On the road, de Kerouac: a celebração de um “não”
Um dos clássicos mais deslidos de todos os tempos. (Reflexões da Prisão Respeito.)
O livro On the road (1957), de Jack Kerouac, é um dos clássicos mais deslidos de todos os tempos.
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“A coisa mais cruel que se pode fazer com Kerouac é relê-lo aos 38,” zoou o escritor britânico Hanif Kureishi, em O Buda do subúrbio. Eu, por acaso, reli On the road aos 38. Minha primeira leitura tinha sido aos 29, quando já não estava mais na idade de acampar, pegar carona ou outras coisas que aliás nunca fiz, nem aos dezoito.
Quando temos dezoito, ainda não sabemos fazer nada direito, nem ler, nem transar, nem coisa nenhuma. (Dica: já que não podemos voltar no tempo e retransar nossas transas toscas dos dezoito, podemos ao menos reler os livros que lemos.) Então, aos dezoito, quando fazemos tudo de forma superficial e apressada, quando estamos loucas para pegar o carro e sumir, é fácil ler o romance de Kerouac como uma celebração desse espírito.
Mais tarde, aos 38, quando a vida já sugou nosso espírito e nossa energia, quando olhamos com pena e escárnio para nossa persona de dezoito, quando fazemos pouco de seus sonhos e esperanças sem nos dar conta que não conseguimos acrescentar melhores sonhos e esperanças nesse meio tempo, então, é fácil lembrar somente de nossa desleitura adolescente de On the road e usar isso para menosprezar o livro:
“Rá, só um livro bobão e pueril sobre jogar pro alto as responsabilidades e pegar a estrada! Não tenho mais tempo pra isso! Minha vida hoje é muito melhor! Tenho três filhos de dois casamentos, uma hipoteca da casa, trabalho dezesseis horas por dia e devo dez mil no cartão de crédito, mas, se Deus quiser e meu coração deixar (estou com a pressão meio alta, sabe?), em vinte anos eu consigo minha aposentadoria, vou comprar aquela casinha em Iguaba Grande e, aí sim, vocês vão ver, eu vou ser feliz!”
Mas, justamente, On the road é um clássico da literatura universal por não ser apenas isso. Sal Paradise e Dean Moriarty, os personagens principais, são da geração de nossos avós e bisavós. Nós, as gerações seguintes, com tanta coisa melhor pra fazer, com iPorras e iPulhas, não continuaríamos lendo sobre as farras de nossos bisavós se elas também não dialogassem diretamente com a nossa experiência.
A intenção de Kerouac provavelmente era sim fazer uma celebração da estrada. Se tivesse sido bem-sucedido, provavelmente não estaríamos falando dele hoje. Porque todo grande livro é mais inteligente que seu autor. Toda grande obra contém em si o seu próprio contradiscurso. Toda grande narrativa sempre se constrói em torno de uma fratura estrutural que ameaça lhe demolir. É essa tensão que atrai os leitores, que nos faz voltar ao livro sempre renovados, que nos faz ler e reler, emprestar e resenhar, recomendar aos filhos e aos alunos. Esse é o ciclo de vida de uma obra. Só os livros que causam esse tipo de engajamento conseguem sobreviver de uma geração para a outra, e se tornar clássicos.
Então, por um lado, On the road é a história de Sal Paradise, um escritor certinho de Nova Iorque, que encontra o malucão Dean Moriarty, e sai loucamente com ele pelas estradas da América do Norte. É a celebração da estrada, um elogio à liberdade, um chamado para que todos saiam de suas casas e sumam por aí. Eba!
Mas, por outro lado, On the road é exposição, progressiva e sistemática, desse exato contradiscurso. Apesar de idolatrar Dean, até mesmo Sal vai percebendo que ele é um canalha, egocêntrico, narcisista que só se preocupa consigo mesmo; que usa as pessoas como se fossem objetos – carteiras, especialmente; que não tem pudor nenhum em descartá-las quando lhe dá na telha. Ao longo do livro, várias pessoas, inclusive o narrador, são atraídas pela energia e força vital de Dean... até perceberem que essa energia e força vital está sendo sugada delas mesmas: como um vampiro, Dean se alimenta dos seus fãs. Suga até o caroço e depois cospe fora.
Por isso, Sal diversas vezes larga a estrada e volta para Nova York, para o rabo de saia da mãe, para o ambiente familiar e seguro onde pode viver e trabalhar. A estrada pode até ser boa, parece dizer o livro, mas não por muito tempo: bom mesmo é uma casa tranquila e uma mãe companheira. Até que, mais uma vez, Sal fraqueja, fica de pau duro por Dean, ambos pegam a estrada, Sal quebra a cara, volta pra Nova York. O livro acontece nesse movimento pendular. Na prática, como O processo, de Kafka, On the road poderia continuar ad eternum, em uma infindável sucessão de idas e vindas, mas o livro só termina mesmo quando Sal finalmente supera Dean.
O final de um livro revela seu enredo. Por isso, é sempre interessante reparar onde as narrativas começam e terminam, pois essas balizas nos revelam qual é a história sendo contada – algo nem sempre óbvio.
Um exemplo: o que os últimos seis capítulos do Senhor dos Anéis revelam sobre o plano geral do livro? Afinal, a história poderia ter acabado com a destruição do anel e a vitória sobre Mordor, não? Seria até um final natural... Por que então Tolkien escolheu não terminar o livro ali? Se o Senhor dos Anéis não é a história da vitória sobre Sauron... é a história do quê? A adaptação cinematográfica de Peter Jackson é incrível, quase um milagre, na verdade, mas Tolkien teria odiado – como Stephen King odiou a adaptação de Kubrick para O iluminado – porque, ao omitir o final que Tolkien considerava dar sentido a toda obra, Jackson está efetivamente contando outra história.
Pois On the road começa com Sal conhecendo Dean e termina no momento em que ambos se esbarram na rua, em Nova York, Dean chama “vem”, e Sal, escaldado, responde “não, obrigado, estou com amigos, a gente se vê.” Em literatura, tudo é contexto. Então, cabe ressaltar que essa cena não é mostrada como “a derrota de Sal” ou “vejam como Sal ficou careta”, “a vida derrotou Sal”, “o bobão do Sal ficou pra trás enquanto Dean ganhou o mundo”, etc. Pelo contrário, o que a cena mostra é: Dean está só, depois de passar a vida usando e abusando de todos; e Sal, nosso alter-ego, está sábio o suficiente para não mais se deixar vampirizar. E, nesse momento, termina o livro.
Ou seja, On the road é não uma celebração da estrada (se fosse, o livro terminaria com todos alegremente ainda dirigindo pelo país) mas sim a história do amadurecimento de Sal Paradise. De como ele finalmente aprendeu a dizer “não”.
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