O patriotismo é uma comunidade imaginada, mas nem por isso menos real
O patriotismo é uma prisão porque, mesmo sabendo que é fictício, não conseguimos desligá-lo. (Reflexões sobre a Prisão Patriotismo.)
O patriotismo é uma comunidade imaginada, ou seja, é uma ficção inventada para que pessoas que não se conhecem sintam que estão unidas por algo maior que elas. Entretanto, não é por ser ficctício que ele é menos verdadeiro e concreto: nossas escolhas, em larga medida, foram determinadas por milênios de decisões acumuladas de nossas pessoas antepassadas. Essas abstrações políticas imaginadas que nos dão passaportes e garantem nossos direitos constitucionais também nos limitam e nos possibilitam de diversas maneiras diferentes.
(A próxima aula do Curso das Prisões, Prisão Patriotismo, acontece na quarta agora, 31 de maio de 2023, às 19h. Todas as aulas ficam gravadas. Ao entrar no curso, você tem acesso total às aulas anteriores. Mas vou te contar: o legal mesmo são as conversas livres… que não ficam gravadas! Compre aqui.)
O patriotismo é uma comunidade imaginada
Somos uma espécie em busca de padrões. Talvez nossa maior habilidade enquanto espécie seja olhar para o mundo a nossa volta, buscar padrões e, em cima deles, criar narrativas. Desde a pré-história, já levantávamos os olhos para o céu, víamos um punhado de pontos de luz e logo já criávamos a constelação de escorpião ou de touro, cada uma decorada com longas e elaboradas historinhas de morte e traição, que terminavam sempre com os deuses transformando alguém em estrela.
Hoje em dia, o jornalismo esportivo durante a Copa do Mundo é pura literatura, onde longas e épicas narrativas nacionais se entrecruzam ao infinito. A seleção de Mordor não ganha da Latvéria desde 1963! O maior jejum na história das Copas foi de Oz, que ficou sem ganhar um jogo entre as Copas de 1133 e 1345!! Hoje é dia da revanche: vai ser a oportunidade de Avalon se vingar das duas derrotas que sofreu nas mãos da Ciméria, em 1928 e 1969!!! Sempre que Asgard enfrenta Westeros em um dia par, ela perde: será que o padrão vai se repetir hoje também, Galvão?! Etc, etc.
Nada contra o futebol e nada contra essas narrativas épicas, que não são menos reais e eletrizantes por serem imaginadas. Afinal, não fossem essas narrativas simbólicas, que nos colocam dentro de uma tradição centenária de dramas emocionantes e inacreditáveis reviravoltas, uma partida de futebol seria apenas uma hora e meia de milionários brincando de bola para nos distrair do fato de que nunca, nunca teremos o estilo de vida privilegiado que eles têm.
Mas existe uma diferença. Acompanhamos a novela, e odiamos a vilã, e amamos a mocinha, ou vice-versa, e aqueles fatos que nunca aconteceram com pessoas que nunca existiram realmente nos fazem sentir emoções fortes e verdadeiras, choramos, gargalhamos, odiamos. Depois que desligamos a TV, porém, por mais que tenhamos nos emocionado profundamente, sabemos que nada daquilo era verdade, e que nem a obra e nem nossas emoções deixaram de ter valor por causa disso.
O problema do patriotismo é que, por mais que saibamos da sua ficcionalidade inerente, temos muita dificuldade em desligá-lo.
Nosso chão é mais concreto que nossa nação
A palavra país veio do italiano paese. No original, não quer dizer somente país ou pátria. Mio paese também quer dizer minha vila, minha cidade, meu bairro. Onde quer que eu me sinta em casa.
Uma norte-americana morando no Rio uma vez me contou que ficou no ponto por horas esperando o ônibus parar e nada. Até que percebeu que, aqui no Brasil, você precisa chamar o ônibus, senão ele não para no ponto. Ser uma pessoa estrangeira é isso: perder horas da sua vida por desconhecer uma regrinha boba. Algo que nunca aconteceria no seu paese. Mio paese é onde sei todas as regras, onde eu sei me virar. Pombo de cidade grande não morre atropelado.
No meu passaporte, legalmente, sou brasileiro, mas seria muita presunção minha me pensar brasileiro. Não conheço o Brasil. Não sei como as coisas funcionam no Amapá. Não imagino como seja a realidade do Acre. Na verdade, minha própria cidade é grande demais para ser minha: existem bairros com costumes e realidades que também desconheço.
Não vou dizer que amo esse chão. Chão não se ama. Chão é chão. Pedra, terra. Mas sinto, de maneira profunda e real e concreta, que esse chão é meu. A geografia nos ensina que o o chão, ou seja, o espaço, não é simplesmente um espaço, mas também é produto, condição e meio das relações humanas. De um modo bem real, eu sou essas ruas, essas praias, essas montanhas, essas lagoas. Minha vida e minha subjetividade foram moldadas pelo aterro do Flamengo, pela favela do Vidigal, pela lagoa de Marapendi.
O mundo é cheio de problemas: assisto Juno e fico comovido com toda a questão da gravidez infantil, aborto e adoção, mas assisto Tropa de Elite e o filme me aponta um dedo direto na cara: esse é o problema da minha época, da minha terra, da minha geração. Na loteria da História, foi essa batata quente que me coube. O bônus é meu, o ônus também.
O patriotismo não é menos real por ser imaginado
Não quero inocentar a metrópole: se o noticiário brasileiro finge que o Equador e a Nigéria não existem, o noticiário europeu e norte-americano também. Como vimos na Prisão Classe, o pecado de não olhar quase nunca para baixo (ou seja, de quem consideramos, do alto de nossos preconceitos, que está abaixo de nós) é um dos mais disseminados do mundo. Somente olhamos, e consumimos a cultura, e imitamos as tendências, e nos interessamos pelas últimas notícias, de quem percebemos como nossos iguais, ou de quem respeitamos e tememos como nossos pretensos superiores.
A diferença é que o Brasil se considera acima do Equador e da Nigéria. Já os Estados Unidos e a Europa, por seu lado, colocam Brasil, Equador e Nigéria no mesmo saco. Para o arrogante patriotismo brasileiro, é justamente essa a maior humilhação.
O Brasil, visto de fora
Morei em Nova Orleans por seis anos. Trabalhei no Departamento de Espanhol e Português considerado o segundo mais produtivo do país. A biblioteca da minha universidade tinha o segundo maior acervo latino-americano dos Estados Unidos.
Nas minhas aulas, ensinadas em português, pessoas alunas norte-americanas (mas não somente) liam, no original, autores como Carolina Maria de Jesus, José de Alencar, Machado de Assis, Lima Barreto, Rubem Fonseca, Clarice Lispector, Gilberto Freyre, Dias Gomes, Ariano Suassuna, Nelson Rodrigues, entre outros. Apaixonadas pela língua e pela cultura brasileira, minhas pessoas alunas não eram somente estudantes de literatura voltadas para uma carreira acadêmica. Em minha sala de aula, havia médicas estudando doenças tropicais, advogadas se especializando em direito internacional, empreendedoras querendo fazer negócios com o Brasil, ativistas buscando trabalhos em ONGs brasileiras. Minhas pessoas alunas viam o Brasil como uma economia pujante e uma cultura exuberante. Achavam que o Brasil iria longe e queriam fazer parte disso. Consideravam que, no futuro, onde quer que estivessem, falar português e entender o Brasil iria lhes trazer oportunidades pessoais e profissionais.
Antes de sair do Brasil, eu não via nada disso. No exterior, aos poucos, comecei a perceber.
Na universidade norte-americana, eu estudava e trabalhava ao lado de colegas de todos os países da América Latina. Por falta de oportunidades em seus países, iam ficando, ficando e, quando percebiam, tinham feito a vida e a carreira nos Estados Unidos.
Um dos colegas era um homossexual salvadorenho com uma tese brilhante sobre o discurso machista e as imagens fálicas nas eleições latino-americanas. Ele gostaria muito de voltar para El Salvador – mas pra fazer o quê? Nos EUA, ele em breve seria um professor universitário merecidamente bem pago. Em El Salvador, além de sofrer forte preconceito, suas perspectivas profissionais eram minúsculas – e ainda menores por sua orientação sexual.
Apesar de estudar a América Latina e morrer de saudades de seus países, muitas das minhas colegas latino-americanas tinham simplesmente se resignado de que a única maneira de terem vidas dignas como acadêmicas era morando nos Estados Unidos.
Enquanto isso, no Brasil, foram criados 110 novos campi de universidades federais em 27 estados brasileiros somente entre 2003 e 2009 – isso pra não falar da explosão de universidades particulares que, apesar de não terem pesquisa de primeira, oferecem não só capacitação para centenas de milhares de alunas mas também empregos para outras centenas de milhares de professoras universitárias.
Percebi então que eu, pessoa brasileira, tinha escolhas. Como tantas colegas, eu poderia fazer a escolha perfeitamente válida de ficar nos Estados Unidos e construir ali uma carreira. Mas, ao contrário da maioria delas, eu tinha a escolha de voltar para um país com um campo universitário amplo, livre e bem-pago, onde poderia desenvolver as mesmas pesquisas que desenvolveria nos Estados Unidos, onde também poderia construir uma carreira próspera. E eu tinha essa escolha, ao contrário do meu colega salvadorenho, não por mérito meu ou demérito dele, mas porque éramos ambos herdeiros de milênios e milênios de decisões acumuladas de nossas pessoas antepassadas, que nos trouxeram a esse momento histórico no qual a cidadania brasileira, de fato, oferece uma gama de escolhas que a cidadania salvadorenha não oferece.
Para bem ou para mal, essas abstrações políticas imaginadas que nos dão passaportes e garantem nossos direitos constitucionais também nos limitam e nos possibilitam de diversas maneiras diferentes.
Um lembrete: não estou acima de nada que critico
Entre os países que mencionei acima, estão o Congo e o Zaire. Na verdade, como fui saber depois, existem dois Congos: a República Democrática do Congo (cujo nome anterior era Zaire) e a República do Congo (também chamada de Congo-Brazzaville ou Congo-Brazavile).
Mas eu, do alto da minha arrogância patriótica brasileira, salpiquei esses países no meu texto como quem espalha cebolinha no macarrão, como se fossem cidades em Westeros ou na Terra-Média, apenas uns nomes sem existência concreta. Afinal, Honduras ou Nicarágua, esse Congo ou aquele Congo, que diferença faz, não?
Quem me chamou atenção para esse ponto foi Elisa Maia, coordenadora do Programa de Estudante-Convênio de Graduação (PEC-G), do Governo Federal, que diariamente lida com estudantes do mundo inteiro, e de ambos os Congos, que desejam estudar no nosso país, graças às condições educacionais que oferecemos. Muito obrigado, Elisa.
Quando escrevo denunciando um tipo de comportamento, quando escrevo sobre ser prisioneiro do padrão de beleza da mídia, sobre narcisismo e autocentramento, sobre patriotismo e preconceito, não estou nunca escrevendo de cima para baixo, como um guru intocável que conseguiu atingir um comportamento ilibado falando para as pobres coitadas lá embaixo que ainda não chegaram ao seu nível de iluminação.
Pelo contrário, estou falando a partir dos subterrâneos, do meio da multidão, como mais uma rota entre tantas esfarrapadas; estou falando justamente da batalha diária que travo comigo mesmo, todo dia, o tempo todo, para ser uma pessoa menos escrota, menos conformista, menos egoísta, menos superficial, menos vaidosa.
O único dedo que aponto é para mim mesmo. Sempre. Se a carapuça que escrevi para mim também servir em vocês, melhor ainda. Quem sabe não conseguimos juntos virar pessoas humanas menos desagradáveis?
Não sou guru, não sou perfeito, não sou generoso. Sou profundamente egoísta, patologicamente vaidoso, intrinsecamente autocentrado, fundamentalmente preguiçoso.
Mas, e essa é minha esperança, talvez não para sempre.
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Série “As Prisões”
Aqui estão os textos já reescritos, revisados e finalizados em 2023:
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Não tem como escrever esses textos e dar essas aulas sem consumir uma enormidade de livros. Sou membro de três bibliotecas, baixo pirata tudo o que encontro e, ainda assim, acabo precisando comprar muitos livros importados.
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E muito, muito obrigado.
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O curso das Prisões
Em 2023, estou dando o Curso das Prisões.
Em maio, estamos conversando sobre a Prisão Patriotismo. Nossa aula expositiva acontece na quarta, 31 de maio de 2023. Antes disso, nas nossas conversas livres, no Zoom e no Whatsapp, estamos discutindo coisas como: Quais são nossas crenças fundantes? Existe ideologia melhor que outra?
Sim, ainda dá tempo de participar. Mais detalhes aqui.
Vem com a gente?
Excelente como sempre