"Oxe, as mina são sinistra!" & outros regionalismos da língua
Produzir conteúdo nacional não é fácil. Sem sair de si, é impossível.
Antes de começar:
Ontem, 13 de maio, participei de uma conversa ao vivo com a Carolina Nalon. Os temas foram atenção e empatia, privilégio e meritocracia. Afinal, o que é privilégio? O que é meritocracia? Vale a pena "salvar" o conceito de meritocracia ou ele já não serve mais pra nada? Qual é a diferença entre atenção e empatia? Por que priorizar um sobre o outro? Como a atenção pode ser utilizada como ferramenta de transformação política? Como conversar com o Outro que tem opiniões tão detestáveis para nós? Enfim, ficamos duas horas e meia conversando com mais de duzentas pessoas. O vídeo completo, para você assistir quando quiser, está aqui.
Outra coisa: esse é o meu primeiro teste de uma nova ferramenta de envio de emails. Se chegar estranho, se der algum problema, por favor, avisem.
Agora, ao texto.
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Aos 18 anos, comecei a escrever para a Revista Mad. Dentre as milhões de coisas que aprendi com o Ota (mítico editor da Mad), uma das mais importantes foi a caçar os regionalismos no meu texto.
A redação era no Rio, éramos quase todos cariocas e eu, mais ainda, por ser criança ainda, naturalizava o contexto que recebi, como toda criança.
Foi o Ota a primeira pessoa que me ensinou que várias expressões que, para mim eram normais e inteligíveis, eram carioquismos que, apesar de não serem errados em si, não tinham lugar em uma revista nacional.
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Fico chocado como pessoas aparentemente fofas do Rio e de São Paulo pretendem produzir conteúdo para o Brasil inteiro... e aparentemente não fazem nenhum esforço em limitar os regionalismos dos seus textos.
Já perdi a conta de quantas gírias paulistanas mal utilizadas atrapalharam minha compreensão de textos.
Por exemplo, outro dia vi na internet uma imagem:
"Indique uma mana que tem um corre independente".
Tive que literalmente perguntar para várias e várias pessoas até encontrar uma paulistana que me explicasse que "corre" é um paulistanismo para "trampo", "frila", "trabalho", etc.
Se a imagem queria ser misteriosa, conseguiu. Se queria se comunicar com mulheres de São Paulo, conseguiu. Se queria se comunicar com mulheres de todo o Brasil, diria que falhou.
Às vezes, ser misterioso é nosso objetivo.
A palavra "haole", por exemplo, faz parte do vocabulário comum da minha infância. Pra mim, é uma palavra tão normal quanto "mesa" e "mané". Aprendi, depois de velho, que essa palavra não é compreendida no resto do Brasil. De vez em quando, uso essa palavra em textos, mas quando a minha intenção explícita é ofuscar e não comunicar, para ressaltar minha carioquice ou, como agora, para desenvolver algum argumento sobre regionalismos.
("Haole" quer dizer "surfista de outra praia", ou seja, pessoa de fora, estrangeira. No resto do Brasil, ela é usada somente por surfistas. No Rio, ficou mais disseminada. E, como podem ver, no interesse de minhas pessoas leitoras não-cariocas, eu sempre traduzo.)
Não faltam vários outros exemplos de palavras que ofuscam.
Até hoje, eu não tenho certeza se "mistura" é a carne ou o acompanhamento.
As primeiras vezes que li a palavra "churras" eu achei que era um tipo de churros, o doce.
E, agora, conversando sobre esse tema com a amiga paulistana que me explicou "corre", acabei de descobrir que "breja" se pronuncia "brêja", não "bréja". (Nunca tinha ouvido a palavra pronunciada em voz alta!)
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Pra não falar de outras expressões e palavras que são compreendidas nacionalmente, mas, por serem muito associadas a uma região, dão um tom regional a um texto que era pra ser nacional.
Por exemplo, se um texto fala em "mano" e "perifa", todo mundo no Brasil provavelmente entende o que essas palavras querem dizer, mas o texto ficará marcado como um texto paulistano, escrito por um paulistano, sobre a realidade de São Paulo. (Idem pra "brother" e "asfalto" com Rio de Janeiro, e assim por diante.)
Se a intenção da pessoa autora era escrever um texto marcadamente regional, beleza. (A gente escolhe nossas palavras com cuidado justamente para passar ou não impressões assim.)
Mas é falha grave quando a pessoa autora escreve assim por ignorância de que, no resto do Brasil, essas palavras não são "normais" ou "neutras", mas fortemente associadas a uma região e vão fazer o texto ser lido com uma chave que não era a intenção da autora.
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Enfim, não é uma crítica aos paulistanismos per se.
Todo mundo que escreve escreve a partir de uma região ou contexto linguístico que têm expressões próprias, e são todas lindas e únicas e interessantes.
Dependendo dos objetivos do texto, a gente pode
1) nem pensar nisso e escrever do jeito que nos é mais natural, ou
2) forçar a barra nos regionalismos por algum objetivo tático ou político, para afirmar ou celebrar nossa identidade; ou
3) tentar falar um português mais "nacional", para evitar que nossas pessoas leitoras de outras regiões se sintam burras, incultas, excluídas.
O problema é fazer isso por ignorância que os nossos regionalismos são regionalismos.
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Uma última coisa.
O texto acaba sendo mais uma crítica a pessoas do Rio e de São Paulo por um único motivo.
Quem escreve a partir de uma região menos culturalmente e economicamente dominante não precisa desse recado.
Uma escritora baiana que escreve para uma revista nacional provavelmente não conseguirá vender nenhum texto se ele estiver cheio de baianismos involuntários.
O problema é que a maioria dos veículos nacionais são editados por pessoas do Rio e de São Paulo que não têm a mesma sensibilidade e sabedoria do Ota.
Ou seja, por pessoas editoras que vão corrigir o "oxe" do redator baiano por ser um regionalismo, mas não vão enxergar que o "mano" da redatora paulista também é.
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Reparem, por favor, que esse não é um texto sobre pessoas aleatórias escrevendo textos pessoais em seus Facebook: é um texto de uma pessoa profissional de conteúdo, escrevendo para outras profissionais de conteúdo, que pretendem escrever em veículos de comunicação para o público nacional.
Se você é de fora do eixo RJ-SP e escreve conteúdo, quero muito saber sua opinião.
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Um beijo do
Alex