Um novo Grande Romance Latino-Americano: Nem mesmo os mortos, de Juan Gómez Bárcena
Se o inimigo vencer, e ele não pára de vencer, nem mesmo os mortos estarão a salvo, pois a História será reescrita; as lutas, apagadas; os derrotados, esquecidos.
Existem muitos concorrentes ao posto de Grande Romance Latino-Americano. Não basta apenas ser um grande romance nacional: ele precisa explodir nossas fronteiras e tentar articular os desafios e dilemas, dramas e dores, desse nosso continente como um todo. Quais seriam? “Cem anos de solidão” só poderia ter acontecido na Colômbia; “Grande sertão: veredas” poderia ter acontecido entre vaqueiros e jagunços de qualquer país, mas não teria como ser escrito em outra língua. Por outro lado, “Nostromo” se passa num país fictício e “Os passos perdidos”, em um país sem nome. Quem se arriscaria a tentar entrar nesse time? Nos últimos anos, só “2666” esteve em consideração.
Pois o romance “Nem mesmo os mortos”, que sai agora no Brasil pela DBA, é o mais recente entre os fortes candidatos.
(A resenha abaixo foi escrita para o caderno Ilustrada da Folha de São Paulo. Essa aqui é a versão maior. A Folha publicou uma versão mais resumida. Quero muito saber o que pensaram, sintam-se à vontade para comentar. :) Todas minhas resenhas para a Folha. // Clicando nos links de livros e comprando qualquer coisa na Amazon – não necessariamente o item que você clicou – eu ganho uma comissão e te agradeço demais por apoiar o meu trabalho.)
O autor Juan Gómez Bárcena não é latino-americano, mas espanhol. Pode um europeu escrever o Grande Romance Latino-Americano? Bem, talvez o primeiro forte candidato a esse título tenha sido escrito por Joseph Conrad, um polonês radicado no Reino Unido. Seu “Nostromo”, de 1904, retrata o país fictício de Costágua, explorado por europeus e envolto em revoluções. Não por acaso, seu “O coração das trevas”, onde o tenaz marinheiro Marlowe busca incansavelmente pelo enlouquecido e carismático Kurtz, certamente foi uma das referências mais importantes de Bárcena.
O título do romance “Nem mesmo os mortos” vem de uma famosa citação de Walter Benjamin: se o inimigo vencer, e ele não pára de vencer, nem mesmo os mortos estarão a salvo, pois a História será reescrita; as lutas, apagadas; os derrotados, esquecidos.
Na verdade, essa é justamente a missão do protagonista Juan de Toñanes, ex-conquistador e agora dono de taberna no México do século 16: encontrar o índio Juan, que andava sublevando o campo e incomodando os poderosos, e, digamos, apagá-lo da História. Mas Juan-o-perseguido não se deixará nem apanhar nem apagar tão facilmente.
“Nem mesmo os mortos” é uma viagem alucinante e alucinógena pelos dilemas desse nosso continente tão injusto e desigual, desde a escravidão quinhentista até a crise dos imigrantes não-documentados de Donald Trump. Sempre em direção ao norte e sempre a duas semanas de seu objetivo, Juan-o-perseguidor atravessa milhares de quilômetros e centenas de anos buscando Juan-o-perseguido, através de um México de pesadelo que representa e simboliza o melhor e o pior da América Latina como um todo.
A medida em que Juan-o-perseguidor avança, Juan-o-perseguido, um proteico Kurtz indígena, vai se metamorfoseando em novos e inesperados personagens desse nosso continente, positivos e negativos, divinos e sórdidos, do padre ao revolucionário, do bandoleiro ao cafetão, do operário ao industrial, cada nova encarnação sempre interessante, hipnótica, dona de sua própria voz. Às vezes, Juan-o-perseguidor não sabe se o combate ou se junta-se a ele. Outras vezes, não sabe se também não se transformou nele. Nós também não.
Cabe um elogio ao trabalho de Silvia Massimini Felix, uma de nossas mais prolíficas tradutoras de literatura hispânica. Especialmente nas últimas partes, quando o romance chega ao presente, suas soluções para as falas orais em spanglish são sempre engenhosas. Também vale a pena mencionar que outro sério candidato a Grande Romance Latino-Americano, e que comparte com “Nem mesmo os mortos” a estrutura de uma busca, foi relançado esse ano em excelente nova tradução: “Os passos perdidos”, de Alejo Carpentier, pela editora Zain.
Apesar de quase perfeito, o final de “Nem mesmo os mortos” não poderia deixar de ser a parte mais fraca. Pois a busca de Juan por Juan, como qualquer jornada mítica, poderia continuar indefinidamente, Juan-o-perseguidor sempre um passo atrás e Juan-o-perseguido transformando-se em novos arquétipos latino-americanos que ainda nem existem. Qualquer final de romance interminável será sempre arbitrário e forçado. Na verdade, “Nem mesmo os mortos” merecia ser um daqueles livros infinitos, que seus autores passam a vida escrevendo e reescrevendo, adicionando novas epígrafes e novos capítulos, até que morrem e os deixam perfeitos e inconclusos.
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Grande conversa romance: um ano para ler seis romances perfeitos
O curso Grande conversa romance: um ano para ler seis romances perfeitos vai começar em agosto de 2025. Um mergulho profundo em alguns dos maiores e mais perfeitos romances da literatura mundial.
Dois meses para cada livro (três para Guerra e paz): um encontro livre para conversar sobre a leitura no primeiro domingo de cada mês e uma aula expositiva ao final dos dois meses, ambos no Zoom, e muito bate-papo literário todo dia no Whatsapp.
Ninguém precisa de ajuda para ler os livros fáceis e curtos. A ideia do curso é ajudar vocês a lerem aqueles livrões que, talvez, estavam adiando ler a vida inteira e, quem sabe, ajudá-los também a encontrar novos livrões legais.
Leremos só grandes livros, um romance em cada uma das principais línguas literárias ocidentais. Abaixo, a lista completa, em ordem cronológica. Os links já levam à edição recomendada.
1 Moby Dick, inglês, 1851 (agosto & setembro 2025)
2 Os miseráveis, francês, 1862 (outubro & novembro 2025)
3 Guerra e paz, russo, 1867 (dezembro 2025, janeiro & fevereiro 2026)
4 Grande sertão: veredas, português, 1956 (março & abril 2026)
5 Cem anos de solidão, espanhol, 1967 (maio & junho 2026)
6 Tetralogia napolitana, italiano, 2015 (julho & agosto 2026)
O precursor polonês Manuscrito encontrado em Saragoça (1815) só não abriu o curso por não ter tradução em catálogo no Brasil, mas eu recomendo enfaticamente, seja no original em francês, em inglês, em espanhol, ou em português de Portugal. (Se houver pessoas alunas interessadas o suficiente em ler, podemos fazer uma aula zero sobre ele em junho & julho. Falem comigo. No mínimo, dez.)
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Grande Conversa: Romance, Calendário
Dom, 6jul25, 16h: Conversa livre, Manuscrito encontrado em Saragoça, Abertura do curso (opcional, se houver interessados)
Qua, 23jul25, 19h: aula zero, Manuscrito encontrado em Saragoça (opcional, se houver interessados)
Dom, 10ago25, 16h: Conversa livre, Moby Dick
Dom, 14set25, 16h: Conversa livre, Moby Dick
Qua, 24set25, 19h: aula 1, Moby Dick
Dom, 5out25, 16h: Conversa livre, Os miseráveis
Dom, 9nov25, 16h: Conversa livre, Os miseráveis
Qua, 26nov25, 19h: aula 2, Os miseráveis
Dom, 7dez25, 16h: Conversa livre, Guerra e paz
Dom, 1fev26, 16h: Conversa livre, Guerra e paz
Qua, 25fev26, 19h: aula 3, Guerra e paz
Dom, 1mar26, 16h: Conversa livre, Grande sertão: veredas
Dom, 12abr26, 16h: Conversa livre, Grande sertão: veredas
Qua, 29abr26, 19h: aula 4, Grande sertão: veredas
Dom, 10mai26, 16h: Conversa livre, Cem anos de solidão
Dom, 14jun26, 16h: Conversa livre, Cem anos de solidão
Qua, 24jun26, 19h: aula 5, Cem anos de solidão
Dom, 5jul26, 16h: Conversa livre, Tetralogia napolitana
Dom, 2ago26, 16h: Conversa livre, Tetralogia napolitana
Qua, 26ago26, 19h: aula 6, Tetralogia napolitana
Amei o texto! Como estudante incial de letras, é bom estar por dentro desses novos autores que escrevem sobre o nosso lugar no mundo — esse Grande Império do diabo, isto é, a Grande América. Tenho vontade de ler esses livros que estarão no seu curso, até agora só li (e encantado fiquei) Cem Anos, do Gabriel.