a ser perseguido até o século XIX) mas por ser o melhor em manipular e recombinar todas essas tradições: Garcilaso não quer ser original, mas apenas fazer com a língua espanhola, ou pela língua espanhola, o que Petrarca fez com e para o toscano. A grande importância de Garcilaso é que sua conquista e adaptação dos modelos literários italianos ao espanhol possibilita uma nova linguagem poética que será usada, explorada, desenvolvida por todos os escritores das gerações seguintes: sem Garcilaso, não haveria nem Góngora (aula 10), nem Cervantes (aulas 13 e 14).
O que Petrarca inventa, na poesia mundial, e Garcilaso aperfeiçoa na poesia espanhola (e Camões, na portuguesa) é uma nova ideia de interioridade individual. Surge o conceito de pessoa como temos hoje, uma certa introspecção que antes não tinha nem vocabulário para ser articulada. Outros temas de Garcilaso são a busca pelo amor ideal, uma visão melancólica e estoica da vida e, por fim, uma certa união do homem com a natureza que, antes, não fazia nem sentido — o homem medieval via pouco valor na natureza, o mundo era apenas o palco onde mereceríamos ou não a salvação eterna. Talvez seja a grande diferença: a poesia medieval, em larga medida didática, tinha como objetivo ensinar ao leitor como ser um melhor cristão, ou seja, como salvar a própria alma; já a nova poesia renascentista quer fazer do homem um melhor homem no mundo hoje. (O mundo, e nele, a natureza, agora importa.) Garcilaso, como Petrarca, não fala de seus amores reais, mas sim de uma certa angústia pela distância entre o amor ideal pelo qual ansiava e a triste e decepcionante realidade. Ainda assim, era essa a realidade do mundo e era importante aceita-la estoicamente. Grande parte da poesia renascentista é definida por essa duas vertentes que Garcilaso representa: a platônica (busca pelo ideal) e a estoica (indiferença perante o próprio sofrimento).
Garcilaso está nas histórias literárias espanholas por ter trazido de Petrarca não apenas o verso italiano, mas a própria ideia da consciência individual. Mas não é por isso que nós ainda o lemos, e sim porque, em uma época de poesia extremamente codificada e estilizada, onde o grande objetivo era imitar e emular os mestres, ele consegue, em um espanhol belíssimo, harmônico e musical, suave e ondular, comunicar e transmitir para nós toda a forte emoção humana, real e profunda, que essas formas fossilizadas tinham objetivo de transmitir e há tanto tempo já não conseguiam. Petrarca, Garcilaso e Camões têm isso em comum: quando conseguem transcender a esterilidade das formas que escolheram usar, quando conseguem deixar entrever por entre as frestas do estilo fossilizado, as profundezas de suas subjetividades e individualidades, de suas dores e amores, é quando percebemos porque ainda são considerados alguns dos melhores poetas de todos os tempos.
* * *
Leitura
Poesias selecionadas de
Poetas do Século de Ouro Espanhol / Poetas del Siglo de Oro Español [Embajada de España, trad. Anderson Braga Horta, Fernando Mendes Vianna, José Jeronymo Rivera. Bilíngue] (pdf)
Poesia espanhola, das origens à Guerra Civil [Hedra, trad. Fábio Aristimunho Vargas. Bilíngue.]
Como ler
Passarei um pdf com uma seleção de poesias que leremos. Recomendo baixar a antologia bilíngue da Embaixada Espanhola, navegar pelos sites e, se quiserem, comprarem ou baixarem as antologias individuais das artistas que mais gostarem.
Outras antologias
Espanhol
Poesía de Los Siglos de Oro [Penguin, ed. Felipe Pedraza e Milagros Rodríguez Cáceres.] (pdf)
Poesía Lírica del Siglo de Oro [Cátedra, ed. Elías L. Rivers.]
Breve Antología de la Poesía de los Siglos de Oro [Textos en rotación, ed. Benjamín Barajas.] (pdf)
Antología de la poesía española del Siglo de Oro [Austral, ed. Pablo Jauralde Pou.] (pdf)
Antología poética del siglo de oro [Castalia, ed. David López del Castillo.] (kindle)
Ecos de mi pluma: Antología en prosa y verso, de Sor Juana Inés de la Cruz [Penguin.] (kindle)
Poesía, de Garcilaso de la Vega [Penguin, ed. José Rico Verdú.] (pdf)
Poesía, de Francisco de Quevedo [Penguin, ed. Ignacio Arellano.] (pdf)
Bilíngues português/espanhol
—> Poetas do Século de Ouro Espanhol / Poetas del Siglo de Oro Español [Embajada de España, trad. Anderson Braga Horta, Fernando Mendes Vianna, José Jeronymo Rivera. Bilíngue] (pdf)
Poesia espanhola, das origens à Guerra Civil [Hedra, trad. Fábio Aristimunho Vargas. Bilíngue.]
Bilíngues inglês/espanhol
Selected Poems of Garcilaso de la Vega: A Bilingual Edition [UChicagoP, ed. John Dent-Young.] (kindle, pdf)
Sites
Poesias, de Garcilaso de la Vega (site bilíngue)
Eglogas y Elegías, de Garcilaso de la Vega (site)
Áudio
Écloga I, de Garcilaso de la Vega [Narr. José Luis Ibáñez, 2011. 29min38]
* * *
Esse texto faz parte dos guias de leitura para a sexta aula, Renascimento, do meu curso Grande Conversa Espanhola: do El Cid ao Dom Quixote, a invenção da literatura moderna. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Para comprar o curso, clique aqui.