A aula de hoje do curso Grande Conversa Brasileira é sobre, entre outros, Augusto dos Anjos. Em preparação, postei a seguinte poesia em nosso grupo de Whatsapp e pedi para as pessoas lerem em voz alta, atentando para a sonoridade:
Asa de corvo
Asa de corvos carniceiros, asa
De mau agouro que, nos doze meses,
Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes
O telhado de nossa própria casa...
Perseguido por todos os reveses,
É meu destino viver junto à essa asa,
Como a cinza que vive junto à brasa,
Como os Goncourts, como os irmãos siameses!
É com essa asa que eu faço este soneto
E a indústria humana faz o pano preto
Que as famílias de luto martiriza...
É ainda com essa asa extraordinária
Que a morte - a costureira funerária -
Cose para o homem a última camisa.
Repararam que o poema é todo dominado pelo som de "z"?
Como observou Ferreira Gullar, na introdução a essa edição, existem duas palavras com Z que são centrais para o poema, que teriam tudo a ver, que ficamos o tempo todo esperando o poeta usar, e que ele nunca usa, pois já estão lá, já estão em nossa cabeça, mesmo se não soubermos disso conscientemente:
aZar e aZiago.
(Em uma nota relacionada, como o espanhol não tem som de Z, esse é um poema excelente para trolar nossas amigas hispanoablantes. ;))
Uma participante do curso comentou que poderia ter lido o poema mil vezes e isso nunca teria lhe ocorrido; que talvez esse sentido só estivesse na cabeça do Gullar; que talvez ele seja considerado “genial” por ter “descoberto” a verdadeira “intenção” do autor, mas, na verdade, o poeta não usou a palavra “aziago” porque não estava em seu repertório, ou achava feia.
Ou seja, do jeito que a aluna falou, parece que é uma crítica ao trabalho do Gullar que ela nunca teria pensado na palavra "aziago" que ele pensou. Mas, na verdade, não seria demérito ao Gullar nem se ele tivesse sido o único que pensou essa palavra ao ler o poema.
Crítica literária é um trabalho criativo. O que o crítico está tentando fazer é criar um conteúdo novo, original sobre a obra abordada, fazer a pessoa leitora ver a obra com novos olhos. Os grandes críticos são justamente aqueles que leram um texto que todo mundo leu e só eles conseguiram ver uma coisa que ninguém mais viu.
(Se o crítico lesse o mesmo texto que todo mundo leu e visse a mesma coisa que todo mundo viu e escrevesse sobre o que todo mundo já está falando, putz, que crítico de merda seria esse.)
O grande mérito da crítica do Gullar é justamente ele ter visto que o poema inteiro remete, por tema e por sonoridade, às palavras "azar" e "aziago" — mas que elas não estão no poema.
* * *
Sobre a palavra "aziago", ela significa:
"Que anuncia ou faz recear calamidade, azar. / Que traz consigo a ideia de mau agouro, azar, má sorte; azarento. / Ausência de felicidade; desafortunado, desaventurado. / Que causa medo do algo desastroso, calamitoso; agourento. / Sinônimos: funesto, infausto, azarento, atro, agourento, calamitoso, desastroso, desaventurado, desafortunado"
É uma expressão relativamente comum. Por exemplo, assinei meu contrato com a Editora Rocco para publicar meu livro Atenção. no dia 24 de agosto de 2017, tradicionalmente conhecido como o "dia mais aziago do ano", e aproveitei para escrever sobre esse folclore e como ele se manifesta.
Por coincidência, "aziago" e "azar" soam parecido, têm significados parecidos, mas raízes radicalmente diferentes: "aziago" vem da palavra latina pra "egípcio" e remete às pragas do Egito, e "azar" vem do árabe para "feliz acaso" e, depois, foi ganhando conotação negativa.
De qualquer modo, o poema inteiro, além de usar palavras cuja sonoridade remete à essas ideias, é todinho ele sobre o azar e sobre coisas aziagas. (Subam lá e leiam de novo.)
No conto “O jardim de veredas que se bifurcam”, do livro Ficções, Borges ensinava:
“Omitir siempre una palabra, recurrir a metáforas ineptas y a perífrasis evidentes, es quizá el modo más enfático de indicarla.”
(Tenho um texto só sobre Borges e Ficções, mas falo dessa citação específica em meu texto sobre Declínio e Queda do Império Romano, de Gibbon.)
Por fim, como apontou a maravilhosa Clotilde Tavares (que temos o privilégio de ter no curso com a gente e que recomendo que conheçam), paraibana como Augusto dos Anjos: vai ver ele não falou a palavra "azar" apenas porque... dava azar!
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Não achamos o Gullar "genial" por ter "descoberto" a "intenção" do autor.... pois a intenção do autor, quase sempre, é totalmente irrelevante.
Eu, quando li "Asa do Corvo" pensei em "azar" ou "aziago"? Não, não conscientemente. Eu, quando li Gullar, concordei com ele que todo o poema aponta para essas palavras? Com certeza.
Considero Gullar um grande poeta, e um grande crítico, por ter me ajudado a ver algo que eu antes não tinha visto; por me ajudar a apreciar mais uma obra de arte que eu já gostava; basicamente, por enriquecer minha vida, por acrescentar mais beleza à minha experiência estética.
O melhor de tudo é que não precisamos nem mesmo concordar com o crítico. Porque:
1) como a crítica literária não é uma escavação pela "leitura certa" da obra
2) e porque não existe “leitura certa” da obra
3) o crítico nunca pode estar realmente “certo”: “arrá, ele descobriu a intenção do autor!! Gabaritou!”
4) mas também nunca pode estar realmente “errado”
5) e, mais importante, nunca pode impor a nós a leitura dele.
Então, o melhor crítico literário é o que nos faz ver aquilo que não tínhamos conseguido ver por conta própria (que é o que tento fazer no curso com vocês) e o pior crítico, o que é chato, tedioso, previsível, é aquele que só diz o que a gente já sabe, já viu, já leu.
Para um crítico literário ser grande, nós não precisamos nem concordar com ele.
Por exemplo, o crítico literário Roger Shattuck, um conservador com quem eu não concordaria com quase nada, escreveu uma obra chamada Forbidden Knowledge: From Prometheus To Pornography. Esse livro:
1, fala coisas muito interessantes sobre algumas obras que já eram minhas preferidas, como Gênesis, Origem das Espécies, Bully Budd, Frankenstein, Marquês de Sade;
2, me fez ficar curioso para ler outras que ainda não tinha lido e se tornaram favoritas, como Fausto, Paraíso Perdido, Princesa de Cleves;
3, virou de cabeça pra baixo minha leitura de obras que eu achava que tinha entendido, como O Estrangeiro.
Ou seja, sem que eu, de fato, concordasse com o autor em quase nada, ele enriqueceu minha vida de maneiras que mal consigo descrever.
* * *
Nada do que falei é, de nenhuma maneira, crítica à aluna que fez o comentário original, que não disse nada de errado e fez uma contribuição ótima.
Assim como o Gullar tem direito de achar que o poema foi escrito em ponto de fuga apontando para palavras que estão fora dele, qualquer pessoa leitora tem todo o direito de achar que não, de discordar, que pensar que ele viajou.
A função da crítica não é apontar a leitura certa de uma obra, ou a leitura mais próxima à intenção do autor, mas simplesmente nos fazer ver o que não vimos.
Não existe leitura mais certa que outra.
Tudo bem discordar.
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A aula acontece hoje à noite, quinta, 2 de setembro, a partir das 19h.
Não precisa ter lido as obras pra fazer o curso.
Sim, ainda dá tempo de você participar: você paga $399 pelo PagSeguro(que aceita todas as formas de pagamento, inclusive boleto, e dá para parcelar, etc) ou por $299 direto no meu pix eu@alexcastro.com.br, e pronto: você assiste as aulas que já passaram nos vídeos gravados e participa dessa, e das próximas, ao vivo, no Zoom, com a gente, além de bater-papo sobre literatura em nosso grupo no Zap. Mais detalhes aqui.
Em outubro, na próxima aula, Bandeirantes & jagunças, conversaremos sobre Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, A Muralha, de Dinah Silveira de Queiroz, e Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima. (Mais detalhes sobre essa aula específica aqui.)
Abaixei o preço do meu curso do ano passado também, Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura, que agora está saindo por $79, no pix eu@alexcastro.com.br, e dá acesso ao vídeo das dez aulas. (Detalhes aqui.)
Não são vendidas aulas individuais. Não vão haver novas turmas desses cursos. Cada curso é uma narrativa única, um ensaio formado pela concatenação das aulas. Quem fez, fez. Quem não fez, assiste as aulas na gravação e fica mais atenta para não perder os próximos cursos ao vivo. ;)
Um beijo, e até breve,
Alex Castro