Pátria é onde não nos humilham
Se não somos respeitadas, de que adianta estar em nossa pátria? Aliás, para que serve essa pátria? A quem essa pátria serve? (Reflexões sobre a Prisão Patriotismo.)
A pessoa brasileira que tem condições financeiras de ser humilhada no exterior em geral nunca é humilhada no Brasil. Quando o oficial da imigração me humilha em Nova York, eu posso fugir de volta para o Rio. Quando um policial militar humilha um cidadão brasileiro, carioca, negro, na favela onde mora, ele vai fugir para onde? Mas, se não somos respeitadas como pessoas e como cidadãs, de que adianta estar em nossa pátria? Aliás, para que serve essa pátria? A quem essa pátria serve?
(A próxima aula do Curso das Prisões, Prisão Patriotismo, acontece AMANHÃ, 31 de maio de 2023, às 19h. Todas as aulas ficam gravadas. Ao entrar no curso, você tem acesso total às aulas anteriores. Mas vou te contar: o legal mesmo são as conversas livres… que não ficam gravadas! Compre aqui.)
Quando nossa pátria nos humilha, fugir pra onde?
Faz alguns anos, a Espanha começou a deportar pessoas brasileiras, causando um certo alarde na nossa imprensa. Uma jogadora de vôlei, mesmo tendo sido convidada por um clube espanhol, não pôde entrar no país e ainda foi humilhada pela imigração. Depois de voltar, desabafou:
“Não quero mais sair do Brasil. Aqui, pelo menos, eu não sou humilhada da forma que fui lá na Espanha.”
Alguns anos antes, passando pela imigração do aeroporto JFK em Nova Iorque, estou com o sobretudo em um braço, a mochila no outro, coisas penduradas por todo corpo. Quando o oficial da Imigração pede meus papéis, eu estico a mão até ele, documentos dobrados entre os dedos, mas sem desgrudar o antebraço do meu corpo, pra não cair tudo. Ele faz que vai pegar o papel: quando eu solto, ele tira a mão. Os documentos deslizam vagarosamente até o chão e ele diz:
— Can’t you even unfold it, you lazy sac of shit? ("Não consegue nem desdobrar o papel, seu saco de merda preguiçoso?")
Lentamente, eu deposito todas as minhas coisas no chão, me abaixo, pego o papel, desembrulho e dou pra ele. Não foi nem a primeira nem a última vez em que fui humilhado entrando nos Estados Unidos. Engoli calado. Engolir calado dói. Talvez essa seja a essência da humilhação: quando me xingam, seja um leitor babaca nos comentários ou um mendigo bêbado na rua, eu posso escolher responder ou não – geralmente, não respondo. Mas é uma escolha. Quando um oficial da imigração me humilha e não posso responder, aquilo é cancerígeno.
A pessoa brasileira que tem condições financeiras de ser humilhada no exterior, porém, costuma ser aquela que nunca é humilhada no Brasil. Na minha terra, sou dotô, sou sinhozinho. Até nas duras, me tratam com respeito. Do Galeão afora, entretanto, sou só mais um, com cara de latino nas Américas e de árabe na Europa. Não sabem como sou especial, que sou único, que tenho pai rico, que faço doutorado, que escrevo livros, esses estrangeiros ignorantes!
Entretanto, reagir à vergonha voltando correndo para um Brasil idealizado onde não se humilha ninguém é pura ilusão. Quando me humilham no exterior, tento me colocar no lugar daquelas pessoas brasileiras que são humilhadas todos os dias, em seu próprio país, em todos os seus encontros com o Estado, e não apenas durante as viagens que escolhem fazer.
Quando o oficial da imigração norte-americana me humilha, eu posso fugir de volta para o Brasil. Quando um policial militar humilha um cidadão brasileiro, carioca, negro, na favela onde mora, ele vai fugir para onde? Quando uma mulher brasileira é sexualmente assediada e depois desacreditada pela polícia ao tentar dar queixa, ela vai fugir para onde?
No Brasil, eu, homem, branco, hétero, cis, classe média, sou uma das poucas pessoas verdadeiramente tratadas como cidadãs. Enquanto isso, vivo cercado de pessoas mulheres, negras, trans, pobres, homossexuais, sem-teto, com deficiência, etc, parte de um enorme exército de cidadãs de segunda classe, desfrutando de ainda menos direitos do que eu desfrutava como imigrante latino nos Estados Unidos. A questão, portanto, não é ser patriota ou antipatriota, estar em nossa terra ou em outra terra. A questão é outra: se não somos respeitadas como pessoas e como cidadãs, de que adianta estar em nossa pátria? Aliás, para que serve essa pátria? A quem essa pátria serve? Nossa pátria é onde nos respeitam. Só uma pátria que nos respeita tem o direito de nos pedir para arriscar a vida por ela.
Verás que um filho teu não foge à luta
No ano em que completei dezoito anos, prestei o juramento à bandeira, ali no primeiro distrito naval, às margens da baía de Guanabara.
No mesmo grupo, havia vários jovens negros, magros, aparentemente favelados. Na hora de jurar que protegeriam a nação mesmo com a própria vida, mais de metade deles simplesmente riu e pulou esse trecho. O sargento ficou possesso, esbravejou, exigiu respeito. Finalmente, os meninos falaram lá as tais palavrinhas mágicas que os militares tanto queriam ouvir e pudemos todos ir embora.
Eu fui direto para o Galeão, onde a família estava me esperando para passarmos o mês esquiando na Áustria. No caminho, me lembro de pensar coisas como "que falta de respeito", "é por isso que o Brasil não vai pra frente", etc.
Demorei muito para entender que o Estado tinha significados diferentes para mim e para aqueles meninos. Mais importante, que o Estado se comportava de forma diferente comigo e com aqueles meninos. Que as forças de proteção e repressão do Estado tinham sido criadas justamente para proteger a mim e reprimir a eles. Sempre.
(Existe um teste simples para saber se você é privilegiado. Digamos que está num bar, começa uma confusão e, de repente, soa a sirene da polícia, você fica aliviado, pois está salvo e tudo vai se resolver; ou fica tenso, segura a identidade entre os dedos e evita movimentos bruscos?)
Falta de respeito não era aqueles jovens brasileiros se negarem a morrer pelo Brasil. Falta de respeito era o Brasil, depois de dezoito anos tratando-os como pivetes e bandidos, ainda ter o descaramento de pedir que morressem por ele.*
[*A história do juramento à bandeira é do leitor Allan Cutrim.]
Para quem serve essa pátria?*
Minha primeira esposa, Diane, nasceu em uma pequena e próspera cidade no interior da Amazônia. Veio morar comigo no Rio e se deparou, pela primeira vez, com a população de rua em nossas calçadas. Para minha imensa surpresa de carioca, a mera visão de uma criança de rua já era o suficiente para levá-la às lágrimas. Para ela, era como se uma única criança dormindo ao relento já fosse uma enorme tragédia. (E é!) Com o tempo, para não enlouquecer, para poder funcionar como ser humano, minha ex-esposa foi criando a mesma couraça de insensibilidade social que quase todas as cariocas já trazem do berço. É uma educação do olhar: você se treina para não ver, para não se importar, para não cair de joelhos paralisada pelo horror. Mas, se precisamos ser insensíveis para funcionar em sociedade, talvez essa sociedade é que não devesse funcionar. Talvez fosse o caso de derrubar e fazer outra.
Hoje, economistas admitem que o salário mínimo é desumano e indigno, mas argumentam, com resignação, que o país iria à falência se pagasse um salário mínimo humano e digno. Ontem, cafeicultores admitiam que a escravidão era desumana e indigna, mas argumentavam, com resignação, que o país iria à falência se as lavouras fossem plantadas por pessoas assalariadas. Seja na época colonial ou no governo Lula, o consenso entre as pessoas brasileiras que vivem em condições humanas e dignas é sempre o mesmo: o Brasil só pode existir enquanto entidade política viável se mantiver grande parte das outras pessoas brasileiras em condições desumanas e indignas.
Mas é viável uma entidade política que não consegue nem mesmo garantir condições humanas e dignas para a maioria de sua população? Nesse caso, existir para quê? Existir para quem?
Ao ver a bandeira brasileira servindo de proteção a navios negreiros, bradou Castro Alves:
“Antes tivesse sido destruída na batalha do que servindo a um povo de mortalha.”
[*Essa subseção parafraseia alguns trechos da introdução do meu livro Atenção. A citação foi adaptada do poema “Navio Negreiro” (1868), de Castro Alves (1847-71), um dos primeiros a clamar que, se a nação brasileira era tão injusta e tão desigual, tão criminosa e tão escravista, talvez não fosse ruim se deixasse de existir. É uma pergunta sempre atual: hoje, é uma coisa boa que o Brasil exista?]
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Série “As Prisões”
Aqui estão os textos já reescritos, revisados e finalizados em 2023:
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E muito, muito obrigado.
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O curso das Prisões
Em 2023, estou dando o Curso das Prisões.
Em maio, estamos conversando sobre a Prisão Patriotismo. Nossa aula expositiva acontece AMANHÃ, quarta, 31 de maio de 2023. Antes disso, nas nossas conversas livres, no Zoom e no Whatsapp, estamos discutindo coisas como: Quais são nossas crenças fundantes? Existe ideologia melhor que outra?
Sim, ainda dá tempo de participar. Mais detalhes aqui.
Vem com a gente?
valeu , abraços