Onde você ACHA que estava no 11 de Setembro?
Temos certeza do que lembramos? Do que pensamos, sentimos, comunicamos?
Há 20 anos, dois aviões colidiam com as Torres Gêmeas, em Nova York, em um dos eventos mais assustadores e traumáticos de nossas vidas.
(Naturalmente, o trauma é maior quanto mais ignorante somos de que os EUA cometem vários Onze de Setembro por mês em diversos países pelo mundo afora: essa é a longuíssima página dos crimes de guerra dos EUA na Wikipédia.)
Uma das maneiras de lidarmos com esse trauma é lembrando onde estávamos quando a tragédia aconteceu.
(Fizemos isso com o assassinato do Kennedy, a morte do Senna, a queda do avião dos Mamonas, etc.)
Eu, por exemplo, estou certo de que estava em uma reunião no prédio mais alto do Rio de Janeiro (a torre do Rio Sul) e ainda pensei: se fizessem a mesma coisa na minha cidade, os aviões estariam vindo bater aqui!
Mas será que eu estava lá mesmo? Podemos confiar na nossa memória?
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O estudo Challenger
15 anos antes, em 27 de janeiro de 1986, o ônibus espacial Challenger explodia na decolagem.
No dia seguinte, um professor pediu para as suas pessoas alunas escreverem onde estavam quando souberam da tragédia. Dois anos e meio depois, procurou as alunas e repetiu a pergunta. Nesse meio tempo, grande parte delas tinha formado novas memórias: diziam que estavam em lugares diferentes.
Quando confrontadas com a descrição que tinham escrito no dia seguinte (!), elas ainda assim se aferraram às novas memórias:
"Sim, é a minha caligrafia, mas não era aqui que eu estava!"
Mais tarde, vários estudos replicaram o fenômeno.
Então, voltamos à pergunta do título:
Onde você acha que estava no Onze de Setembro? E será que estava mesmo?
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(A capa do jornal satírico The Onion, equivalente estadunidense do nosso Sensacionalista.)
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Esse estudo da Challenger pode nos levar a muitos questionamentos. Meu livro Atenção. é fundamentalmente sobre exercitar nossa não-certeza, não-conhecimento e não-opinião.
No resto do texto, porém, vou questionar uma coisinha que parece boba mas que, como historiador e escritor, considero muito importante. Se me pergunto:
“Será que eu realmente amava Fulano?”
A resposta é sim, sempre sim.
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O que é o amor?
Uma amiga perguntou:
"É possível definir o amor, dado que é tão subjetivo e abstrato?"
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Amor é que nem calor.
Ninguém fica em dúvida se está com calor. Ninguém se pergunta:
"Será que estou com calor?"
Não. Se achamos que estamos com calor, então estamos com calor.
Mais ainda, não só cada pessoa sente calor a uma temperatura diferente, mas cada pessoa sente calores diferentes em dias diferentes: a temperatura que nos faz suar hoje amanhã nem nos afeta.
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Outra amiga suspirou:
"Gostaria de acreditar nisso, que se você acha que é amor, é porque é, mas nessa nossa sociedade doente, é muito fácil confundir amor com apego, com carência, com ego ferido, com egoísmo..."
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Mas eu não consigo ver nenhuma alternativa à definição:
"Amor é o que você acha que é amor".
Porque amor é uma sensação individual a qual ninguém mais tem acesso.
Então, se tem algo dentro de mim que acho que é amor, então é amor, pelo simples fato que... quem vai dizer que não é?
Por dois motivos.
Em primeiro lugar, porque não temos como mostrar essa coisa para outra pessoa para ela poder analisar e dizer:
"É, é amor mesmo..."
Ou
"Ih, filho, sinto muito, isso aí não é amor não, é apego..."
Em segundo lugar, porque, mesmo se fosse possível pegar aquela coisa que está dentro de mim e que acho que é amor e mostrar pra outra pessoa... isso também não resolveria, pois cada um define amor como quer.
Aquilo que para mim é amor para outra pessoa não seria. Aquilo que para outra pessoa seria amor para mim não é.
Talvez o amor de algumas pessoas seja mais distante, mais apegado, mais agressivo, mais plácido que o de outras.
Se mal temos acesso ao nosso amor, aqui dentro de nós, quem dirá ao amor que sentem essas outras pessoas, de quem só temos acesso às ações e às palavras, nunca às emoções e aos pensamentos?
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Digamos que eu encontre uma capivara e adote, achando que é um cachorro.
Um dia, um amigo me visita e diz:
"Ih, Alex, isso não é cachorro, é capivara."
Esse cenário é possível porque:
1. Meu amigo tem como ter acesso direto ao animal para verificar o que ele é.
2. Capivara e cachorro têm definições minimamente precisas e objetivas.
Por isso, dá pra encontrar uma capivara, pensar que é um cachorro e, um dia, descobrir o erro e perceber, retroativamente, que passei anos achando que era um cachorro o animal que de fato, objetivamente, era uma capivara esse tempo todo.
Como seria possível isso acontecer com o amor?
Se acho que amo, se passo anos amando, pensando que estou amando, sentindo esse amor... como isso poderia concebivelmente não ser amor?
Mais importante, quem teria a autoridade e a arrogância de se arrogar árbitro do que eu verdadeiramente sentia durante esses anos?
"Não, Alex, você está enganado. Senta aqui e eu vou te contar o que você estava realmente sentindo..."
Nem mesmo eu tenho autoridade para dizer isso para mim mesmo.
* * *
Se em 2006, eu sinto que amo uma pessoa, então eu não vejo como poderia não ser amor, já que amor é justamente isso.
Se em 2021, eu decido que não, não é amor, é outra coisa, então, beleza, agora é essa outra coisa.
Seja porque mudou essa sensação que eu sentia, seja porque mudou a minha definição de amor.
Mas não vejo como isso possa retroativamente apagar o amor que eu sentia em 2006.
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Pois a pessoa que eu sou hoje já é fundamentalmente diferente da pessoa eu era.
Quando o Alex de 2021 julga os "verdadeiros sentimentos" do Alex de 2006, ele está julgando de fora e de longe eventos já filtrados por uma memória falha, projetando sobre o passado o que sente no presente, sendo influenciado por sensações posteriores, avaliando em retrospecto tudo o que aconteceu depois.
Então, se em 2006, no calor do momento, eu achava que estava amando e se, em 2021, quinze anos depois, olhando para o passado, eu acho que não amava...
Perdão, mas prefiro confiar no Alex de 2006.
E volto à minha definição inicial:
"Amor é o que você acha que é amor".
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Voltando ao Onze de Setembro
Uma charge óbvia (como só o Latuff é capaz), duríssima (três das minhas melhores amigas de infância trabalharam no WTC e eu fui lá visitá-las diversas vezes) e certeira como um bumerangue bem lançado.
Fundamentalmente, e daí onde estávamos no Onze de Setembro, né? Tinha 3 mil pessoas morrendo. Aliás, hoje também tem.
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Atenção.
Os temas da não-certeza, não-conhecimento e não-opinião são melhor desenvolvidos no meu livro Atenção., que propõe práticas específicas para exercitarmos todas essas habilidades.
(A radialista Laura Mayumi está compartilhando seus trechos favoritos de Atenção. em seu instagram. Olha lá.)
Um beijo do
Alex