Nosso futuro por um iPhone
A decisão de organizar nossa sociedade de acordo com leis amorais é uma decisão moral.
Existe uma lenda de que as habitantes originárias das Américas teriam trocado seu continente, suas matas e seus rios, por espelhinhos e bugigangas. Não é verdade: essas pessoas foram violentamente conquistadas. Quem está voluntariamente trocando suas matas e seus rios por espelhinhos e bugigangas, seu futuro por um iPhone, somos nós, hoje, agora.
(A Prisão Autossuficiência, a aula do Curso das Prisões de fevereiro, é hoje, quarta, 26, às 19h. Não deixem de vir! Só para mecenas! Mas, se você não é mecenas, basta fazer uma contribuição no meu Apoia-se.)
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Prisão Crescimentismo
Se você acredita em crescimento infinito em um planeta finito, você deve ser uma pessoa louca. Ou uma economista.
Passamos milênios devotando todas nossas energias para a simples tarefa de sobreviver, arranjar comida, nos proteger dos elementos. Então, com nossa engenhosidade, conseguir domar esses inimigos e tivemos, em algumas partes do mundo, uns duzentos anos de folga. Foram boas férias: tirando um holocausto aqui e outro genocídio ali, inventamos os direitos humanos, abolimos a escravidão, fundamos a ONU. Mas acabou. Temos que voltar ao trabalho, ao mesmo trabalho de sempre: precisamos desviar nossas energias criativas de inventar novos apps para inventar maneiras de não morrer.
O que chamo de "as prisões" são aqueles conceitos tão hegemônicos, tão poderosos, tão unânimes, que se impõem a nós como únicas opções e nos cegam à possíveis alternativas. A monogamia é uma prisão não porque ela seja ruim ou desaconselhável, feia, chata e boba, mas porque ela se apresenta como sendo a única opção concebível de organizar nossos relacionamentos, consignando todas as outras alternativas à imoralidade, à falta de sentimentos, ao fracasso: "relacionamento aberto não funciona, é coisa de quem não ama de verdade". A felicidade é uma prisão não porque seja ruim ou desaconselhável, feia, chata e boba, mas porque se apresenta como sendo a única opção de fim último para a qual aspirarmos, consignando todas as outras alternativas à condição de suas coadjuvantes e dependentes: "não é que o seu fim último seja ser virtuosa, mas você quer ser virtuosa para ser feliz, logo o seu fim último é ser feliz". Etc.
Dentro dessa definição, capitalismo e comunismo, enquanto sistemas econômicos, não podem ser considerados "prisões", pois mesmo a mais ferrenha defensora de um reconhecia a existência e os argumentos do outro, embora negasse sua validade. Já o Crescimento claramente é uma prisão: nossas líderes, à esquerda e à direita, em todo mundo, discutem como crescer melhor, como crescer mais sustentavelmente, como retomar o crescimento, mas ninguém questiona o crescimento, ninguém vê nenhuma alternativa a ele. Como um sapo de charuto na boca, não temos opção a não ser inchar até explodirmos.
Lula contra Bolsonaro, capitalismo contra comunismo, Estados Unidos e China, são todas danças das cadeiras no convés do Titanic. Quando nosso maior risco de colapso civilizacional era o nuclear, pelo menos, havia um consenso: as líderes soviéticas e norte-americanas tinham, como uma de suas prioridades, evitar um holocausto atômico. Agora, nem isso. No país mais poderoso do mundo, de quem dependemos para liderar esse processo, metade do establishment político nega peremptoriamente o risco que estamos correndo.
As cientistas já soaram o alerta desde a década de 1970: o tempo está acabando. Segundo algumas, já acabou. Mas suas descobertas vão contra fundamentos muito arraigados da economia política e da política econômica: dogmas difíceis de questionar, preconceitos difíceis de desconstruir. Deveríamos estar ativamente resolvendo o problema, mas a Prisão Crescimentismo é tão forte, tão envolvente, que nem conseguimos alcançar um consenso sobre a existência do problema, muito menos sobre qual seria a melhor solução. Falta planejamento econômico, falta liderança política.
Antes, nosso problema de sobrevivência era individual. Depois, passou a ser a sobrevivência de nossos pequenos grupos nômades: clãs, famílias, tribos. Mais tarde, nos assentamos para plantar batatas e começamos a nos preocupar com a sobrevivência de nossos grupos cada vez maiores: cidades, estados, nações. Hoje, gigantescos grupos de pessoas que não se conhecem, nem poderiam se conhecer, conseguem se unir sob um rótulo nacional para lutar por sua sobrevivência contra outros grupos unidos sob outros rótulos nacionais. Hoje, nosso desafio é dar o último passo: encontrar uma solução planetária para sobrevivermos juntas. Infelizmente, até hoje, nossa espécie nunca conseguiu alcançar nenhum consenso. Talvez não seja possível. Talvez ainda estejamos discutindo o aquecimento global quando as águas nos engolirem.
A luta não é para salvar nem o planeta nem a espécie. O planeta não corre nenhum perigo: pelo contrário, estará muito melhor sem nós. Nossa espécie não corre nenhum perigo: nos mais apocalípticos dos cenários, sempre vão haver pequenos grupos isolados de pessoas humanas se virando para sobreviver nos bolsões afastados do mundo. Nossos genes egoístas vão dar seu jeito de sobreviver e, em algumas centenas de milhares de anos, talvez evoluam em novas e diferentes espécies. A luta é para salvar nossa civilização: a língua portuguesa e o funk, a Mona Lisa e o jogo de damas, a Crítica da razão pura e Seinfeld, o YouTube e Shakespeare.
Na verdade, nossa civilização já está condenada: ela é, literalmente e matematicamente, insustentável — uma palavra forte cuja força se perdeu pelo excesso de uso. Se é insustentável que nossa civilização continue existindo, então, nossas escolhas são duas. Ou seguimos crescendo até o colapso e, então, cada sociedade se transformará em uma versão diferente de Mad Max. Ou tomamos controle desse processo, freamos o consumo, buscamos alternativas para o crescimento, contraímos nossas economias de maneira ordenada e planejada, e vamos criar, juntas, a próxima, novíssima, possível civilização humana.
A luta é para evitar que nossas bisnetas, vivendo em cavernas e se alimentando de raízes, limpem o cu com a última página do último exemplar de Dom Casmurro.
[*Sobre decrescimentismo, recomendo Pequeno tratado do decrescimento sereno (2007), de Serge Latouche; Democracia econômica. Alternativas de gestão social (2013), de Ladislau Dowbor; Deep economy: the wealth of communities and the durable future (2007) de Bill Mckibben; Prosperity without growth: economics for a finite planet (2009), de Tim Jackson; Beyond growth. The economics of sustainable development (1996), de Herman E. Daly. O grande clássico da área é Small is beautiful. Economics as if people mattered (1973), de E. F. Schumacher. O pensador atual inescapável é Nicholas Georgescu-Roegen, seja em suas próprias obras, como a coletânea O decrescimento. Entropia. Ecologia. Economia (2008), ou em obras que expliquem suas ideias, como A natureza como limite da economia. A contribuição de Nicholas Georgescu-Roegen (2010), de Andrei Cechin. Por fim, pode ser interessante ler sobre esses mesmos assuntos, mas a partir de uma perspectiva budista. Recomendo Buddhist economics. An enlightened approach to the dismal science (2017), de Clair Brown; Buddhist economics: a middle way for the market place (1996), de Prayudh Payutto, e toda a obra de David R. Loy, especialmente A Buddhist history of the West: studies in lack (2002), The great awakening: a Buddhist social theory (2003), Money, sex, war, karma: notes for a Buddhist revolution (2008) e A new Buddhist path: enlightenment, evolution, and ethics in the modern world (2015).]
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Quais bens escolhemos valorizar?
Qual é o valor das coisas-sem-valor que destruímos para produzir as coisas-que-valorizamos? Será que vale a pena?
Toda produção é uma destruição.* Ao produzir um automóvel, quilos de metal, vidro, borracha, etc, deixam de existir, mas um novo objeto, o automóvel, passa a existir: vale a pena produzir um automóvel porque seu valor final (não apenas o preço) é visto como superior ao valor final da soma da matéria-prima que o compõe.
Mas não é só essa matéria que é destruída (ou seja, utilizada) para a produção do automóvel: o processo também utiliza capital natural, ou seja, nosso “estoque”, renovável ou não-renovável, de água, ar, florestas, minerais.** Em economia, externalidade é quando uma ação minha (digamos, fabricar um automóvel) gera efeitos externos que serão sentidos por terceiros que não participaram da minha ação (digamos, pessoas ficarem sem água potável porque a fabricação do meu automóvel poluiu um rio). Então, se utilizo uma tonelada de aço para produzir um automóvel, uma tonelada de aço foi destruída e um automóvel foi produzido. Assim, simplificando grosseiramente e fingindo que nada mais foi utilizado, se a tonelada de aço custava mil reais e o automóvel, trinta mil, gerei um valor de R$29 mil.
Mas digamos que, para fabricar um automóvel, eu preciso poluir um rio. Como um rio não tem valor, eu não gastei nada, fabriquei um automóvel que custa trinta mil e gerei um valor de trinta mil.
Algumas economistas gostam de dizer que toda a ciência econômica pode ser resumida a uma única frase: “incentivos funcionam”. Hoje, de acordo com a maneira que escolhemos organizar nossa sociedade, a indústria tem todo o incentivo do mundo para fabricar um automóvel utilizando o mínimo possível de aço, mas não tem nenhum incentivo para utilizar o mínimo possível de capital natural. Quando escolhemos valorizar o aço mas não um rio, o que estamos incentivando?***
Como um exercício conceitual, um grupo de economistas estimou que o valor total do capital natural do planeta estaria, por baixo, em torno de 54 trilhões de dólares — em comparação, a economia mundial movimenta anualmente cerca de 18 trilhões de dólares.****
De acordo com outros cálculos, se incorporássemos ao custo da gasolina todo o dano que a extração e o refino de petróleo fazem ao meio ambiente, o preço final do litro seria quatro vezes maior.
Naturalmente, esses números são discutíveis e outro grupo talvez encontrasse estimativas muito diferentes: o principal objetivo do exercício é chamar atenção para a necessidade de internalizarmos as externalidades.
Se fossem levados em conta os custos de utilização do capital natural do nosso planeta, as principais indústrias do mundo não seriam lucrativas: o custo real da gasolina (e de quase tudo mais que fabricamos) não apenas é muito mais alto do que pagamos hoje, mas também é muito mais alto do que podemos pagar.*****
Perceberíamos, talvez, que o gigantesco e permanente custo real de produzir certos objetos (quem sabe, a maioria) simplesmente não compensa o pequeno e efêmero benefício que tiramos deles.******
[*Quem diz que “toda produção é destruição” é o monge budista tailandês Prayudh Payutto, em Buddhist economics: a middle way for the market place, cap. 3.]
[**A relação entre os conceitos de capital natural, manufaturado, cultural e cultivado pode ser encontrada no artigo “Capital natural crítico: a operacionalização de um conceito” (2005) de Valdir Frigo Denardin e Mayra Taiza Sulzbach.]
[***Quem afirma que as principais indústrias do mundo não seriam lucrativas se fosse levado em conta o seu uso de capital natural é o relatório “Natural capital at risk: the top 100 externalities of business”, conduzido em 2013, pela empresa Trucost para o programa TEEB (The economics of ecosystems and biodiversity) da ONU. Vale a pena ressaltar: de acordo com o estudo, a segunda atividade econômica mais destrutiva para o capital natural mundial é criação de gado na América do Sul (A primeira são as usinas termoelétricas a carvão chinesas.)]
[****A estimativa do valor total do capital natural do planeta está no artigo “The value of the world’s ecosystem services and natural capital” (1997), escrito por Robert Costanza e outros.]
[*****A estimativa do custo real do litro da gasolina está em Deep economy: economics as if the world mattered (2007), de Bill Mckibben, cap. 1, onde o autor sugere que a estimativa veio de Costanza. De qualquer modo, o que importa para o argumento é que o custo real da gasolina é mais alto do que o preço que pagamos por ela.]
[******Outros artigos em português sobre capital natural: “Capital natural na perspectiva da economia” (2002), de Valdir Frigo Denardin e Mayra Taiza Sulzbach; “Valorando o capital natural e os serviços ecológicos de unidades de conservação” (2004), de Irina Mikhailova e Francisco Antônio Rodrigues Barbosa; “Capital natural, serviços ecossistêmicos e sistema econômico: rumo a uma ‘economia dos ecossistemas'” (2009), de Daniel Caixeta Andrade e Ademar Ribeiro Romeiro.]
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Quais atividades escolhemos valorizar?
Ao escolher valorizar algumas atividades e não outras, a sociedade está literalmente nos dizendo quais atividades têm valor e quais não tem valor algum.
O produto interno bruto (PIB) é a soma dos bens e serviços trocados em uma sociedade. Se as pessoas dessa sociedade escolhem gastar seu dinheiro com esses bens e serviços é porque consideram que eles têm valor. Logo, são bons. Logo, quanto mais deles, melhor. Daí ser considerado autoevidentemente positivo o PIB ser maior do que menor. Na teoria, de fato, o PIB não faz nenhum julgamento de valor, nunca diz que essa atividade é desejável e aquela, indesejável: ele apenas soma tudo e apresenta o valor final. Na prática, entretanto, uma série de decisões prévias sugere que o julgamento de valor já foi feito:
1. Quando escolhemos quantificar e valorizar algumas atividades e não outras (fabricar um revólver tem valor econômico; lavar a louça depois que minha mãe fez jantar, não.)
2. Quando escolhemos levar em conta no PIB essas atividades valoráveis e quantificáveis, e não outras (fabricar um revólver aumenta o PIB; lavar a louça depois que minha mãe fez jantar, não.)
3. Quando escolhemos calcular esses valores monetários como equivalentes (fabricar um revólver de mil reais ou fabricar uma bicicleta de mil reais ambos aumentam o PIB igualmente em mil reais cada.)
4. Quando escolhemos utilizar o PIB como a medida final mais importante para comparar economias. (o Brasil é o 9º país do mundo em PIB, mas é o 1º em homicídios, o 75º em desenvolvimento humano — IDH, e 120º em distribuição de renda — Gini).
Nós escolhemos nos organizar de acordo com um sistema que valoriza produzir armas, mas não cuidar de graça dos filhos da vizinha; que valoriza comprar um DVD de desenho animado de princesa, mas não contar para minha filha uma história que minha avó me contava; que valoriza tomar antidepressivos, mas não meditar no parque; que valoriza contratar uma empregada, mas não limpar a privada eu mesma; que valoriza comprar um novo fogão, mas não ouvir meu avô falando sobre a sua época enquanto conserta meu fogão antigo.
A decisão de organizar dessa maneira nossa sociedade, nossas trocas de serviços e nossas atividades produtivas, é uma escolha moral e cultural, que favorece algumas pessoas e desfavorece outras, e que traz consigo infinitas e imprevisíveis consequências éticas. Só o fato de nascermos em uma sociedade que tão obviamente escolhe valorizar algumas atividades e não outras já nos informa muito: não apenas sobre a escala de valores dessa sociedade, mas também, mais importante, sobre a escala de valores que essa sociedade espera que nós adotemos.*
[*A discussão sobre o PIB é um dos temas principais de Prosperity without growth: economics for a finite planet (2009), de Tim Jackson, especialmente caps. 1, 3 e 8.]
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A quem escolhemos responsabilizar?
O ser humano é naturalmente moral: ninguém quer ser a vilã do filme que está protagonizando em sua própria cabeça. Para que nossos incômodos sentimentos morais não atrapalhem nossa busca pelo lucro, para chafurdar na ganância e nunca sentir culpa, a melhor solução é diluir nossa responsabilidade.
É mais seguro ter um ataque cardíaco diante de uma única pessoa do que no meio de uma multidão. Uma pessoa sozinha diante de um cardíaco necessitado se sentirá na obrigação de ajudar, pois se não fizer nada, não haverá fuga possível de si mesma: ela sempre será a pessoa que deixou outra morrer. A responsabilidade é dela. Já no meio de uma multidão, a responsabilidade se dilui: cada uma daquelas pessoas pensa que as outras também poderiam ter ajudado e essa justificativa serve para aliviar a culpa. (na pior das hipóteses, sou tão ruim quanto todas elas.) Pior, como sempre julgamos as outras pessoas com muito mais severidade do que a nós mesmas, enquanto passamos por cima do cardíaco agonizante ainda nos daremos ao direito de nos indignar: “Ok, eu estava atrasada para a missa das sete, não podia mesmo ajudar, mas caramba, como é que pode nenhuma daquelas outras pessoas ter ajudado?! É o fim do mundo! Acabou a empatia!”*
Durante alguns anos, fui empresário. Em uma empresa pequena, tudo é pessoal: se minha funcionária me pede duzentos reais de aumento e eu nego, é porque quero esses duzentos reais para mim e para o meu sócio — nem que seja para que possamos escolher reinvestir esse dinheiro na empresa. Na prática, o meu “não” está dizendo:
— Eu te recuso esses duzentos reais (que ambos sabemos que representam 20% da sua renda e que fariam uma diferença significativa no seu conforto material e na sua qualidade de vida) porque quero mais cem reais no meu bolso (que você nem tem como saber quantos por cento da minha renda representam porque eu obviamente não compartilho essa informação!) mas que ambos sabemos que não farão nenhuma diferença no meu conforto material ou qualidade de vida.
Mas esse é um “não” muito difícil de dizer, justamente porque a minha funcionária e eu sabemos que tenho o poder de dizer “sim”. Então, eu, cobiçando aqueles cem reais (apesar de não me significarem nada), ansioso para que o malvado da história não fosse eu (naturalmente, a ansiedade é por saber que era) e incapaz de reconhecer (até para mim mesmo) a pequenez do que estava fazendo, só me restava passar adiante a responsabilidade pela mesquinharia:
— Olha, por mim, eu te daria esse aumento, eu juro. Aliás, se dependesse da minha vontade, você ganharia cinco mil! Eu te daria a minha última camisa! Palavra! Mas, infelizmente, ó, não posso. Você sabe que não sou o único sócio, né? Imagina, deus me livre!, se te dou esses duzentos! É capaz do meu sócio malvado brigar comigo, dar na minha cara, desfazer a sociedade, queimar minha vila, estuprar minha irmã, matar meu cachorro, o horror, o horror! Você entende, né?
Meu problema, enquanto empresário, poderia ter sido articulado da seguinte maneira: “Como fazer para que meus incômodos sentimentos morais não atrapalhassem minha busca pelo maior lucro?” E a única solução que me permitia, ao mesmo tempo, 1) manter intacta minha autoimagem de pessoa boa e generosa, e 2) embolsar os cem reais; era diluir a responsabilidade.
As empresas, ou seja, as pessoas jurídicas, foram inventadas (entre outras coisas) para limitar a responsabilidade das pessoas físicas que as compõem. Fala-se muito em empresas “Ltda”, abreviação de “limitada”, mas raramente menciona-se o substantivo ao qual o adjetivo “limitada” se refere: quem é limitada não é a empresa em si — pois, em princípio, uma empresa limitada não tem limites de tamanho, faturamento, número de funcionárias, etc — mas sim a responsabilidade das sócias. Seu nome técnico no Brasil, até o código civil de 2002, era “sociedade por quotas com responsabilidade limitada”.
O que significa exatamente falar em “responsabilidade era limitada”? Antes da responsabilidade ser limitada, se eu tinha uma empresa pessoa jurídica, e a empresa falisse deixando dívidas de, digamos, um milhão, eu respondia por essas dívidas com meu patrimônio pessoa física: tinha que vender tudo até pagar todos os credores ou até ficar sem nada. Naturalmente, esse risco limitava o número de pessoas capazes ou dispostas a abrir empresas.
O surgimento das empresas limitadas, ao diminuir o risco dos empresários, ajudou a turbinar o capitalismo que já vinha nascendo. Mas ainda faltava alguma coisa. Pois apesar de as sócias terem responsabilidade financeira limitada, elas ainda têm responsabilidade moral ilimitada: literalmente assinam embaixo dos atos de sua pessoa jurídica. Dou um exemplo. Há muitos anos, minha vizinha de porta era dona de uma lanchonete na esquina da nossa rua: o prédio inteiro se encontrava lá, do cafezinho matinal à cervejinha noturna, passando pelo almoço e pelo jantar. Um dia, bateu fiscalização: as violações de higiene eram tão criminosas que a vigilância sanitária interditou o restaurante. Nunca mais encontrei a vizinha: segundo o porteiro, ela só voltou ao prédio mais duas vezes, sempre de madrugada, e depois pediu para a mãe fazer sua mudança. Foi uma decisão sensata: algumas moradoras mais exaltadas planejavam agredi-la no elevador. E eu fico me lembrando: ela me servia aquele misto quente, com queijo podre e presunto vencido, sorrindo e olhando no meu olho. Claro que minha raiva era pessoal.
Para resolver a “pessoalidade” das sociedades limitadas, a solução foi a impessoalidade das sociedades anônimas, de capital aberto, cuja própria constituição justifica e possibilita, estimula e potencializa uma conduta corporativa amoral. Nesse tipo de empresa, 1) As pessoas executando as ações operacionais diárias (as executivas) não estão efetivamente no controle, libertando-se assim da responsabilidade moral pelas consequências dessas ações; e 2) As pessoas efetivamente no controle (as acionistas) estão afastadas das decisões operacionais diárias, adquirindo assim uma preciosa negação plausível sobre as ações cometidas em nome de seus dividendos. Em outras palavras, o que os olhos não veem, o coração não sente — e vice-versa.
Para a pessoa executiva, o único imperativo moral é o lucro das acionistas e, para defendê-lo, passariam por cima do cardíaco agonizante sem nenhuma dor na consciência. E, caso uma de suas vítimas lhe interpelasse, a executiva ainda se justificaria, cheia de sinceridade e com o coração sangrando:
— Se fosse por mim, eu não teria envenenado o rio que abastece de água a sua aldeia. Juro que não. Sou uma boa cristã, jamais faria isso. Mas, sabe como é, a multa por poluir o rio é oitenta vezes menor do que o custo de construir uma central de tratamento de água e eu tenho uma obrigação moral de fazer todo o possível, dentro da lei, para dar o máximo de retorno ao investimento das acionistas. Eu sei que você está sem água, sinto muito, mas veja o lado bom: graças a essa economia que fizemos, nossas trinta mil acionistas ganharam um bônus de quinhentos reais a mais esse ano!
E se o morador da aldeia sem água fosse procurar uma dessas trinta mil acionistas, ela provavelmente reagiria horrorizada, alegaria sincera ignorância e colocaria toda a culpa nas executivas sem coração… …mas continuaria embolsando os quinhentos reais.
Parece um exemplo absurdo e exagerado, mas não é. Henry Ford, longe de ser um santo altruísta, quando tentou abaixar os preços de seus automóveis para vender mais, foi processado por seus próprios acionistas: os lucros pertenceriam a eles e Ford não teria direito de “transferir” parte desse dinheiro aos consumidores na forma de descontos. Ford perdeu e o precedente estabelecido por sua derrota pauta a nossa vida até hoje: os executivos de uma empresa têm o dever legal de colocar os interesses dos acionistas acima de quaisquer outras considerações e, mais importante, não têm autoridade legal de servir quaisquer outros interesses, nem dos consumidores e nem mesmo do planeta.**
O capitalismo é uma ideologia de difusão de responsabilidade. Sempre houve empresas e negócios, mercados e mercadores, compra e venda, importação e exportação, mas, se existe um único fato que possibilita o surgimento do capitalismo como nós o conhecemos, foi a criação das empresas de responsabilidade limitada e, especialmente, das sociedades anônimas de capital aberto. Não por acaso, as primeiras foram as companhias inglesa e holandesa das Índias Ocidentais, criadas especificamente para conquistar e rapinar, matar e roubar, em nome de civilizados lordes e liberais mercadores, totalmente inocentes do sangue derramado em nome de seus dividendos. A revolução capitalista — que começa com a criação das Companhias das Índias (sécs. XVI e XVII) e se consolida com a revolução industrial (sécs. XVIII e XIX) — tornou socialmente aceitáveis práticas que, até a idade média, transformariam qualquer pessoa em pária social. O debate é se já podemos falar de capitalismo no começo desse processo, ou só quando ele está consolidado, ou em algum ponto do meio do caminho.***
A nova ideologia, ao mesmo tempo em que nos estimula a chafurdar em alguns de nossos instintos mais baixos, na avareza e na mesquinharia, também nos oferece a perfeita justificativa para dormirmos tranquilas à noite. Afinal de contas, a “mão invisível”**** cuidará para que a “destruição criativa”***** gerada por nossa cobiça e competitividade traga progresso material para todas as pessoas. (Em outras palavras, não é que sou um canalha ganancioso e insaciável: estou aquecendo a economia e gerando valor!)
[*Na Prisão Respeito, falei mais sobre esse bem-documentado fenômeno da difusão da responsabilidade. Os conceitos de “difusão de responsabilidade” e “apatia do espectador” foram desenvolvidos pelos psicólogos norte-americanos John Darley e Bibb Latané, no artigo “Bystander intervention in emergencies: diffusion of responsibility” (1968) enquanto estudavam o caso de Kitty Genovese, uma nova iorquina assassinada em 1964, aparentemente diante de dezenas de testemunhas — há controvérsias.]
[**A História de como foram inventadas as corporações limitadas e anônimas está em The corporation. The pathological pursuit of profit and power (2004), de Joel Bakan, especialmente os dois primeiros capítulos.]
[***A comparação entre as corporações atuais e das Companhias das Índias está não só no livro de Bakan, citado assim, mas também em Dívida: os primeiros 5.000 anos (2011), cap. 5, do antropólogo norte-americano David Graeber, no capítulo 11.]
[****A expressão “mão invisível” foi utilizada pela primeira vez na Teoria dos sentimentos morais (1759), de Adam Smith, e depois desenvolvida (mas não muito) em A riqueza das nações (1776). Adam Smith se considerava, antes de tudo, um filósofo moral e é nessa chave que A riqueza das nações deve ser lido, um livro muito mais interessante e matizado do que lhe dão crédito tanto entusiastas quanto detratores.]
[*****O conceito de “destruição criativa” foi elaborado pelo economista austríaco Joseph Schumpeter em 1942.]
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Nosso futuro por um iPhone
Como defendem quase todas as economistas, incentivos funcionam. De fato, quando consideramos os incentivos econômicos que nossa sociedade oferece, a atual situação do mundo deixa de ser surpreendente e se revela inevitável. Portanto:
Ao escolher não valorizar nosso capital natural (água, ar, florestas, minerais, etc);
Ao escolher valorizar os bens produzidos a partir desse capital natural;
Ao escolher utilizar o PIB como medida básica de riqueza;
Ao escolher calcular, para fins de PIB, o valor de um objeto manufaturado como um valor positivo;
Ao escolher não calcular, para fins do PIB, o valor do capital natural utilizado na produção desse objeto como um valor negativo;
Ao escolher organizar nossa atividade produtiva com base em empresas constituídas explicitamente para diluir a responsabilidade das pessoas que as compõem;
… era praticamente inevitável que destruiríamos nosso planeta produzindo objetos de consumo.
Existe uma lenda de que as habitantes originárias das Américas teriam trocado seu continente, suas matas e seus rios, por espelhinhos e bugigangas. Não é verdade: essas pessoas foram violentamente conquistadas. Quem está voluntariamente trocando suas matas e seus rios por espelhinhos e bugigangas, seu futuro por um iPhone, somos nós, a humanidade inteira, hoje, agora.
Não existem essas tais “leis econômicas” objetivas e amorais, tão científicas quanto a lei da gravidade ou a teoria da evolução. Existem pessoas, como eu e você, que escolhemos, todos os dias, valorizar algumas coisas em detrimento de outras. A decisão de organizar nossa sociedade de acordo com leis amorais é uma decisão moral. Ao escolher valorizar alguns bens e serviços e não outros, ao escolher responsabilizar algumas pessoas e não outras, ao escolher incentivar algumas atividades e não outras, estamos revelando nossa escala de valores e construindo um mundo à sua imagem e semelhança. Talvez afundemos com ele.
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Conclusões
A Prisão Autossuficiência começa falando de nossas origens evolutivas e termina expandindo o assunto para questões literalmente planetárias. Ambos os temas não existem em separado, pois é a nossa insegurança de macaquinhas gregárias extremamente carentes e conformistas que nos faz produzir tanto e consumir tanto. Mas não buscamos autossuficiência somente no consumo: o cinema, a igreja, nossas avós, tudo nos vende a ilusão de que um dia encontraremos essa outra super-pessoa que vai suprir todas as nossas demandas e que vai nos deixar autossuficientes em termos de sexo e companheirismo, amizade e romance. Está presa na Prisão Monogamia quem acredita nesse conto-do-vigário.
Todas nós, ao longo da infância e adolescência, construímos um grupo de amigos e amigos que, se somente não fizermos nada, serão nossa rede de apoio por toda a nossa vida. Abraçar a Prisão Monogamia, porém, é trocar essa rede de apoio por um único ponto de apoio. Simplesmente não vale a pena. Nós, macaquinhos gregários, não fomos feitos pra isso.
Mas são nossas próprias inseguranças de macaquinhas gregárias, cuidadosamente trabalhadas pelo capitalismo, que nos impulsiona a essa escolha mal-informada. Nada pode ser mais capitalista e individualista do que a família nuclear monogâmica, com pessoas fechadas em grupos cada vez menores, exclusivos, isolados — ou seja, autossuficientes. Falar em não-monogamia é destravar a possibilidade de criarmos novos tipos de relacionamento, inclusive não-sexuais. E não tem como falar de relações românticas ou sexuais, de monogamia ou não monogamia, sem encarar de frente o fato de que, em nossa sociedade misógina, toda relação homem-mulher é sempre assimétrica.
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Próximas atividades
Quarta, 26fev, 19h: aula, Prisão Autossuficiência
Domingo, 2mar, 16h: Conversa livre, Prisão Monogamia
Domingo, 9mar, 16h: Boteco das mecenas, piquenique não-monogamia
Domingo, 16mar, 16h: aula, A antiliteratura de Solenóide, de Cartarescu
Quarta, 26mar, 19h: aula, Prisão Monogamia
Domingo, 30mar, 16h: aula, Escolástica, Grande Conversa Medieval
Domingo, 6abr, 16h: Conversa livre, Prisão Liberdade
Domingo, 13abr, 16h: Boteco das mecenas, piquenique não-monogamia
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Último pedido: leia Solenóide
A aula avulsa sobre Solenóide, de Mircea Cartarescu, acontece daqui a um mês, no domingo, 16 de março.
Foi uma das leituras mais impactantes da minha vida. Uma verdadeira experiência religiosa. E olha que leio uma quantidade fora do razoável de livros por ano.
Nunca houve na literatura um livro tão antiliterário. É até difícil explicar porque Solenóide é tão bom. Tudo o que tentei falar sobre o enredo pareceu bobo ou bizarro no vídeo, mas... no romance... funciona.
Não posso garantir que no final da leitura tudo vai fazer sentido. Mas prometo que vai ser uma leitura revolucionária, impactante, transformadora.
Todo mês, dou uma aula de literatura contemporânea para minhas pessoas mecenas. A aula de março de 2025, no domingo, 16, vai ser sobre Solenóide. Ainda falta quase um mês. Dá tempo de ler. E, confia em mim, vale a pena. Quero muito saber o que vocês vão achar.
E se você ainda não é mecenas, basta fazer uma contribuição de qualquer valor no meu Apoia-se. E muito obrigado.
Parabéns pelo texto excelente texto sobre o crescimentismo ou, como muitas pessoas falam, desenvolvimentismo. Além dos autores que você citou, recomendo a leitura do pensador brasileiro Michael Lowy e do querido companheiro, já falecido, Jean Pierre Leroy.
Leio seus textos há muito tempo, alguns sao referências para mim até hj, acho que desde quando acompanhava o Papo de Homem, nem sei se existe mais. Fui indo para as outras redes e acompanhando, de repente não vi mais nada. Que alegria reencontrá-lo aqui!