Novo romance de Pamuk sobre a Turquia de Erdogan vale igual para o Brasil de Bolsonaro
Quem diria que um romance turco poderia nos ensinar tanto sobre o Brasil
Orman Pamuk, autor turco e ganhador do Nobel de Literatura, olha para a Turquia de Erdogan e, assim como nós olhando Bolsonaro e Damares, se pergunta: “Quem são essas pessoas? De onde vieram? Como posso só estar percebendo esse fenômeno agora? O que aconteceu com meu país?!” Quem diria que um romance turco poderia nos ensinar tanto sobre o Brasil.
(Esse texto foi encomendado pela e publicado na Folha de São Paulo. Como o espaço em jornal é reduzido, o texto saiu editado. Aqui, abaixo, vai o texto completo. Posso pedir um favor? Vão lá no texto da Folha, e comentem, compartilhem, retuítem? Muito, muito obrigado. Clicando nos links de livros e comprando qualquer coisa na Amazon BR, eu ganho uma comissão e te agradeço por apoiar meu trabalho.)
Em 1453, os turcos conquistaram Constantinopla e trocaram seu nome para Istambul, derrubando o último herdeiro do Império Romano e encerrando a Idade Média. Pelos séculos seguintes, foram uma ameaça existencial à Europa cristã. Sem a ameaça turca no Mediterrâneo, teriam os ibéricos se lançado ao Atlântico e chegado às Américas e ao Brasil? Cervantes, em 1570, perdeu um braço combatendo-os; Byron, já em 1824, morreu de febre às vésperas de combatê-los. No máximo de seu poder, em 1683, quase conquistaram Viena. Depois de uma longa decadência, no estalar da Primeira Guerra, em 1914, eram considerados “o homem doente da Europa”: a dúvida era quem ficaria com o espólio.
Ao fim da guerra e perdido o império, exatamente cem anos atrás, um líder forte e carismático lançou a Turquia em um experimento político, religioso e social inédito: era possível um país muçulmano ser uma república secular, moderna, democrática? Essa foi a aposta de Mustafá Kemal (1881-1938), que adotou o nome de Atatürk, ou seja, “pai dos turcos”. Até hoje, seus “filhos” ainda vivem na Turquia inventada por ele
A questão é: por quanto tempo? Por um lado, a Turquia continua mais ocidental do que nunca, inclusive membro da OTAN. Por outro, Recep Tayyip Erdoğan acabou de vencer sua terceira eleição presidencial consecutiva e tem se mostrado cada vez mais autocrático, atiçando forças religiosas conservadoras que há muito tempo não tinham tanto poder. Na Istambul de 2023, a quantidade de mulheres vestindo burcas em público era impensável vinte, quarenta, sessenta anos atrás.
Atatürk e Erdogan não foram citados à toa. “A mulher ruiva”, publicado na Turquia em 2016 e que sai no Brasil pela Companhia das Letras, é sobre paternidade. Como verdadeiros pontos de fuga, tudo no romance aponta para essas duas figuras, paternas e polarizantes, mesmo sem nunca as mencionar:
“A necessidade de um pai existe sempre, ou nós a sentimos apenas quando estamos confusos ou angustiados, quando nosso mundo está vindo abaixo?”
A história começa em 1984, à sombra do golpe de estado de 1980 − o pai do narrador, militante marxista, havia sido preso e torturado pelos militares − e termina em 2015, já sob Erdogan e num contexto de crescente radicalização religiosa, onde jovens conservadores interpelam pais liberais usando seu próprio discurso secular contra eles:
“Se você me quer filho obediente, não posso ser um indivíduo moderno. Se me quer moderno, não posso ser obediente. ... A liberdade exige que se esqueçam história e ética. Já leu Nietzsche?”
No cerne do romance estão essas perguntas: o que é ser pai? O que é ser filho? Ao longo da narrativa, são mencionadas diversas obras onde pais e filhos se matam, desde peças, como “Édipo Rei”, onde o filho mata o pai, até poemas, como o épico persa “Shahnameh”, onde o pai Rostam mata o filho Sohrab, passando também por muitas pinturas e ilustrações. (Vale a pena buscar pelas referências iconográficas, especialmente o quadro “Ivan, o Terrível, e o seu filho Ivan em 16 de novembro de 1581” pintado por Ilia Repin em 1885, abaixo.)
O narrador, por exemplo, depois de ficar obcecado pela história persa, desiste de ter filhos e abre uma empresa. O nome da pessoa jurídica? Sohrab, o filho morto pelo pai. O que isso significa? As menções a livros e pinturas se sucedem freneticamente: são tantas armas de Tchecov penduradas na parede que não sabemos qual vai disparar. Talvez nenhuma. Talvez todas.
O autor, Orhan Pamuk, nascido em 1952 e educado nos Estados Unidos, ganhador do Nobel de Literatura de 2006, é um homem cosmopolita e laico que, apesar de amar a cultura e as tradições do seu país, vê com preocupação o declínio do secularismo turco. Em vários momentos, a surpresa e o horror dos personagens da geração de Pamuk diante do conservadorismo religioso da nova geração fazem triste eco a muitas pessoas brasileiras igualmente surpresas e horrorizadas diante de Malafaia ou Damares:
“Quem são essas pessoas? De onde vieram? Como posso só estar percebendo esse fenômeno agora?”
Comparado às longas obras-primas do autor, como “Meu nome é Vermelho” e “Neve”, o relativamente curto “A mulher ruiva” serve como excelente ponto de entrada. Por ser um livro de muitas reviravoltas, pouco pode ser dito em uma resenha de jornal que não vá interferir na jornada que Pamuk elaborou. A graça está em pegar na mão do narrador e se deixar levar, nunca esquecendo – não somos todos filhos de “Dom Casmurro” à toa – de desconfiar sempre.
Trecho:
“Parece que todos desejaríamos ter um pai forte e decidido nos dizendo o que fazer e o que não fazer. Será que esse desejo nasce da dificuldade de distinguir o que devemos do que não devemos fazer, o que é certo do que é errado? Ou se deve ao fato de precisarmos o tempo todo nos convencer de que somos inocentes e não pecadores? A necessidade de um pai existe sempre ou nós a sentimos apenas quando estamos confusos ou angustiados, quando nosso mundo está vindo abaixo?” (Capítulo 29)
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Grande Conversa Medieval: quando as línguas eram jovens e tudo estava em aberto
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Grande Conversa Medieval
O curso Grande Conversa Medieval não é apenas para pessoas interessadas em história e cultura medieval, mas para qualquer leitora apaixonada por literatura. Os objetivos mais óbvios do curso são dois:
— Apresentar às pessoas alunas algumas das autoras e obras, conceitos e fatos, mais conhecidos da Idade Média, aquelas que talvez já tenham até ouvido falar mas não saibam bem quem são, de Tristão e Isolda a Abelardo e Heloisa, das Cruzadas ao Graal, de Marco Polo ao Rei Arthur, das Mil e uma noites ao Orlando Furioso, de Chaucer a Petrarca;
— Suprir uma lacuna nas histórias literárias que sempre tratam esse período como um grande buraco escuro entre a Antiguidade e o Renascimento. Como me perguntou uma aluna, “Por que tem tão poucas obras-primas literárias na Idade Média?” Pois o curso é para mostrar que tem muitas.
Mas existe um terceiro objetivo, talvez surpreendente e bem mais importante, que será o nosso foco principal.
A Idade Média europeia foi um dos períodos mais ricos em inventividade linguística e criatividade literária da história do mundo. Quando o latim já estava engessado pela idade e pela obsolescência, e as línguas modernas ainda não estavam engessadas pelas gramáticas e pelas convenções, houve um mágico intervalo de tempo onde todas as possibilidades estavam em aberto, tudo ainda era possível, qualquer experimento literário parecia factível.
Por isso, o grande objetivo do curso será não uma busca pela tradição ou pela essência do Ocidente, como tantas pessoas conservadoras idealizam na Idade Média (Deus me livre, que curso chato seria esse!), mas sim uma busca, a partir de uma perspectiva de esquerda, pelo novo e pelo estranho, pelo inesperado e pelo subversivo.
Hoje, em larga medida, nossos cânones, estilos e gêneros literários mais caretas ainda são aqueles da Antiguidade greco-romana, como foram “recuperados” pelos homens renascentistas que tentavam superar as “trevas” dessa “idade média” que acabavam de inventar.
Por isso, quando nossas vanguardas literárias mais experimentais decidem atacar toda essa caretice institucional, onde mais buscar inspiração que não nessa Idade Média tão rejeitada, tão escondida, tão surpreendente?
Paradoxalmente, portanto, e essa é a premissa no cerne do nosso curso, a literatura medieval hoje é mais subversiva, experimental e, por que não?, inovadora do que as literatura antiga ou moderna, realista ou modernista.
Guerra e paz e Os miseráveis, A montanha mágica e Os maias, Vidas secas e O estrangeiro, Dom Quixote e Dom Casmurro são maravilhosos (amo todos de paixão mesmo!), mas também são diferentes variações do mesmo molde novelesco realista.
Já Cantar do meu Cid não tem nada a ver com nossa ideia de uma poesia épica medieval. Abelardo e Heloísa, Tristão e Isolda, um casal real e outro ficcional, também não correspondem às nossas ideias de como seriam os casos de amor medievais. As sagas islandesas tem o vigor e a frescura da literatura contemporânea. François Villon, bandido e assassino, poderia ser um poeta trash em qualquer grande cidade atual. Tomás de Aquino, concordando ou não com suas premissas, é um verdadeiro professor de como pensar e desenvolver um argumento logicamente. Marco Polo era um mercador prático que descreveu suas viagens como um guia sóbrio para futuros homens de negócios. Alcassino e Nicoleta é único ao ponto de ser um gênero literário composto de uma só obra. As cantigas de amigo que aprendemos na escola são muito mais complexas e picantes do que nos ensinaram. Petrarca só parece lugar-comum porque inventou nosso conceito de “Eu” e passou 700 anos sendo imitado à exaustão. O Orlando Furioso talvez seja o clássico canônico mais puramente divertido de todos. Por fim, até hoje, não existe nada na literatura parecido à Celestina. (O Cid, o Orlando, a Celestina estão entre minhas obras preferidas da vida e quero muito compartilhá-las com vocês.)
Então, se te perguntarem por que está fazendo um curso de literatura medieval (!) em pleno 2024 (!!), responda:
“Pra ler uma literatura tão radicalmente nova que eu nem imaginava que pudesse existir (!!!) e que eu nunca teria encontrado por conta própria sem esse curso.” (!!!!)