O deserto e sua semente, de Jorge Baron Biza
Em seu único romance, Jorge Baron Biza transforma tragédia familiar em excelente literatura
Há muitas tragédias reais na origem de O deserto e sua semente, de Jorge Baron Biza, que a Companhia das Letras publica agora no Brasil. Mas esse romance, enquanto literatura, é maior, mais forte, mais real do que todas elas.
(A Folha de São Paulo acabou de publicar uma resenha minha desse romance. Como o espaço em jornal é reduzido, o texto saiu editado. Aqui, abaixo, vai o texto completo. Posso pedir um favor? Vão lá no texto da Folha, e comentem, compartilhem, retuítem? Muito, muito obrigado. Clicando nos links de livros e comprando qualquer coisa na Amazon BR, eu ganho uma comissão e te agradeço por apoiar meu trabalho.)
Tragédias
O pai do autor, Raul, era um milionário boêmio em Córdoba, Argentina. Sua primeira esposa, aviadora e atriz, morreu em um acidente de avião perto de sua estância. No local da queda, ele construiu um mausoléu de 82 metros de altura, até hoje o maior do país. Depois, se envolveu com política, passou a se considerar revolucionário, chegou a ser preso e se casou pela segunda vez com a filha de um governador radical, Clotilde Sabattini. O casamento não foi feliz. Clotilde logo começou a pedir o divórcio e Raul não aceitava. Finalmente, depois de décadas de tentativas, marcaram de assinar os papeis no apartamento dele. No meio da reunião, diante dos advogados, Raul jogou ácido sulfúrico no rosto da esposa. Clotilde, acompanhada do filho Jorge, de 22 anos, foi para Milão, enfrentar anos de cirurgias restaurativas. Já Raul, no dia seguinte e no mesmo apartamento, se matou com um tiro na cabeça. Foi primeiro de muitos suicídios.
De volta à Argentina, Clotilde, pedagoga e atuante na educação pública, continuou na política e conseguiu a aprovação de medidas importantes. Em 1978, porém, se atirou do mesmo apartamento onde sofrera o ataque e onde Raul se matara.
Dez anos depois, em 1988, foi a vez da irmã caçula de Jorge, tomando uma overdose. Escreveu ele:
“Recebi uma enxurrada de acolhimento quando aconteceu o primeiro suicídio. No segundo, a enxurrada se transformou num oceano oscilante e sem horizonte. Agora, depois do terceiro, as pessoas correm para fechar as janelas quando entro em um apartamento alto.”
Outros dez anos depois, em 1998, depois de ser rejeitado por várias editoras, Jorge publicou por conta própria a primeira edição de O deserto e sua semente, seu único romance.
No domingo, 9 de setembro de 2001, dois dias antes do atentado às Torres Gêmeas, Jorge também se atirou da janela – ao contrário do que afirma a orelha da edição brasileira, não do apartamento onde morreram seu pai e sua mãe, em Buenos Aires, mas do seu próprio, em Córdoba.
Uma de suas colaboradoras mais próximas, Fernanda Juárez, mantém um site sobre sua obra, onde podem ser conferidas inclusive fotos de alguns dos locais descritos no romance.
Linguagem
Boa parte do livro foi escrito em cocoliche, um dialeto argentino que mistura o espanhol com o italiano. Para o autor, como afirmou em uma entrevista, disponível no YouTube, o cocoliche era "um tema muito argentino”, “uma terra da liberdade, onde não se pode cometer erros”, pois “não há dois cocoliches iguais."
Naturalmente, se a instabilidade de tantos registros linguísticos torna a obra mais rica e mais complexa, ela dificulta e muito a vida do tradutor. Nesse quesito, Sergio Molina, que ganhou o Jabuti por sua tradução do Dom Quixote em 2004, merece parabéns pelo excelente trabalho.
Evita
Clotilde, a mãe, tinha uma relação de amor e ódio com Evita, esposa de seu rival Perón. Diziam que queria ser a “Evita radical”. Por uma ironia do destino, enquanto Clotilde se recuperava na clínica de Milão, o cadáver embalsamado de Evita jazia escondido a poucos quilômetros dali. Estavam juntas no exílio: Evita morta mas de corpo perfeito e imaculado; Clotilde, viva mas de corpo desfeito, queimado, desfigurado.
De volta à Argentina, Clotilde acaba tendo que se aliar a seus antigos rivais peronistas. No romance, depois de um comício, mãe e filho escutam uma velha peronista conversando em volta de uma fogueira, idealizando Evita como se fosse uma santa. Logo após, a mãe se mata. Na estrutura do romance, essa conversa claramente leva ao suicídio. Terá havido uma conversa assim na vida real? O que fez Clotilde desistir de tudo depois de doze anos de lutas médicas e políticas?
Para Baron Biza,
“essa velha é um dos poucos personagens inteiros, que não está se desintegrando, no romance. Sua fala é uma mescla de todas as falas regionais do país, espontânea e verdadeira, mas completamente inventada. Me custou horrores escrever essas páginas.”
A velha é a própria Argentina profunda, esfregando na cara de ambos intelectuais urbanos que eles jamais entenderão o furor peronista do povo.
Civilização versus barbárie
Na Argentina, o embate “civilização versus barbárie” está sempre em pauta, seja nas relações dos argentinos com a Europa, ou nas relações das províncias com Buenos Aires.
Baron Biza, morador de Córdoba, escrevia para os jornais de sua cidade como “correspondente em Buenos Aires” e, para os jornais da capital, como “enviado especial a Córdoba”. Sempre dentro, sempre fora. Sempre incluído, sempre excluído.
Já o narrador de O deserto e sua semente, como tantos argentinos de classe alta, descreve com minúcias as obras de arte e até a névoa de Milão, mas nunca se refere ao seu país pelo nome. Enquanto isso, também nunca nomeados no romance mas sempre presentes, Perón e Evita simbolizam a força popular que a elite jamais conseguirá entender – ou conter.
Autoficção
Excelente também a decisão de lançar esse livro no Brasil de hoje, vinte e cinco anos depois de sua publicação original, mas bem a tempo de servir como exemplo para nossa atual safra de autoficções.
Em literatura, não há maior crítica do que simplesmente fazer melhor: Baron Biza dá uma aula de como transformar a tragédia familiar em literatura de primeira ordem. Nunca condescendente, nunca se dando tapinhas nas costas, nunca querendo pagar de bom moço, nunca virando o rosto à dor, Baron Biza encara de frente a realidade de sua família: o crime hediondo do pai, o corpo destruído da mãe, a própria misoginia violenta dentro de si.
O que faz da arte algo tão potente e universal? O que faz de um livro uma obra prima? É só através da arte, escreveu o antropólogo norte-americano Ernest Becker, que o indivíduo consegue criar algo maior que si mesmo e, assim, superar a própria morte. Pois foi essa batalha que Baron Biza encampou: ele olha para as vidas e as mortes de sua família e, pela coragem de seu testemunho, transforma esse olhar em arte.
Ao mudar os nomes e os detalhes de uma tragédia pública e bem-conhecida, O deserto e sua semente não se permite ler como nenhum “auto”: nem como autobiografia, nem como autoficção. A pessoa leitora sabe que, apesar de baseada na vida real (pois como não?), está diante de uma obra de arte poderosa e independente que se basta por si só.
Para Baron Biza, um dos maiores perigos da autobiografia, junto com a autocomplacência, era reduzir tudo a fofoca. A saga de sua família, dizia ele, era um sol negro que tragava tudo e impedia que o romance fosse apreciado por seus méritos literários. Cabe a nós, leitores, não cair nesse erro.
Em seu único romance publicado, o autor realizou todo o potencial da melhor literatura: transformou a sua dor, e a de sua família, em um texto que vai perdurar enquanto existirem pessoas interessadas em pessoas.
Em uma matéria jornalística sobre o possível suicídio de um comediante, Baron Biza se pergunta: “O que acontecerá com os que ficam?” A resposta, ao menos para nós, é que ficamos com O deserto e sua semente.
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