Alex Castro

Share this post
Para que serve crítica literária?
alexcastro.substack.com

Para que serve crítica literária?

Sobre um poema em ponto de fuga de Augusto dos Anjos

Alex Castro
Sep 2, 2021
Share this post
Para que serve crítica literária?
alexcastro.substack.com

A aula de hoje do curso Grande Conversa Brasileira é sobre, entre outros, Augusto dos Anjos. Em preparação, postei a seguinte poesia em nosso grupo de Whatsapp e pedi para as pessoas lerem em voz alta, atentando para a sonoridade:

Asa de corvo

Asa de corvos carniceiros, asa

De mau agouro que, nos doze meses,

Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes

O telhado de nossa própria casa...

Perseguido por todos os reveses,

É meu destino viver junto à essa asa,

Como a cinza que vive junto à brasa,

Como os Goncourts, como os irmãos siameses!

É com essa asa que eu faço este soneto

E a indústria humana faz o pano preto

Que as famílias de luto martiriza...

É ainda com essa asa extraordinária

Que a morte - a costureira funerária -

Cose para o homem a última camisa.

Repararam que o poema é todo dominado pelo som de "z"?

Como observou Ferreira Gullar, na introdução a essa edição, existem duas palavras com Z que são centrais para o poema, que teriam tudo a ver, que ficamos o tempo todo esperando o poeta usar, e que ele nunca usa, pois já estão lá, já estão em nossa cabeça, mesmo se não soubermos disso conscientemente:

aZar e aZiago.

(Em uma nota relacionada, como o espanhol não tem som de Z, esse é um poema excelente para trolar nossas amigas hispanoablantes. ;))

Uma participante do curso comentou que poderia ter lido o poema mil vezes e isso nunca teria lhe ocorrido; que talvez esse sentido só estivesse na cabeça do Gullar; que talvez ele seja considerado “genial” por ter “descoberto” a verdadeira “intenção” do autor, mas, na verdade, o poeta não usou a palavra “aziago” porque não estava em seu repertório, ou achava feia.

Ou seja, do jeito que a aluna falou, parece que é uma crítica ao trabalho do Gullar que ela nunca teria pensado na palavra "aziago" que ele pensou. Mas, na verdade, não seria demérito ao Gullar nem se ele tivesse sido o único que pensou essa palavra ao ler o poema.

Crítica literária é um trabalho criativo. O que o crítico está tentando fazer é criar um conteúdo novo, original sobre a obra abordada, fazer a pessoa leitora ver a obra com novos olhos. Os grandes críticos são justamente aqueles que leram um texto que todo mundo leu e só eles conseguiram ver uma coisa que ninguém mais viu.

(Se o crítico lesse o mesmo texto que todo mundo leu e visse a mesma coisa que todo mundo viu e escrevesse sobre o que todo mundo já está falando, putz, que crítico de merda seria esse.)

O grande mérito da crítica do Gullar é justamente ele ter visto que o poema inteiro remete, por tema e por sonoridade, às palavras "azar" e "aziago" — mas que elas não estão no poema.

* * *

Sobre a palavra "aziago", ela significa:

"Que anuncia ou faz recear calamidade, azar. / Que traz consigo a ideia de mau agouro, azar, má sorte; azarento. / Ausência de felicidade; desafortunado, desaventurado. / Que causa medo do algo desastroso, calamitoso; agourento. / Sinônimos: funesto, infausto, azarento, atro, agourento, calamitoso, desastroso, desaventurado, desafortunado"

É uma expressão relativamente comum. Por exemplo, assinei meu contrato com a Editora Rocco para publicar meu livro Atenção. no dia 24 de agosto de 2017, tradicionalmente conhecido como o "dia mais aziago do ano", e aproveitei para escrever sobre esse folclore e como ele se manifesta.

Por coincidência, "aziago" e "azar" soam parecido, têm significados parecidos, mas raízes radicalmente diferentes: "aziago" vem da palavra latina pra "egípcio" e remete às pragas do Egito, e "azar" vem do árabe para "feliz acaso" e, depois, foi ganhando conotação negativa.

De qualquer modo, o poema inteiro, além de usar palavras cuja sonoridade remete à essas ideias, é todinho ele sobre o azar e sobre coisas aziagas. (Subam lá e leiam de novo.)

No conto “O jardim de veredas que se bifurcam”, do livro Ficções, Borges ensinava:

“Omitir siempre una palabra, recurrir a metáforas ineptas y a perífrasis evidentes, es quizá el modo más enfático de indicarla.”

(Tenho um texto só sobre Borges e Ficções, mas falo dessa citação específica em meu texto sobre Declínio e Queda do Império Romano, de Gibbon.)

Por fim, como apontou a maravilhosa Clotilde Tavares (que temos o privilégio de ter no curso com a gente e que recomendo que conheçam), paraibana como Augusto dos Anjos: vai ver ele não falou a palavra "azar" apenas porque... dava azar!

* * *

Não achamos o Gullar "genial" por ter "descoberto" a "intenção" do autor.... pois a intenção do autor, quase sempre, é totalmente irrelevante.

Eu, quando li "Asa do Corvo" pensei em "azar" ou "aziago"? Não, não conscientemente. Eu, quando li Gullar, concordei com ele que todo o poema aponta para essas palavras? Com certeza.

Considero Gullar um grande poeta, e um grande crítico, por ter me ajudado a ver algo que eu antes não tinha visto; por me ajudar a apreciar mais uma obra de arte que eu já gostava; basicamente, por enriquecer minha vida, por acrescentar mais beleza à minha experiência estética.

O melhor de tudo é que não precisamos nem mesmo concordar com o crítico. Porque:

1) como a crítica literária não é uma escavação pela "leitura certa" da obra

2) e porque não existe “leitura certa” da obra

3) o crítico nunca pode estar realmente “certo”: “arrá, ele descobriu a intenção do autor!! Gabaritou!”

4) mas também nunca pode estar realmente “errado”

5) e, mais importante, nunca pode impor a nós a leitura dele.

Então, o melhor crítico literário é o que nos faz ver aquilo que não tínhamos conseguido ver por conta própria (que é o que tento fazer no curso com vocês) e o pior crítico, o que é chato, tedioso, previsível, é aquele que só diz o que a gente já sabe, já viu, já leu.

Para um crítico literário ser grande, nós não precisamos nem concordar com ele.

Por exemplo, o crítico literário Roger Shattuck, um conservador com quem eu não concordaria com quase nada, escreveu uma obra chamada Forbidden Knowledge: From Prometheus To Pornography. Esse livro:

1, fala coisas muito interessantes sobre algumas obras que já eram minhas preferidas, como Gênesis, Origem das Espécies, Bully Budd, Frankenstein, Marquês de Sade;

2, me fez ficar curioso para ler outras que ainda não tinha lido e se tornaram favoritas, como Fausto, Paraíso Perdido, Princesa de Cleves;

3, virou de cabeça pra baixo minha leitura de obras que eu achava que tinha entendido, como O Estrangeiro.

Ou seja, sem que eu, de fato, concordasse com o autor em quase nada, ele enriqueceu minha vida de maneiras que mal consigo descrever.

* * *

Nada do que falei é, de nenhuma maneira, crítica à aluna que fez o comentário original, que não disse nada de errado e fez uma contribuição ótima.

Assim como o Gullar tem direito de achar que o poema foi escrito em ponto de fuga apontando para palavras que estão fora dele, qualquer pessoa leitora tem todo o direito de achar que não, de discordar, que pensar que ele viajou.

A função da crítica não é apontar a leitura certa de uma obra, ou a leitura mais próxima à intenção do autor, mas simplesmente nos fazer ver o que não vimos.

Não existe leitura mais certa que outra.

Tudo bem discordar.

* * *

A aula acontece hoje à noite, quinta, 2 de setembro, a partir das 19h.

Não precisa ter lido as obras pra fazer o curso.

Sim, ainda dá tempo de você participar: você paga $399 pelo PagSeguro(que aceita todas as formas de pagamento, inclusive boleto, e dá para parcelar, etc) ou por $299 direto no meu pix eu@alexcastro.com.br, e pronto: você assiste as aulas que já passaram nos vídeos gravados e participa dessa, e das próximas, ao vivo, no Zoom, com a gente, além de bater-papo sobre literatura em nosso grupo no Zap. Mais detalhes aqui.

Em outubro, na próxima aula, Bandeirantes & jagunças, conversaremos sobre Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, A Muralha, de Dinah Silveira de Queiroz, e Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima. (Mais detalhes sobre essa aula específica aqui.)

Abaixei o preço do meu curso do ano passado também, Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura, que agora está saindo por $79, no pix eu@alexcastro.com.br, e dá acesso ao vídeo das dez aulas. (Detalhes aqui.)

Não são vendidas aulas individuais. Não vão haver novas turmas desses cursos. Cada curso é uma narrativa única, um ensaio formado pela concatenação das aulas. Quem fez, fez. Quem não fez, assiste as aulas na gravação e fica mais atenta para não perder os próximos cursos ao vivo. ;)

Um beijo, e até breve,

Alex Castro

Comment
Share
Share this post
Para que serve crítica literária?
alexcastro.substack.com

Create your profile

0 subscriptions will be displayed on your profile (edit)

Skip for now

Only paid subscribers can comment on this post

Already a paid subscriber? Sign in

Check your email

For your security, we need to re-authenticate you.

Click the link we sent to , or click here to sign in.

TopNewCommunity

No posts

Ready for more?

© 2022 Alex Castro
Privacy ∙ Terms ∙ Collection notice
Publish on Substack Get the app
Substack is the home for great writing